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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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E se a Apple deixar os governos saber tudo sobre o seu iPhone?

 Por: José Couto Nogueira

 

Segurança nacional ou privacidade do cidadão? É a pergunta que se impõe na disputa que opõe a Apple ao FBI. O debate que está a decorrer nos Estados Unidos pode afectar os utilizadores de telemóveis (e, por extensão, de qualquer equipamento ligado à rede) em todo o mundo. Sim, isto tem a ver consigo e vai querer saber porquê.

 

 

A questão do acesso do Estado aos dados pessoais do cidadão – através dos organismos policiais, fiscalizadores e de contra-espionagem - tem sido discutida desde que a Internet se popularizou. Contudo, quando Edward Snowden revelou publicamente a magnitude da intromissão do governo norte-americano nas comunicações, a discussão deixou de ser académica, ou técnica, e passou para a esfera judicial.

 

Que o governo chinês espie os seus cidadãos com um exército de inspectores, é um facto histórico; que o governo norte-coreano não o faça simplesmente porque ninguém na Coreia do Norte tem Internet, é sabido; que certas ditaduras tentem atabalhoadamente fazê-lo, não surpreende; agora que nos países ocidentais, onde o cidadão é protegido por uma série de garantias, possa acontecer, é inaceitável.

 

Acontece à socapa? Provavelmente. Mas, mesmo assim, é muito diferente do que ser legal e aceite. E, se ocorre nos Estados Unidos, onde é escrito praticamente todo o software usado nos computadores, pode acontecer em qualquer país. No caso dos telemóveis, que é onde se concentra esta guerra judicial, basta lembrar que os dois sistemas operacionais usados planetariamente são o IOS da Apple e o Android da Google, empresas sediadas na Califórnia.

 

Tudo mudou em 2013, com as revelações de Snowden. Anteriormente, as empresas de comunicações, ou de equipamento de comunicações, cooperavam com as autoridades quando os tribunais assim o mandavam. Mas Snowden provou que as agências de segurança nacional espiolhavam não só os utentes, mas também as próprias empresas. Daí que a Apple tenha criado um sistema operacional que é impossível de descodificar, mesmo pela própria Apple. O software para fazê-lo simplesmente não existe. E há a tese de que o software tem a protecção de direitos de autor como qualquer outro texto. Escrevê-lo por ordem judicial, na opinião de alguns especialistas, seria o mesmo que condicionar um autor na sua liberdade de expressão.

 

Qual é a password?

 

Tecnicamente, não se trata de decifrar a encriptação, mas sim de descobrir a palavra-passe. O sistema IOS está feito de maneira que ao fim de dez tentativas com palavras-passe erradas, todos os dados da memória do smartphone são apagados. O caso específico refere-se ao iPhone utilizado por um dos terroristas que mataram 14 pessoas em San Bernardino, na Califórnia. O FBI quer que a Apple escreva um programa capaz de ultrapassar a segurança do aparelho. Apenas isso.

 

A Apple tem vários argumentos para não o fazer. Primeiro, não quer piratear (hack) a sua própria tecnologia. Segundo, se o fizer está a colocar em risco a privacidade de todos os utilizadores; uma vez criado, não se sabe onde o programa irá parar. O FBI e outros departamentos de segurança do governo ficam em roda livre para fazê-lo quando quiserem. Mais ainda, os governos de outros países podem exigir o mesmo, e excluir a empresa dos seus países se não o fizer – a China vem logo à cabeça.

 

O FBI diz que a Apple está a exagerar, uma vez que lhe pede que a própria empresa desbloqueie apenas um telemóvel e não todos os que fabricou. E que se trata de um caso de segurança nacional, para descobrir os cúmplices dos dois terroristas, antes que cometam mais atentados.

 

As opiniões dividem-se. Bill Gates começou por apoiar Tim Cook, o presidente da Apple, mas depois voltou atrás e acha que o FBI tem razão. Não que a opinião dele valha mais do que institucionalmente, uma vez que a Microsoft tem muito pouca penetração no mercado de smartphones. Mas Sundar Pichai, o director da Google, dona do Android, que compete com o IOS pelo domínio do mundo (sobretudo através da Samsung), apoia a Apple, e esse apoio tem muito peso. Mark Zuckerberg também acha que Tim Cook tem razão. E o Facebook na última contagem (ontem?), tinha mil e seiscentos milhões de utilizadores.

 

Zuckerberg aliás, tem tido muitos problemas com vários governos por questões de privacidade. O último caso foi, recentemente, com a Índia, onde as autoridades queriam proibir o Facebook, alegando que partilhava indevidamente informações privadas – mas na realidade o que preocupa o governo indiano, como todos os governos, é a possibilidade das redes sociais difundirem informações quase instantaneamente, sem controle.

 

Os cidadãos, a acreditar numa sondagem do Pew Research Center, estão a favor do Governo. 51% acham que a Apple devia ceder e só 38% acham que não devia. Mas os cidadãos, apesar dos mais interessados, serão os últimos a decidir, nesta disputa de gigantes, que certamente irá enriquecer grandes escritórios de advocacia.

 

Amigos, precisam-se!

 

A 16 de Fevereiro, um juiz federal decretou que a Apple tinha de fazer o que o FBI pedia até sábado, 26. Mas sábado passou e a empresa não o fez. Aliás, fez: pediu a dispensa do juiz, pois considera que a decisão viola os direitos da Primeira e Quinta emendas da Constituição. Se viola ou não, outro tribunal o decidirá. Entretanto, o decreto do juiz baseou-se numa lei de 1789, há muito esquecida, e que se aplicava a correio em papel.

 

Nesta terça, dia 1 de Março, a Comissão para Assuntos Judiciários da Câmara de Representantes debruça-se sobre o assunto. O director do FBI e o principal advogado da Apple são testemunhas. O assunto interessa a todas as empresas do biosistema das comunicações, que seguem atentamente o processo. Pierre Louette, ex-director da Orange francesa, diz que há muito tempo que estes problemas se levantam, mas que agora terá finalmente de se decidir alguma coisa, e “as empresas de comunicações vão precisar de ter muitos amigos”.

 

Amigos são sempre úteis, mas o que a Apple agora precisa é de advogados. E dos bons. Quanto aos utilizadores de todo o mundo, que já são espiolhados a torto e a direito, no fundo a preocupação é mais familiar do que civil. Quer dizer, que a Autoridade Tributária investigue pela calada, não há nada a fazer; agora, se lá em casa tiverem acesso aos dados do telemóvel, isso é que é o diabo... 

publicado às 10:12

As marcas de 90 dias de governo

Por: António Costa

 

O ministro Augusto Santos Silva anunciou-nos que o Governo está empenhado em ganhar um novo mandato em 2019, coisa que, na verdade, não precisava de ter feito, porque se há coisa que fica clara deste Orçamento do Estado para 2016 e dos três meses de governação é isso mesmo. Se não há primeiro-ministro que se lixe para as eleições, e não há, há primeiros-ministros que só pensam nas eleições.

 

Ao fim dos primeiros 90 dias de governo – mais acelerados do que costumam ser, por responsabilidade alheia e, sobretudo, culpa própria – já é possível definir as marcas que estão para ficar. António Costa bem se esforça por dizer que a principal caraterística é a que cumpre o prometido, o que é quase verdade. Prometeu beneficiar a função pública, e cumpriu, prometeu descer a sobretaxa de IRS (os mais pobres já não pagam IRS, diga-se) e cumpriu parcialmente, prometeu beneficiar os donos dos restaurantes e vai cumprir, prometeu descer a TSU dos trabalhadores com salários até 600 euros e... não cumpriu. Mas como as promessas não podem ser um fim em si mesmo, especialmente quando Costa foi além das suas próprias promessas eleitorais, sobram outras marcas destes 90 dias.

 

A primeira é mesmo a que Santos Silva nos anunciava. António Costa está a governar para as eleições, só não está a governar para 2019, mas para este ano ou, no máximo, o próximo. Como sucede em qualquer campanha eleitoral, só existe o líder, tudo é feito e centrado no nome e na capacidade política de quem manda. Para já, pelo menos, é uma vantagem. O Governo não tem estrelas, tem valores seguros como Santos Silva e Vieira da Silva, tem surpresas – para quem não os conhece – como Pedro Marques ou Adalberto Campos Fernandes, e as estrelas académicas que se apresentavam, Mário Centeno, Manuel Caldeira Cabral e Tiago Brandão Rodrigues, são na verdade as desilusões.

 

António Costa, é preciso reconhecer, conseguiu dar vida à geringonça, passou os testes sucessivos a custo, sobretudo o externo e as negociações com Bruxelas. Foi obrigado a mudar a lógica do orçamento – e foi isso que a Moody’s elogiou, já agora – e mesmo assim conseguiu ter os votos do BE e do PCP. O primeiro, como já se percebeu, quer o poder e vai atuar em conformidade, como se prova pela reação às reações a um cartaz tão estúpido como errado. O segundo será mais difícil de contentar, como se percebe pelos sinais públicos e notórios, até pelas posições da CGTP. Mas Costa conseguiu.

 

O ritmo da vida política portuguesa não vai abrandar, pelo contrário. Os efeitos de uma estratégia orçamental e económica contraditória, misturados com um contexto internacional de crise e estagnação generalizado, só podem dar maus resultados em Portugal. Não só ao nível das contas públicas, como do crescimento e emprego e das contas externas. E é por isso que o Plano B de Mário Centeno será mesmo para executar e em simultâneo o Governo tem de apresentar o PEC até 2019.

 

Até lá, vamos continuar a ter política, e muita, não necessariamente da boa.

 

As escolhas

 

O jornalismo foi premiado nos óscares, numa noite de surpresas a abrir e a fechar. O Óscar para o filme “O caso Spotlight” – uma investigação jornalística nos EUA aos abusos sexuais de crianças por parte de padres em Boston – é uma distinção a um certo cinema e a um certo jornalismo, ambos em crise. Leia aqui em www.sapo24.pt todas as histórias, e claro, os melhores vestidos do ‘red carpet’.

 

Tenha uma boa semana

publicado às 09:39

Harper Lee, a camponesa que escreveu uma obra prima

Por : José Couto Nogueira

 

Num período que tem sido uma autêntica ceifa da morte para grandes ídolos – de David Bowie a Umberto Eco, só para citar os mediáticos mais opostos – quase passou despercebido o falecimento de Harper Lee. Mas a história desta rapariga do campo que se tornou uma autora de prestígio internacional vale a pena ser contada.

 

 

Nelle Harper Lee nasceu no Alabama, o “Sul profundo” dos Estados Unidos, ou seja, nas berças, onde o preconceito e o conservadorismo reinam de década para década. Em 1936, tinha ela dez anos, o pai defendeu em tribunal dois negros acusados de matar um branco. Ambos, pai e filho, foram enforcados, o que era previsível, apesar do Dr. Amasa Coleman Lee os defender com todo o empenho.

 

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Nelle viveu toda a infância e juventude naquele nenhures, tendo feito os estudos normais até frequentar Direito na Universidade de Tuscallosa, sem se formar. (Para os menos cientes e para os radicais anti-americanos, convém talvez lembrar que os Estados Unidos já tinham, no século XX, mais universidades que o resto do Mundo.) Era uma rapariga com dois amores: a literatura e o pai, ao colo de quem aprendeu a ler.

 

Em 1956, sem nunca ter saído do Alabama, meteu-se a escrever um livro autobiográfico, centrado na vida do pai. Enviou-o para vários editores e num deles, a casa J. B. Lippincott, a editora Tay Hohoff achou que aquilo teria pernas para andar. Nelle foi para Nova York a ver se se lançava nas letras, e durante dois anos as duas discutiram ferozmente o que mudar e não mudar no livro, o qual, segundo Tay disse anos depois, era uma série de histórias interessantes sem nexo entre elas.

 

 “Matar a cotovia” ficou 80 semanas na lista dos mais vendidos, foi traduzido para 40 línguas e já vai em 30 milhões de exemplares

 

Finalmente, em 1960 o livro saiu, com o estranho título de “To kill a mockinbird” – tão estranho que as traduções em português variam: “Matar a cotovia”, “Como matar a cotovia”, “A morte da cotovia”... Os brasileiros é que resolveram o problema; chamam-lhe “O Sol é para todos”.

O balanço é o que se sabe: ganhou o Pullitzer nesse mesmo ano (um prémio com nomeações muito mais acertadas que o Nobel), ficou 80 semanas na lista dos mais vendidos, foi traduzido para 40 línguas, continua a vender-se regularmente e, segundo o último cálculo, já vai em 30 milhões de exemplares.

Em 1962 foi passado para o cinema, com Gregory Peck a ganhar o Óscar pelo papel do herói advogado, Atticus Finch.

 

Nelle, que escolheu o nom de plume Harper Lee porque receava que lhe chamassem Nellie, confessou, nas pouquíssimas entrevistas que deu entre 1960 e o seu falecimento, que nunca esperou tal sucesso.

E porquê esse sucesso? A história é uma epopeia sobre a Justiça. Atticus Finch, o advogado, defende num tribunal de brancos racistas um preto acusado de violar uma branca. O que há de heróico nele é a crença de que a verdade é que interessa, e os direitos das pessoas é que têm de ser respeitados, e não nas jogadas e meandros escusos que um processo judicial normalmente substancia. Esta postura quixotesca, digamos, é um ideal muito entranhado na cultura americana – talvez mais entranhado quanto menos se prova viável.

Aliás, podemos dizer que é um ideal global, pois em todo o mundo as pessoas se identificam com a lhaneza de Atticus, que não olha a preconceitos nem a pressões para defender a verdade.

 

Lee escreveu alguns contos de menos repercussão e ficou amiga de Truman Capote, que ajudou durante as pesquisas para o seu famoso livro “A sangue frio”. Aliás, há um filme de Bennet Miller, de 2005, que relata essa viagem atribulada do escritor, representado por Philip Seymour Hoffman. Catherine Kenner faz de Harper Lee.

Em 1966 Nelle voltou para sua cidade natal, Monroeville, e só saía eventualmente, para receber os incontáveis prémios que entretanto lhe foram dados – o último por Barak Obama, em 2010. Entrevistas, o mínimo possível, mas o suficiente para dizer que não escreveu mais nada porque tudo o que queria dizer estava na “Cotovia” e que “é melhor ficar calada do que dizer disparates”.

 

Em 2015 a editora HarperCollins deu a bombástica notícia de que Lee afinal tinha escrito outro livro. Chamado “Go and set a watchman” – outro problema para os tradutores... – teve uma tiragem inicial de dois milhões de exemplares. Contudo chegou-se à conclusão de que foi escrito antes da “Cotovia”, embora se passe 20 anos depois, e há quem ache que se trata mais dum rascunho do primeiro do que de uma obra que valha por si. Lee autorizou a sua publicação, numa altura em que já estava quase cega e muito incapacitada – imagina-se a pressão da trupe que vivia à custa do seu sucesso, para desenterrar aquilo do baú da senhora.

 

Afinal, Harper Lee sempre teve razão, tudo o que queria dizer está naquele livro.

 

publicado às 17:50

Num único mundo, porque se falam tantas línguas?

Por: Pedro Fonseca

 

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Existem cerca de 7.000 línguas na Terra. Como se chegou a este enorme número de diferenças linguísticas num mesmo ecossistema humano? Aparentemente, o clima, a influência social e negocial ou a evolução biológica tiveram uma preponderância fulcral para esta diversidade. Aparentemente.

 

"Os cientistas sabem há muito tempo que as vozes funcionam de forma diferente nas densas florestas e em planícies abertas e ao ar húmido e ar seco". Agora, eles consideram que "o ecossistema e o clima em que as línguas se desenvolveram podem ter realmente ajudado a moldar como elas soam", explicava a revista Christian Science Monitor. Em concreto, segundo o linguista Ian Maddieson, "pelo menos algumas características das diferentes línguas foram moldadas pelo ambiente climático e ecológico onde eram usadas".

 

"A teoria básica é que se tem um tipo de linguagem mais rica em consoantes nalguns ambientes em comparação com uma linguagem mais rica em vogais noutros, simplesmente por causa da eficácia da transmissão de diferentes tipos de sons em diferentes ambientes", diz Maddieson. No primeiro caso, esse tipo de linguagem encontra-se em terrenos mais acidentados e elevados, enquanto línguas com menos consoantes se detectam em regiões mais arborizadas, com temperaturas mais elevadas e mais chuva. O estudo de Maddieson e Christophe Coupé deixou de fora a análise a línguas como "o inglês, mandarim, espanhol e outras línguas globais", focando-se em mais de 600 línguas índigenas em todo o mundo.

 

O interessante é como os investigadores detectaram que alguém que vá para uma certa região, tenderá progressivamente a mudar, ao longo de várias gerações. Essas pessoas "vão ouvir coisas um pouco diferentes [e] adaptar a sua linguagem à maneira como ouvem". Um outro investigador da universidade de Miami, o antropólogo Caleb Everett, revelou como "linguagens com tons complexos dificilmente evoluem em ambientes secos", porque "as cordas vocais humanas funcionam com menos eficiência" - ao contrário do que sucede em regiões mais húmidas. 

Convém ainda acrescentar as "influências sociais", como o facto de a sonoridade de uma língua estar correlacionada com o facto de as pessoas passarem mais ou menos tempo dentro de habitações, onde será menos necessário elevar a voz comparativamente aos ambientes abertos, como detectaram outros investigadores.

 

Veja-se o exemplo dos EUA, com mais de 320 línguas a co-existirem naquele país e 60 milhões de pessoas a falarem outra além do inglês

 

O que significa tudo isto? A linguagem é "ecologicamente adaptativa", nota Everett, e isso é algo intrínseco aos humanos. O que nos diferencia dos "sistemas de comunicação de virtualmente todos os outros animais que conhecemos é que temos tantas diferentes línguas", refere Maddieson. Veja-se o exemplo dos EUA, com mais de 320 línguas a co-existirem naquele país e 60 milhões de pessoas a falarem outra além do inglês.

 

Segundo dados do US Census Bureau, relativos aos anos entre 2009 e 2013, Nova Iorque tem 192 idiomas distintos, enquanto Los Angeles chega aos 185. Naturalmente, o espanhol lidera (mais de 37 milhões de falantes), seguido do mandarim, com mais de 2,5 milhões. O português fica-se pelos 692 mil falantes.

Já o investigador António Paulo Finuras defende que "a diversidade linguística, como a diversidade biológica, sugere origens evolutivas paralelas". Ao existirem diferentes grupos com diferenciados idiomas, trata-se de uma "resposta adaptativa das nossas espécies".

Se é um "atributo biológico" mas "não uma invenção cultural" e se "os mecanismos do cérebro controlados pelos circuitos neuronais que permitem a aquisição de uma linguagem altamente especializada são idênticos em todos os seres humanos normais, a diversidade das línguas é em si uma variável evolutiva da evolução da linguagem que continua por explicar".

Para Finuras, trata-se de um "resultado da estratégia de inibição da transmissão de agentes patogénicos" (doenças por infecção), uma resposta do "sistema imunitário comportamental". Os grupos humanos tinham de se manter em segurança assinalando aos seus membros os problemas de que podiam padecer, uma forma de "protecção imunitária grupal", com vantagens para a coesão da comunidade e também para uma "lealdade" do próprio indivíduo que se inseria nessa comunidade - o que podia gerar a criação de novos códigos ou mecanismos de comunicação (línguas), não entendíveis por estranhos.

 

O investigador português cita Daniel Nettle que sugere não existir uma relação directa e constante entre a evolução das línguas mas que ela está relacionada com a congregação das populações. Segundo Nettle, "quanto maior a densidade, mais rápida é a evolução das línguas".

Num trabalho revelado no Washington Post, contabiliza-se que a Ásia tem 2.301 idiomas, seguida pela África com 2.138, a região do Pacífico com cerca de 1.300 e as Américas com 1.064, ficando a Europa com apenas 286. "Cerca de 3% da população mundial conta por 96% de todas as línguas faladas hoje" e "2.000 têm menos de 1.000 falantes nativos".

 

Em termos de falantes, o mandarim lidera, seguido do hindi e do urdu, antes do inglês, árabe e espanhol. E o português cai no número de falantes "porque nem todos os brasileiros são falantes nativos". "Os números são fascinantes porque reflectem o facto de que dois terços da população mundial partilham apenas 12 línguas nativas", salienta o jornal, citando dados do investigador Ulrich Ammon, da universade alemã de Dusseldorf. Mas mostram igualmente que a predominância de certas línguas é histórica, nomeadamente pelas suas "raízes no passado imperial", conjugando-se esta visão geográfica com a mais assente na disseminação ambiental.

 

Toki Pona, "o mais pequeno idioma", foi criado em 2001 e tem apenas 123 palavras

 

O surgimento da imprensa também poderá ter tido algum impacto nas línguas, quando, "metaforicamente silenciou a palavra falada" e "os oradores de Roma cederam aos homens das letras". Foi o início da separação entre informação e comunicação. Mas é por metáforas que a linguagem se expande, como explicava o psicólogo Julian Jaynes à The Atlantic, ou se retrai.

 

O exemplo servia para mostrar a simplicidade da Toki Pona,"o mais pequeno idioma", criado em 2001 por Sonja Lang, com apenas 123 palavras. Segundo ela, são suficientes "para expressar qualquer ideia", usando "elementos básicos, juntando conceitos relacionados e tendo palavras únicas a realizarem múltiplas funções da linguagem".

 

Este novo esperanto, que pode ser assimilado em apenas 30 horas de estudo, altera igualmente a forma como os seus falantes pensam. Quando alguém "se consegue expressar de forma simples, então entende-se sobre o que se está a falar, e isso é bom", notava Lang. "Se algo é muito complicado, é mau", porque se "coloca muito ruído".

 

Uma outra explicação para o surgimento das línguas refere-se à necessidade de negociar - algo que mais nenhuma espécie faz, afirmava Lauren Giordano num outro artigo da The Atlantic. Até "a mais simples das negociações requer um sofisticado conjunto de regras e entendimentos" e, "tal como somos a única espécie a ter sistemas complexos de venda e negociação, somos também a única espécie que tem linguagem, e isso pode ter origens nos nossos antigos comportamentos económicos", diz.

A "linguagem é tão especializada e o comércio tão vantajoso que há razão para acreditar que a selecção natural" se baseou na conversa como uma adaptação fácil. "Gosto de pensar na nossa língua como um pedaço de tecnologia social, desenvolvida para gerir as necessidades das sofisticadas vidas sociais, baseada no comércio e especialização enquanto a nossa espécie foi evoluindo. Talvez tenhamos adquirido a linguagem - e nenhuma outra espécie o fez - porque fomos os únicos com algo para falar".

 

Giordano afirma ser "possível" que as transacções económicas possam ter ocorrido sem a linguagem mas, "com ela, um acordo pode ser negociado e obtido um preço justo".

É uma "explicação plausível", dado que "para outros animais, que não se dedicam ao comércio ou à coordenação das suas actividades, e que fazem mais ou menos as mesmas coisas todos os dias, não há realmente muito de que falar - pelo menos, não há muito mais para falar do que as suas formas de comunicação já permitem. Em resultado disso, a selecção natural nunca criou neles" essa necessidade "que temos para usar a linguagem. Simplesmente, não era necessário".

 

Este tipo de estudos tem oponentes. Em 2013, Seán Roberts e James Winters defendiam no trabalho "Linguistic Diversity and Traffic Accidents: Lessons from Statistical Studies of Cultural Traits" que estudos sobre certas ligações entre traços culturais tinham "vários potenciais problemas", nomeadamente no caso das línguas.

Entre vários exemplos - como questionarem trabalhos sobre o tamanho de uma comunidade e a relação com a complexidade morfológica da sua linguagem -, os autores apontavam a falibilidade de técnicas de análise na previsão de variáveis linguísticas a partir de aspectos ecológicos e do clima local. Eles consideram mesmo que, "em geral, a revisão de estatísticas utilizadas em estudos de cultura e linguagem podem ser menos rigorosas do que noutros campos" científicos.

 

Roberts e Winters argumentavam que se estudos com muitos dados "podem ser úteis para gerar hipóteses e fomentar trabalho interdisciplinar, há também problemas que significam que podem ter pouco poder explicativo".

A emergência de muitos dados para análise, no campo da chamada Big Data, é uma tragédia porque "quantas mais variáveis, mais correlações podem mostrar significado. A falsidade também cresce mais rapidamente do que a informação", referem.

 

Em síntese, num único mundo, porque se falam tantas línguas? Não se sabe.

 

Créditos da imagem: Minna Sundberg

publicado às 17:25

Não leia que não vale a pena. Afinal, não está a pensar envelhecer, ou está?

Por: Rute Sousa Vasco

Somos hoje uma sociedade de insatisfeitos, de excluídos e de lesados. E, quais ratinhos na roda, parece que não conseguimos sair do mesmo sítio, por muito que todos os sinais nos apontem para uma provável dissonância cognitiva entre o que sabemos e o que fazemos. A forma como decidimos quem é ou não empregável é, provavelmente, um dos espelhos mais óbvios desta dissonância.

 

É assim com os jovens. Serão sempre a próxima geração que vai mudar o mundo, mantêmo-los a estudar e a tirar cursos atrás de cursos mas, quando chega a hora do emprego, temos de lhes oferecer estágios atrás de estágios, muitos não remunerados ou mal remunerados. E, em consciência, defendemos que tem de ser assim porque um jovem não tem experiência. Ou seja, não sabe fazer nada.

 

Considerada de forma isolada, esta visão sobre a entrada dos jovens no mercado de trabalho deveria querer dizer que somos uma sociedade que premeia a experiência. Portanto, profissionais acima dos 40 ou 50 anos não teriam qualquer problema de empregabilidade, porque são eles que as empresas querem para conduzir os seus negócios a bom porto. Na realidade, não é assim. Para muitas empresas, estes são os grupos etários das pessoas cheias de “vícios” e por isso difíceis de “reconfigurar” numa economia que rola cada vez mais rápido e muitas vezes sem nexo. Ah, e também são os grupos etários em que os profissionais já ganham um salário e não um subsídio ou um estágio e o excel dos custos não perdoa.

 

Recapitulemos. Os jovens, enormes promessas que nos fazem ter esperança no futuro, não são elegíveis para lugares pagos com um salário. Não têm experiência, não sabem fazer e terão de cumprir vários anos até que lhes seja reconhecido o estatuto de trabalhador inteiro. Quando lá chegam – para os que chegam a esse estatuto – estão, em regra, entre os 30 e os 35. No melhor dos cenários, têm 10 anos de vida activa plena e reconhecida como essencial pelas empresas e por essa entidade que é o mercado em geral. E depois fazem 40. Quando supostamente já sabem realmente bem o que fazem, já estiveram à prova em várias empresas, funções, contextos, já têm ideias que podem fundamentar, essa é também a altura em que o “sistema”, usando uma expressão cara a tantos, começa a descartá-los. Porque são mais caros, porque têm ideias feitas, porque são mais velhos.

 

Está tudo doido, ou quê?

 

Vivemos hoje numa sociedade que, mercê da evolução da ciência, da tecnologia, do conhecimento em geral, nos promete maior longevidade e melhor qualidade de vida. Vivemos hoje em economias que, entre os grandes buracos negros dos resgates aos bancos e a necessidade de tornar sustentáveis as premissas essenciais do Estado social, antecipam e legislam prolongamento nos anos de trabalho com reformas menores e mais tardias. Mas, na vida real, temos empresas e instituições que na sua maioria não sabem o que fazer nem com os jovens nem quando os jovens ficam mais velhos. Convenhamos que ter apenas uma década de vida activa sem estar nos holofotes da indigência por estágio, desemprego ou reforma antecipada é, no mínimo, caricato.

 

É indiscutível que temos temas de produtividade para resolver, em qualquer uma das faixas etárias – é um problema do país. E é um facto que ensinar e aprender a trabalhar é um processo de grande exigência que tende a ser menorizado. Saber trabalhar não é inato, não vem com os cursos, e se as empresas não estimularem, nem sequer vem com a experiência. Há pessoas qualificadas que podem passar uma vida sem saber trabalhar, mesmo que desempenhem as funções que lhes são atribuídas. A produtividade está, em muito, neste tema mal resolvido.

 

Ontem, o ISCTE foi anfitrião da primeira apresentação de projectos de uma turma muito especial. A primeira resultante de uma iniciativa conjunta com o IEFP em que 100 licenciados desempregados cumpriram um semestre na univerisidade em ações de formação em tecnologias de informação e comunicação. A maior parte destes alunos tinha mais de 40 anos, muitos mais de 50 - ouviu-se, aliás, várias vezes a expressão alusiva aos cabelos brancos. Pelo auditório do ISCTE passaram engenheiros, economistas, sociólogos, psicólogos, biólogos, entre outras formações. Pessoas com experiência, com boas ideias, com vontade, que, mercê uma qualquer reestruturação, ficaram desempregados. E que ontem ali estavam felizes e realizados por terem conseguido provar o que valem.

 

Somos um país tão bem munido de profissionais qualificados que pode assim tão facilmente descartar estas pessoas? Porque são mais velhos? Porque ganham mais? Porque alguns não tinham como saber o que eram redes sociais ou gestão digital quando tiraram os cursos há 20 ou 30 anos?

 

Nos idos anos 90, entrevistei pela primeira vez Belmiro de Azevedo. Foi uma entrevista longa, na Maia, na qual o líder da Sonae percorreu os principais temas dos negócios do grupo e também do país. A minha principal memória desse dia não tem, contudo, nada a ver com isso. Belmiro chegava por essa altura aos 60 anos e a pergunta era sobre sucessão e sobre como vivia a passagem do tempo (eufemismo para envelhecer). Recostado no cadeirão, Belmiro de Azevedo inclinou-se para a frente e apenas respondeu: “Sabe, a idade é a coisa mais democrática que existe. Passa por todos”.

 

 

OUTRAS LEITURAS 

É fim de semana de óscares. Há um no ano inteiro e é este. Vai poder acompanhar tudo aqui com uma janela actualizada ao minuto na homepage do SAPO. Faça-nos companhia.

 

E, parece de propósito num dia em que o tema desta coluna é o emprego: a rede social LinkedIn estreia-se em grande no prime time de tv ao lançar o seu primeiro anúncio no intervalo da transmissão da cerimónia de entrega dos Óscares. O mote da campanha é “You’re closer than you think" e é sobre o emprego dos seus sonhos.

 

publicado às 10:18

Portugueses no mundo

Por: Pedro Rolo Duarte

 

O debate entre António Guterres e Durão Barroso, que a RTP promoveu na terça-feira passada, teve todo o tipo de comentários e análises. Mas houve duas tendências maioritárias e divergentes nessas reacções: as que elogiaram a carreira internacional de ambos, e os conhecimentos e sabedoria que daí resultaram; e as que recuperaram o facto de ambos terem “desistido” de Portugal e desertarem para portos mais seguros.

 

Confesso que vi o debate sem qualquer espécie de preconceito. Para mim, é tão legítima a vida de Tony Carreira em França como a de Durão Barroso em Bruxelas ou a de Ronaldo em Espanha. Somos livres de escolher o nosso caminho - e é triste, ou pelo menos injusto, que se peça aos políticos o que nem sequer se põe em causa nos futebolistas ou nos gestores. Orgulhamo-nos da carreira de Horta Osório na Banca inglesa, ou de Mourinho no futebol europeu, mas depois queremos que Guterres fique aqui a aturar a mediocridade reinante, que tanto o julga pelo que faz, como pelo o que não faz. Parece que ser politico é uma devoção - tudo o resto é carreira…

 

Não consigo julgar assim, e por isso analiso o percurso de Guterres como o de Ronaldo ou Paula Rego: portugueses que perceberam que o mundo era global, e que podiam ir mais longe fora do rectângulo. Tenho orgulho naqueles que conseguem dar esse passo. E até tenho a saloia tentação de admitir que as suas vidas trazem mais-valias para a imagem de Portugal no Mundo.

 

Dito isto, e depois de os ver debater - mais do que um debate, foi um encontro e uma entrevista dupla… -, impressionou-me, no que a impressão pode ter de saudável e positiva, o olhar global que ambos têm do mundo actual. A quintarola onde sempre vivemos, e de que vivem os habituais debates televisivos, foi substituída pela riqueza de um olhar que vê para lá do óbvio, que consegue analisar à distância, e que tem a noção clara da complexidade dos problemas que nos rodeiam. Ambos estão uns anos-luz à frente da pequena política nacional, da guerrilha de lugares e de empregos e de carreiristas - e com essa clareza conquistam-nos, porque nos exibem um cenário onde cabemos todos por igual.

 

António Guterres é menos optimista do que Durão Barroso (o que talvez possa ser explicado pela diferença entre andar no terreno e estar num gabinete aquecido em Bruxelas). Durão Barroso, pelo seu lado, valoriza mais a ciência e a tecnologia, e acredita que a evolução de ambas trará vantagens de que todos beneficiaremos. Os olhares de ambos são diferentes, mas completam-se na dimensão humanista que perseguem, e no reconhecimento de que o nosso futuro passa mais pelos equilíbrio que conseguirmos juntos do que pelas guerrilhas que persistimos em alimentar.

 

A RTP fez serviço público ao juntar os saberes de António Guterres e Durão Barroso num único encontro - e os dois usaram esse serviço para nos enriquecerem com ideias, perspectivas e pistas para um futuro que é mais presente do que outra coisa qualquer.

 

Por momentos, tive orgulho em ser português. Há melhor?

 

Coisas que me deixaram a pensar esta semana

 

No momento em que a notícia mais corriqueira de todos os dias é o fecho de mais uma edição em papel de um jornal, os donos do britânico Daily Mirror decidem surpreender: no final do mês nasce em Inglaterra o New Day - um novo jornal diário, exclusivamente em papel, que se vai ligar às redes sociais e à web apenas para efeitos de criação de debates e comunidades. A notícia não podia ser mais optimista e surpreendente, com um piscar de olho às mulheres…

 

Chama-se “birthday cam” e é a mais recente brincadeira inventada pelo Facebook para nos mantermos ainda mais dependentes da rede social. No dia do aniversário dos nossos amigos, o facto já nos era lembrado - agora, o Facebook criou uma funcionalidade que permite fazer um pequeno vídeo e enviar os parabéns aos aniversariantes de uma forma ainda mais próxima. Que mais vão inventar a seguir?

 

Rir é essencial: é isso que nos garante Shannon Reed neste delicioso texto, publicado há dois dias na edição online da revista The New Yorker. Ele responde à misteriosa questão de domingo que vem: quem são os obscuros membros da Academia que vão eleger o Óscar para Melhor Filme? As respostas são, no mínimo, hilárias…

publicado às 09:44

Há mais vida para além do défice

Por: Paulo Ferreira

Fruto dos necessários entendimentos para chegar ao poder, António Costa trocou a sua “visão para a década” pelo orçamento possível para os próximos nove meses. Pouco ou nada resta dos planos iniciais dos socialistas, que eram um guião consistente, independentemente de se concordar ou não com a sua bondade.

 

Independentemente das motivações de cada partido, esta terça-feira foi, sem dúvida, um dia histórico. Ter um Orçamento do Estado aprovado com os votos favoráveis do Bloco de Esquerda e do PCP é coisa inédita. Não o perfilharam, acham que o documento é modesto para as suas políticas mas não deixaram de o aplaudir de pé quando chegou o momento.

 

Não deixa de ser irónico que os dois partidos que não valorizam a redução do défice - acham mesmo que se ele foi criado é para ser grande - e que sempre criticaram o que chamam de obsessão com esse indicador tenham decidido apoiar o Orçamento que prevê o défice mais baixo da democracia - Bruxelas e mercados “obligent”.

 

É claro que nas contas que os dois partidos fazem há certamente mais vida para além do défice. Há, sobretudo, um governo do PS visto como um mal menor quando a alternativa seria um novo governo PSD/CDS. É sobretudo isso que move a esquerda, o que é absolutamente legítimo.

 

Este Orçamento já foi criticado por tudo e pelo seu contrário, como disse Mário Centeno na semana passada na conferência organizada na semana passada pela Conceito e pelo ISCTE. O ministro das Finanças tem razão. Este orçamento é, ao mesmo tempo, visto como austeritário e despesista. Como irrealista e pouco ambicioso. Como eleitoralista e penalizador dos contribuintes.

 

Provavelmente conseguimos encontrar todos esses traços num documento que teve que ser negociado em dois tabuleiros distintos e com visões opostas do que deve ser o Orçamento do Estado português nesta altura.

 

Primeiro, tivemos a negociação interna à esquerda, que o carregou de despesa e devolução de rendimentos. Depois, foi submetido ao crivo de Bruxelas, que obrigou a uma redução do défice que o Governo resolveu carregando em impostos sobre o consumo.

 

Pelo caminho ficou a estratégia económica que o PS tinha desenhado durante a pré-campanha, de que a política orçamental era um elemento central. Fruto dos necessários entendimentos para chegar ao poder, António Costa trocou a sua “visão para a década” pelo orçamento possível para os próximos nove meses. Pouco ou nada resta dos planos iniciais dos socialistas que eram um guião consistente, independentemente de se concordar ou não com a sua bondade.

 

O orçamento a que chegámos - não se esperam alterações de monta na discussão na especialidade - pode ser, de facto, um pouco de tudo e o seu contrário. Mas uma coisa não é: um instrumento que possa ajudar a relançar a economia, que era a pedra de toque do modelo socialista. 

 

O desafio será agora executar o documento sem derrapagens significativas ou aflitivas, o que já não é pouco. Em caso de necessidade, já sabemos com o que podemos contar. O acordo à esquerda impede que se cortem salários e pensões e que se aumentem os impostos sobre os rendimentos do trabalho. Por isso, os impostos sobre o consumo estão na primeira linha dos sacrificados se forem necessárias novas medidas para atingir a meta do défice. E como não resta muito mais, poderemos também não escapar a uma maior tributação sobre as empresas - alguns sectores? algumas empresas? - e sobre alguns tipos de rendimentos individuais para além dos do trabalho.

 

Bom mesmo era que os astros se conjugassem para que tudo isto fosse desnecessário. Que as nuvens mais negras sobre os mercados de exportação desaparecessem e as empresas portuguesas conseguissem vender mais lá para fora. Que os aumentos de rendimento fossem mesmo dirigidos ao consumo de produção interna e não fossem colocados em poupança ou gastos em bens importados. Que o investimento, sobretudo estrangeiro, subisse para fazer baixar o desemprego. Que a despesa do Estado não derrapasse, como sempre acontece, obrigando a mais aumentos da carga fiscal.

 

É que o lastro da despesa pública fica sempre de uns anos para os outros. E esta só se paga de duas maneiras: impostos hoje ou impostos no futuro. Podemos iludir-nos com a tributação do consumo como alternativa aos impostos sobre os rendimentos. Mas não passa disso mesmo, de uma ilusão. No fim do dia, os impostos são sempre pagos pelos contribuintes. A diferença é que uns são pagos directamente à Autoridade Tributária e os outros são entregues a empresas que depois os entregam ao fisco. Podemos não dar conta deles, mas estamos a pagá-los na mesma.

 

OUTRAS LEITURAS 

 

 

publicado às 10:47

Eco precioso para entender e "ouver" o mundo

Por: Francisco Sena Santos

Eco. Três letras. Vinha a calhar dobrar o “c” para ganhar a grafia italiana, ecco: eis, aqui está! Eco, Umberto Eco é o sábio que nos enquadra o mundo em que vivemos e que nos ajuda a compreender muito do que ficou para trás. Soube não se fechar numa torre de marfim da sabedoria, escolheu meter-se com gozo no centro da arena da actualidade. Mestre nos estudos sobre a comunicação e, ao mesmo tempo, grande comunicador, Eco faz-nos entender a relação entre as coisas, os mecanismos da comunicação de massa.

 

Uma vez, há já bastantes anos, coincidindo com uma cimeira europeia que decorreu no Castello Sforzesco, em Milão – Bettino Craxi era o anfitrião e Mário Soares liderava a delegação portuguesa – uma livraria milanesa acolhia ao fim da tarde um debate no qual participava Umberto Eco.  Obviamente, foi irresistível a tentação para, por umas duas horas, trocar a cimeira político-económica que tinha sido o motivo da deslocação em reportagem para ir escutar e ver (ouver, como diz José Duarte) o mestre que se tinha tornado best-seller mundial com o apaixonante romance O Nome da Rosa.


Foi para mim (por mais que resista a falar na primeira pessoa, neste caso, é inevitável) uma experiência inesquecível, ainda que encavalitado sobre o corrimão de uma escada num equilíbrio que mal dava para acompanhar o essencial da sessão por entre tanta gente apinhada. Foi uma ocasião única.

Impressionante o modo como, a partir de cada palavra que era colocada pela jornalista da RAI que conduzia a discussão, aquele homem, erudito, divertido, cheio de humor, contava uma história e mais outra e mais outra, cruzando filosofia, literatura, ciência, religião, misticismo, política, jornais, revistas, televisão publicidade, design e até futebol. Com espírito fascinante, interrelacionando tudo. Várias vezes repetiu: estudem, é preciso que estudem para afastar a estupidez. Estudem a História para poderem compreender o tempo contemporâneo. E lá vinha a seguir mais um sorriso, um olhar para um lado e para outro, e uma outra história. Naquele fim de tarde ele parecia querer falar sobre significados em slogans políticos.


Eu tinha ido para aquela sessão cheio de curiosidade mas à espera de encontrar no professor famoso um homem distante, arrogante, talvez pedante. A impressão que ficou foi a mais oposta. É certo que não foi especialmente amável quando na porta de saída tentei colocar-lhe duas perguntas – respondeu, já com o chapéu de aba larga na cabeça, que estava atrasado, de facto a sessão tinha-se prolongado pelo dobro do tempo previsto - mas, perante aquela espantosa energia intelectual, aquele gosto de partilhar saber que gera cumplicidade, teria de sair daquela sessão fascinado por aquele jogo de inteligência conduzido por um sábio divertido.


Voltei, porque era essa a tarefa do ofício, à procura da actualidade da ocasião na cimeira política europeia no Castello Sforzesco e a tratar de a cruzar com o que ouvira de Eco. Caminhei a pensar numa das respostas naquela sessão: “Evitem as frases feitas, só os burros usam palavras triviais, descuidadas”.

 

Nesta terça-feira, 23 de fevereiro, a cerimónia fúnebre de Umberto Eco, o mestre dos códigos que gostava de rir dos poderes, o explicador do mundo em que estamos, o semiólogo, filósofo, professor, investigador, crítico, escritor, cronista, estrela mundial de primeira grandeza, decorre precisamente no Castello Sforzesco, em Milão. "La Repubblica" conta que Umberto Eco via aquele castelo da janela de sua casa.
Apetece retomar a leitura das 160 páginas de Número Zero (livro editado em Portugal em maio de 2015 pela Gradiva), um romance pleno de ironia em volta do tema da intriga e da mentira no jornalismo na história recente de Itália (tudo tem âncora em junho de 1992). Ou como um jornal que nunca chega a sair pode servir, não para difundir, mas para encobrir as notícias.


Eco, deveria ser ecco: sim, eis o sábio.


Está prometida para maio a edição de um último livro do sábio Umberto Eco, Pape Satan Aleppe, título escolhido a partir da enigmática abertura do Canto VII do Inferno, na Divina Comédia de Dante. Eco remete-nos, neste livro de crónicas, para a confusão do tempo contemporâneo.


TAMBÉM A TER EM CONTA:


Estão a faltar remos e motores para conduzir o bote da humanidade na direcção certa? É o alerta reforçado por Zygmunt Bauman, o filósofo da modernidade líquida.


O apelo do papa Francisco para uma moratória, em todo este ano, na execução de penas de morte, vai ser ouvido? Falta que não seja apenas moratória. Quando é que o mundo se livra da pena de morte?

Donald Trump (aqui em versão Game of Thrones, Winter is Trumping) está mais perto de ser o nomeado republicano para a final presidencial nos EUA em novembro. É, mesmo assim, menos perigoso para o mundo que Ted Cruz, o pupilo do Tea Party, e que Marco Rubio, o Neo Con. No campo dos democratas, no Nevada, Hillary Clinton ganhou, mas por poucos (sempre é melhor que perder) a Sanders. A próxima terça-feira é decisiva e Bloomberg está à espera de saber se há espaço vazio para ele avançar.

Em quatro anos, três prémios principais do Festival de Berlim para uma nova vaga de cineastas portugueses: depois de João Salaviza e Miguel Gomes (2012), agora Leonor Teles, com A Balada de um Batráquio.

O mexicano Alejandro González Inãrritu vai emparceirar com Ford e Mankiewicz e receber dois Óscares consecutivos (depois de Birdman, agora O Renascido) como melhor realizador?  Este é, finalmente, o ano de Leonardo DiCaprio? Ou o de Edie Redmayne? O de melhor atriz pode ser para outra que não Cate Blanchett? Spotlight, com seis nomeações, que estatuetas vai receber? A festa é já na noite de domingo para segunda e há que seguir tudo, também no SAPO.

Correntes d´Escritas, a partir de hoje, por cinco dias na Povoa de Varzim

José Duarte: 50 anos a fazer Cinco Minutos de Jazz. Eco precioso.

publicado às 07:31

European Union made in England

Por: António Costa

 

David Cameron conseguiu o acordo que queria, e que precisava de ter, com os outros líderes europeus para defender a continuação do Reino Unido na União Europeia. Graças a mais uma mão-cheia de exceções, particularmente o estatuto especial do país na zona euro e a defesa de mecanismos de supervisão bancária próprios, o referendo do próximo dia 23 de Junho vai ter a participação ativa do primeiro-ministro inglês no ‘não’ ao Brexit.

 

Em primeiro lugar, houve um acordo, e isso vale (quase) por si. Em mais uma daquelas maratonas negociais – com Merkel a mexer os cordelinhos sem aparecer e Hollande a não mexer os cordelinhos apesar de aparecer mais -, David Cameron, Juncker e Tusk percebiam que tinham de ter um entendimento. Seria mau para o Reino Unido e seria péssimo para a União Europeia. Não por acaso, todos suspiraram, desde logo uma longa lista de empresários e gestores britânicos, das maiores empresas e bancos, que assinou um manifesto a apoiar Cameron e a permanência no espaço europeu comunitário. O referendo não está ganho, mas está mais perto disso.

 

O Reino Unido reforçou os mecanismos de ‘saída’ da União Europeia, os instrumentos que lhe permitirão dizer não a uma participação em planos de integração decididos pela Alemanha e França, as formas de limitar a entrada de imigrantes e os respetivos custos e, claro, a autonomia do centro financeiro mais importante da Europa, a City. Do lado da União Europeia, voltou-se a ganhar tempo.

 

Num quadro de pressão extrema sobre o projeto europeu, porque as exigências do euro continuam a não ser entendidas e percebidas – veja-se o caso de Portugal -, porque não há uma resposta para a imigração e para os refugiados, a proliferação de regras específicas para o Reino Unido tem um risco: abre uma caixa de Pandora para outros países. O que poderão dizer Merkel e a Comissão Europeia nesse caso? Os países não valem todos o mesmo, apesar da retórica política, sabemos isso... Mas também é preciso dizer que o Reino Unido tem, desde o início dos tempos, um estatuto especial, e todos os outros sabem disso. E todos têm, ainda, mais vantagens do que desvantagens em estar na União Europeia e no euro, como se percebe pelo caso grego.

 

Provavelmente, terá também começado aqui uma nova fase de desenvolvimento da União Europeia. Por um lado, um arrefecimento do ativismo burocrático e legal, e centrado no essencial; depois, um aumento das negociações bilaterais que permita manter o ritmo da integração. Será mais difícil, provavelmente mais lento do que seria necessário, mas mais bem recebido pelas populações dos países da União. Uma nova fase europeia made in England.

 

AS ESCOLHAS

 

Não se trata de uma escolha, porque, como se sabe, as únicas coisas certas na vida são a morte e os impostos. É sobretudo uma necessidade, a de acompanhar o primeiro dia de debate do Orçamento do Estado, hoje no Parlamento. Sem surpresas, a Esquerda Parlamentar anunciou o voto favorável a um orçamento que, dizem, é do PS, não vá a coisa dar para o torto. E tem tudo para isso.

 

Hoje, no Diário Económico, uma entrevista a Vítor Bento. O economista e ex-presidente do Novo Banco diz em público o que começa a ser sussurrado nos corredores do poder, a nacionalização do Novo Banco. Por duas razões, a segunda menos discutida. A primeira, claro, resulta da ideia de que é cada vez mais difícil vender o Novo Banco. Mas é o segundo argumento que vai dar mais brado: Bento vai mais longe e avisa para os riscos de uma transferência do poder de decisão de todos os bancos privados para Espanha. A discussão só agora começou.

 

E, agora, do outro lado do Atlântico, as primárias estão em velocidade de cruzeiro e, no fim de semana, na Carolina do Sul, Donald Trump e Hillary Clinton, sobretudo o primeiro, reforçam as suas posições. E o mundo treme com a expectativa de ter Trump e Putin em cimeiras internacionais. Leia aqui, no SAPO24, o que está em causa nas eleições norte-americanas.

publicado às 11:07

Os meus ecos de Umberto

Por: Márcio Alves Candoso

 

 

Achei interessante ir ler, no Facebook, o que se diz de Umberto Eco. Soa-me como a vingança. O homem que abominava as redes sociais – 'deram o direito a falar a legiões de idiotas' – não escapou, na sua morte, ao escrutínio das mesmas. Mas presto-lhe vassalagem. Ele tinha razão quando disse – e se mais não dissesse, e muito disse, isso quase bastava para a imortalidade – que não há texto ou livro que escape, nem que se complete, sem a interacção do leitor. Na verdade, é de uma 'obra aberta' que falamos quando lemos as diversíssimas leituras que todos fazemos das mesmas coisas que o mesmo diz. O eco – sim, não escapo ao som e ao signo – das suas palavras é entendível de modo diverso conforme o receptor. E mais do que isso – cada um amplia a parte da sua imensa retórica que mais lhe interessa. Quem fala de tudo e de todos arrrisca-se a milhentas interpretações, ou era essa mesmo a sua intenção? Talvez só o próprio Umberto soubesse responder a isto.

 

Há, nos computadores e na Internet, tal como Eco soube antes de todos, uma perversão do tempo, no que ao passado e à História diz respeito. Vejamos o 'word' em que agora escrevo. Se não o sinalizar com uma data, basta um dia mudar-lhe vírgulas para que ele assuma o tempo novo e revisto; e perde-se para sempre o dia em que escrevi primeiro. Por velhice ou sabedoria – ou as duas coisas entrelaçadas –, Umberto Eco ficou-se pelos livros, quer os ensaios que enunciou abundantemente enquanto académico, quer os romances que, segundo ele, começou a escrever quando já tinha feito quase tudo – ou seja, aos 48 anos. Ou ainda, e sempre numa versão do próprio, porque quando não se pode teorizar deve narrar-se.

 

O que é um pouco a vida que lhe fui apercebendo. Um homem que dizia que a mentira tem muito mais interesse do que a verdade – 'o que torna os signos interessantes não é servirem para dizer a verdade, mas poderem ser usados para mentir ou falar de coisas que nunca vimos' –, tinha por força de ir além da criação de uma ciência. Para quem, como eu, ainda hoje ser semiótico e não semiológico faz quase tanto sentido como a frase de Bond 'shaked not stirred', é evidente que se pode ler Eco no esoterismo ou na sua recriação quase cómica. E no entanto – lembram-se? - foi por causa do riso que morreram frades.

 

Aliás, numa das suas últimas entrevistas – já se pode dizer últimas, e não 'mais recentes', porque a morte dá-nos o direito a só ter passado -, o professor de Bolonha e autor de 'O Nome da Rosa' anunciava que não tinha ainda iniciado a sua próxima obra, que era um ensaio sobre a comédia. Não teve tempo. Alguém aí para o fazer? Não se importará Eco, de certeza, com isso. Não um homem que dizia que a literatura universal era sempre repetição, e que já Homero repetia a tradição oral, milenar, anterior a ele. 'Se os textos são máquinas preguiçosas que precisam da colaboração do leitor, então este, quando passa a escritor, reescreve essa mesma obra que o influenciou'. E 'quando lemos um livro devemos perguntar a nós próprios não o que diz, mas o que significa'. Foi ele que disse, e já não pode voltar com a palavra atrás.

 

Lembro-me bem do dia em que Umberto Eco me foi apresentado. Lembro? Não, minto. Sei porque dato os livros que vou comprando, e a minha memória é tão só isso e o efeito que me ficou de os ler. É um daqueles ensaios curtos, sessentistas, sem data por mim descoberta mas exalando data no que escreve, que o autor publicou por volta da 'Obra Aberta' e dos 'Apcalípticos e Integrados'. Era sobre vestuário, uma paixão minha antiga, que Eco titulou de forma banal 'O Hábito faz o Monge'. Nos livros, como ele dizia, por vezes procura-se uma forma de nos justificarmos; e eu fiquei contente, naquele Fevereiro de 79 em que li o texto, quando ele me disse que, no que vestimos, está uma forma de nos exprimirmos, que é algo mais do que comunicarmos e diferente de exibirmo-nos. Daí partia para a arte da sedução pelo gesto/signo, os trajes do teatro como denotações, ou a mini-saia, que naquele tempo, dizia ele, na Catânia [Itália profunda] transmitiria a ideia de uma rapariga leviana, em Milão a de uma rapariga moderna, em Paris a de uma rapariga, tão só, e em Hamburgo, no 'red district' da Rieperbahn, poderia muito bem ser um rapaz...

 

Sobre o islamismo e a sua invasão da Europa, assume a sua faceta de 'pop-star' que é um pouco parte da sua segunda metade da vida

Falava de religião mas não esquecia o diabo. Era tão incoerente como qualquer um que muito pensa, muito escreve e muito diz. Na revisitação que lhe faço, à hora da sua morte, encontro o que sempre dele tive – umas coisas sim, outras coisas não. Umberto Eco é, para além de um precursor, um 'self-service' de citações. Não esqueceu que a religião tanto pode ser, como dizia Marx num dia aziago, o 'ópio do povo', como a sua cocaína, porque para muitos funciona como um despertar e acelerar a revolta, tida como redenção.

 

Sobre o islamismo e a sua invasão da Europa, assume a sua faceta de 'pop-star' que é um pouco parte da sua segunda metade da vida. Tão depressa lemos textos em que fala de 'nazismo islâmico' – mas pior que o primeiro, porque este está no meio de nós, não para lá de uma fronteira de guerra que dele nos separa, e que nos permitiu combatê-lo eficazmente, segundo Eco – como em seguida se mostra entre o justificativo e o complacente para com as migrações actuais. Umberto Eco era um europeísta convicto. Em dez minutos, no mesmo texto, assume o terror pelo futuro dos netos, numa sociedade islamizada e numa Europa que 'vai mudar de cor', na qual vai 'correr muito sangue', logo antes de afirmar que, quem não encarar a mudança - que prevê inelutável – 'mais vale suicidar-se'. Acredita que, um dia, se encontrará um novo equilíbrio, como depois das invasões bárbaras no Império Romano, mas que antes acontecerá 'algo de terrível'.

 

Mas culpa a França, por ter querido impor a ética da República aos migrantes – ele não põe 'i' antes da palavra – sem nunca ter conseguido integrá-los, afastando-os para guetos nos subúrbios. 'Se os muçulmanos morassem em redor de Nôtre-Dame seriam diferentes', sustentou já depois dos atentados ao 'Charlie Hebdo'. 'Um muçulmano em França torna-se fundamentalista porque a sua integração não foi completa nem podia ser, a longo prazo pode haver integração, mas no curto não; e a não integração produz uma reacção que só pode ser o ódio', afirma. Parece óbvio, que para o historiador/filósofo, o 'longo prazo' tem uma largura imensa.

 

Um homem que, de si próprio, dizia que o fim da vida lhe tinha dado para odiar a Humanidade, continuava a ser um optimista a quem, aparentemente, tinham roubado o húmus de que alimentava essa esperança, roteada na guerra erm Itália e nas esquinas onde se escondia, diz ele, 'porque numa esquina há sempre dois lados para onde fugir'. Da Universidade onde passou grande parte da vida – principalmente em Bolonha, mas convidado em Columbia, Toronto, Harvard, Collège de France e mais meia dúzia – dizia agora que era boa ideia tê-la aberto a tanta e tanta gente. Mas logo depois aduzia que o facilitismo recente encerra uma perversão inelutável. 'Nos três primeiros anos [das faculdades] os alunos não lêem livros com mais de cem páginas; no meu tempo tive que ler milhares e milhares de páginas e não morri por causa disso', desabafava.

 

Termino com uma nota pessoal. Umberto Eco, a certa altura, 'meteu-se' com o Super-Homem. Não um ensaio sobre Nietzsche, mas sim sobre o personagem da BD americana. Sob o seu olhar semiótico – que não é, cedo uma vez mais à anedota, ver só com um olho -, o leitor das aventuras do 'homem de aço' inventado por Jerry Siegel é subjugado à condição de fantoche dominado pela propaganda do poderio norte-americano, ilustrada na força do super-herói que tudo resolve em três tempos. Uma imagem que faz ascender o cidadão comum, personificado pelo seu alter-ego Clark Kent, ao seu desejo de perfeição, ao rechaçar da sua impotência para vencer as frustrações. Baseado no que lhe impelem as aspirações de status, de nível social, inconscientemente integrado, o sujeito esquece-se e perde a sua identidade.

 

Mas eu sempre quis ser Clark Kent. Já não vou poder perguntar a Eco se tenho alguma coisa de errado.

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado às 20:08

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