Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Como a América irá por ordem no mundo (se Trump for presidente)

Por: José Couto Nogueira

 

Existe, indubitavelmente, a possibilidade de Donald Trump ser o próximo Presidente dos Estados Unidos. Embora abundem as paródias sobre “o Donald” (como lhe chamam os desafectos), e apesar de os seus comícios serem cada vez mais tumultuados, com cenas de pancadaria e demonstrações inequívocas de racismo, não há como ignorar que Trump tem ganho sistematicamente as primárias do seu partido e, não acontecendo um milagre, ou uma catástrofe, será o candidato republicano às presidenciais de Novembro.

 

Mesmo que os comentadores – e uma maioria do eleitorado, segundo as últimas sondagens – considerem a vitória improvável, a realidade é que pode acontecer. Entretanto, Trump, entre uma piadola machista e um comentário racista, tem vindo a aperfeiçoar o discurso, isto é, a apresentar o que será a sua politica como Presidente. Na sexta feira passada deu uma longa entrevista telefónica ao “New York Times” em que expôs de modo mais coerente qual será a sua postura na arena mundial. Pode ter dito coisas surpreendentes, mas não fez declarações disparatadas. Ou seja, temos agora uma noção mais próxima do que acontecerá no mundo em que Mr. Trump será Mr. President.

 

As afirmações mais inesperadas foram certamente sobre a questão da dependência petrolífera dos Estados Unidos em relação aos países produtores, especialmente a Arábia Saudita. “Se não fosse a protecção norte-americana, acho que a Arábia Saudita já teria desaparecido”, afirmou. Portanto a sua ideia é fazer-se pagar por essa protecção, invertendo a equação: ou os sauditas entram com tropas na luta contra o Califado Islâmico, ou os Estados Unidos deixam de lhes comprar petróleo. Além disso, quer ser reembolsado pelas despesas militares na zona, uma vez que a instabilidade provocada pelos radicais afecta sobretudo os estados produtores.

 

Esta forma economicista de fazer prevalecer o domínio norte-americano, aplica-a ele também a outras situações. Por exemplo, está disposto a permitir que o Japão e a Coreia do Sul construam os seus arsenais nucleares próprios, em vez de dependerem dos EUA; e exigirá pagamento para a manutenção das suas forças militares nos dois países.

 

Ou pagam, ou defendem-se sozinhos

 

Diz Trump que o poder americano se diluiu em muitos tratados – com é o caso da defesa do Japão – que constituem uma enorme despesa e que terão de ser renegociados em condições económicas mais vantajosas. Apesar de não definir objectivos estratégicos, quer reequacionar os actuais mediante uma espécie de chantagem: ou os parceiros pagam, ou se defendem sozinhos. Também é o caso da NATO, que é quase totalmente subsidiada pelos Estados Unidos, não só em forças militares disponíveis como em equipamento e outras despesas. Para ele, a NATO como está não faz sentido, pois uma guerra tradicional não se apresenta no horizonte; deveria reconverter-se como força anti-terrorista.

 

Estes pontos de vista representam uma mudança de 180 graus na politica histórica dos Estados Unidos. Não se percebe até que ponto Trump tem a noção das dificuldades internas que teria para levar a cabo tal mudança.

 

Quanto ao expansionismo territorial chinês – a China presentemente disputa algumas ilhas do pacífico – também pretende combatê-lo através de sanções económicas. Os chineses dependem maioritariamente do mercado norte-americano e basta uma ameaça de que esse mercado se restrinja para provocar uma crise de grandes proporções na China.

 

Estas politicas não só são originais – caso sejam possíveis – com divergem completamente das posturas republicanas tradicionais. É o próprio Trump que salienta: “Não sou internacionalista como Bush pai, nem pretendo espalhar democracia pelo mundo, como Bush filho. A minha politica é A América Primeiro.” Acrescenta que não é isolacionista, mas quer que os parceiros paguem a sua colaboração, com tropas ou fundos. A colaboração dependeria mais da atitude dos outros – amistosa ou hostil – do que dos interesses estratégicos deles.

 

De toda a entrevista, esta talvez tenha sido a afirmação mais sentido:, Trump revelou que agirá de modo imprevisível, porque a previsibilidade dos americanos tem facilitado a vida aos adversários dos americanos. Por exemplo, agiria em relação aos chineses, concretamente às suas pretensões sobre as ilhas do Mar do Sul da China, ameaçando como um aumento de tarifas alfandegárias, ou mesmo proibição de importar certos produtos, mas sem lhes fazer ver quais seriam as suas linhas vermelhas. Em termos de imprevisibilidade, é pouco.

 

Os Estados Unidos, diz Trump, atingiram a sua maior grandeza no princípio do século XX, quando o Presidente era outro republicano pouco convencional, Theodore Roosevelt. E os seus heróis são dois generais da II Guerra Mundial, George Patton e Douglas MacArthur – embora, surpreendentemente, não esteja de acordo com a decisão de MacArthur de bombardear atomicamente o Japão. Foi essa a outra grande surpresa da entrevista: Trump não é a favor de ofensivas nucleares e afirma que nunca será o primeiro a usar a bomba atómica.

 

O Donald já está a pensar à escala global

 

Também não é a favor de colocar tropas no terreno. Diz que prefere ameaçar do que fazer, e que seria essa a sua postura em relação, por exemplo, à Arábia Saudita. (O que não faz muito sentido, tanto porque lá se vai a imprevisibilidade como volta a necessidade de bombardear...) A sua preferência por militares também se aplica aos conselheiros que eventualmente escolherá: dois generais e um almirante, todos reformados.

 

Quanto à delicada situação dos Estados Unidos terem espiado toda a gente, inclusive dirigentes europeus, Trump evitou uma resposta conclusiva; acha normal que se espie os aliados, pois eles certamente farão o mesmo, mas não concorda que os serviços de espionagem tenham bisbilhotado o telemóvel de Ângela Merkel. A propósito, afirmou que a chanceler tinha feito muito mal em autorizar a entrada dos refugiados. Segundo ele, a Europa e os estados do Golfo deviam pagar para que se criassem áreas seguras dentro da Síria onde os refugiados viveriam até a situação se normalizar.

 

Sobre um tema que é sempre essencial a qualquer candidato presidencial, a situação de Israel e de Gaza, preferiu não se pronunciar. Terá que fazê-lo num futuro próximo mas é evidente que, enquanto puder, evitará o assunto. Apenas disse que é a favor da solução Dois Estados, desde que os palestinianos reconheçam a existência de Israel.

 

Nesta altura do campeonato, Trump demonstra uma postura precisamente contrária ao que diz, ou seja, isolacionista. Exactamente como Bush filho, antes do 11 de Setembro ter virado a política americana de cabeça para baixo. Além disso, em geral, Trump apresentou soluções que não parecem muito bem pensadas; seria difícil prescindir do petróleo do Golfo, ou sequer fazer bluff com a Arábia Saudita nesse ponto, por exemplo. Assim como seria difícil estabelecer barreiras alfandegárias para os produtos chineses, pois vai contra toda a politica de livre comércio que os americanos sempre defenderam. Muitas das decisões apresentadas por Trump – se não todas – teriam de passar pelo legislativo, e nada lhe garante que o Congresso aprove alterações tão radicais.

 

De qualquer modo, o Donald já está a pensar à escala global. Nessa escala, a maioria pensa que um Presidente Trump seria uma catástrofe de proporções bíblicas. Mas não é o globo que irá tomar essa decisão, chegado Novembro.

 

 

 

publicado às 16:30

Lisboa, nem menina nem moça

 

 

 

Por: Pedro Rolo Duarte

 

Havia alguém - julgo que a Catarina Portas, agora na lista das presidenciáveis para a Câmara de Lisboa, e muito justamente… - que escrevia, há pouco tempo, que o futuro mais provável do turismo em Lisboa seria o triste cenário dos turistas virem à capital de Portugal verem… outros turistas. Era o fenômeno da gentrificação (gentrification, no original inglês) elevado ao cubo: o centro da cidade tornar-se-ía tão caro e inabitável que os lisboetas se transfeririam para os subúrbios (onde já vive a maioria…), deixando os bairros centrais nas mãos dos hotéis, hostels, turismos de habitação.

 

 

Na verdade, o lisboeta - falo por mim - já se sente um pouco excluído da sua cidade quando, por exemplo, se confronta, no trânsito, com o caos em que a baixa se tornou, com a ditadura do estacionamento pago, com os preços da restauração (que ameaça, na soberba de quem nunca ouviu a história da galinha dos ovos de ouro, que nem a descida do IVA a fará praticar preços mais razoáveis…).

Também se sente, no mínimo, atordoado, quando superfícies comerciais como o El Corte Inglês, decidem comunicar promoções e novidades, nos seus espaços, em português, inglês… e chinês! Por fim, com o preço do metro quadrado de venda e arrendamento na zona central da cidade. Viver em Lisboa tornou-se um luxo, em todas as frentes.

 

Restavam alguns segredos que só mesmo os lisboetas conheciam - algumas tascas, lojas de bairro, um café onde o pastel de bacalhau é perfeito, uma esplanada ainda tranquila… -, o património edificado e aparentemente intocável, fosse o Ateneu Comercial ou o Avenida Palace; e o mais clássico do comércio da Baixa (a mais recente condenada à morte foi, esta semana, a drogaria S. Pereira Leão, mais um hotel a caminho). Mas também por aí vai o buldozzer da modernidade arrasando tudo, sem que lhe ponham travão de qualquer espécie - e assim vivemos, em simultâneo, a explosão do turismo e a implosão da vida que lhe deu sentido. Só não vê quem não quer ver.

 

Posso admitir que seja difícil conciliar o negocio puro e duro com o interesse cultural e histórico - mas é fácil aceitar que esse mesmo negócio só tem interesse enquanto se sinta a autenticidade que o sustenta. De nada serve exibir a fotografia de um pastel de nata que não se pode provar - como de nada serve ter um edifício histórico (por exemplo, a sede do Diário de Notícias, em breve…) de que só resta a fachada, e que esconde um moderno hotel ou centro comercial.

 

O que estamos a assistir, com passividade quase criminosa, é à morte, primeiro lenta, agora acelerada, de uma cidade que se distinguia justamente por não ter caído na teia luminosa da fachada sem interior, da aparência sem consistência, e da existência sem coração.

 

Gostava sinceramente que a “Lisboa Menina e Moça” que Carlos do Carmo tão bem canta (e Ary dos Santos maravilhosamente escreveu) não fosse, amanhã, uma memória sem tom nem som da cidade onde nasci e vivo.

 

Estamos a tempo de parar para pensar, de legislar para controlar, e de decidir que raio de cidade queremos para os nossos filhos. Mas o tempo escasseia - e ainda há por aí muito para destruir, mutilar, escavacar. E vontade não falta a quem nunca ouviu a tal história da galinha cujos ovos eram de ouro… até ao dia em que deram cabo dela.

 

 

 

ESTA SEMANA ANDEI POR AQUI E FIQUEI A PENSAR…

 

Apesar de existir desde a década de 30 do século passado, só agora descobri a Nieman Foundation for Journalism, que nos dias que correm se ocupa a tentar perceber que caminhos leva esta profissão. Vale a pena conhecer o site, vale a pena conhecer teorias e ideias para o futuro do jornalismo na era digital

 

Circula pelo mundo uma fabulosa revista que nos faz regressar à simplicidade da vida, do design, das ideias. Chama-se Kinfolk, nasceu em Copenhaga, sai quatro vezes por ano. É mais cara do que um livro mas muitas vezes dá-nos mais do que um livro. Vende-se em Portugal, em meia-dúzia de lojas, e custa 22 euros. Mas vale a experiência, nem que seja uma vez. Aqui se conta a sua história e filosofia - “é difícil definir uma revista de lifestyle, mas é como a pornografia: quando se encontra, percebe-se logo o que é…” -, e o link segue directo para a revista.

 

Na semana em que o Twitter assinala o seu décimo aniversário, uma análise critica de uma jornalista que, apesar de o ver como uma perda de tempo, acha que daqui a dez anos continuará por aí a dar cartas…

 

publicado às 08:52

No gastar é que está a virtude?

Por: Paulo Ferreira

Com o garrote da austeridade mais aliviado, era bom que evitássemos o regresso a essa forma enviezada de olhar para as intervenções do Estado: a virtuosidade das políticas públicas está nos resultados que podem produzir e não na dimensão de despesa que fazem.

 

 

 

Fui lendo as notícias que pré-anunciavam o lançamento do Plano Nacional de Reformas e, confesso, temi o pior. Praticamente todas destacavam o montante de dinheiro que o Governo pretende colocar nesse plano, a magnífica soma de 11 mil milhões de euros ao longo dos próximos anos. O comum dos mortais não consegue ter uma noção de quanto dinheiro estamos a falar, apenas que é muito dinheiro.

 

 

Depois apareciam os “pilares” em que se vai “apostar” e os “eixos em que se desdobram”. Nada de novo, lá estavam os suspeitos do costume: qualificar os portugueses, promover a inovação na economia, valorizar o território, modernizar o Estado, capitalizar as empresas e reforçar a coesão e igualdade social. É assim há décadas, desde que se inventaram estes chavões, o que mostra que resolvemos muito pouco e continuamos com quase tudo por fazer.

 

 

Mas não é este o ponto onde quero bater. É no tique nacional de medir as políticas públicas pela despesa que se faz com elas, pelo dinheiro que se coloca nos programas. Não é pelas metas nem pelos objectivos, não é pelo processo nem pelas pessoas ou entidades que serão impactadas, muito menos pelo acréscimo de produto, de indicadores de qualidade de vida, investimento ou emprego que elas poderão induzir, conforme os casos. O que conta é a quantidade de milhões que se atiram para cima dos temas e problemas, como se o mais importante fosse apenas gastar.

 

 

A Cultura tem menos dinheiro? Estamos, claramente, perante um governo de ignorantes. A Saúde vai gastar menos? Está a desmantelar-se o SNS. Pouco importa que até se possam produzir melhores resultados com uma utilização mais eficiente de menos recursos. O que conta é o dinheiro que se gasta.

 

 

Este foi um tique de que nos tínhamos afastado nos últimos anos, tal era a noção de falta de verbas. Agora, com o garrote da austeridade mais aliviado, era bom que evitássemos o regresso a essa forma enviezada de olhar para as intervenções do Estado: a virtuosidade das políticas públicas está nos resultados que podem produzir e não na dimensão de despesa que fazem.

 

Felizmente que o documento do Governo que lançou o PNR está bem composto de metas e objectivos, relegando para último plano o montante de financiamento. E que António Costa, no discurso de apresentação, nem sequer fez do montante de despesa uma bandeira. 

 

É certo que o essencial dos 11 mil milhões vem das verbas comunitárias do Portugal 2020 que já estão comprometidas com o país. É um “baralhar e voltar a dar” do que já se conhecia e não despesa adicional para fazer. É possível que, na comunicação política, isso tenha pesado na discrição que o anúncio oficial reservou a esse dado.

 

Eu prefiro acreditar que algumas coisas aprendemos com a bancarota. E que uma delas é que atirar indiscriminadamente com dinheiro para cima dos problemas não só não os resolve como nos cria novos problemas.

 

Agora só é preciso avisar as redacções que mais importante do que saber quanto custa o par de ténis é saber quanto é que vamos conseguir correr com eles.

 

 

Outras leituras

 

  • O mar é a nossa eterna aposta adiada. Sabemos que o temos como poucos, que a sua riqueza é incalculável, que tem a capacidade de dar a volta a uma economia. Também sabemos como, para além de discursos bonitos, temos sido incapazes de definir uma estratégia para a ele e, sobretudo, de a executar. Agora sabemos mais esta coisa: uma zona nos mares entre os 200 e os mil metros de profundidade pode alimentar o mundo.

 

 

publicado às 03:34

O espetáculo do medo. Mas continuamos a ter o comando para mudar de canal

Por: Francisco Sena Santos

 

Vivemos um tempo em que as tragédias nos chegam transformadas pelos media em espetáculo. Tivemos na última semana exemplos de sobra dessa exploração mediática da dor e da morte. Tanto com um desastre rodoviário numa estrada de França como com os atentados em Bruxelas.

 

 

Foquemo-nos nos atentados na capital europeia: sabemos que os terroristas contam com a ação dos media para amplificar a sua agressiva mensagem de terror e gerar a onda de medo. Os terroristas servem-se da lógica dos media, conhecem-lhes a gramática, exploram os mecanismos psicológicos. Questão: como pode o jornalismo tratar a informação sobre os ataques terroristas sem ao mesmo tempo servir a propaganda pretendida pela perversa agenda dos agressores?

 

Há alguns exemplos de práticas que são bons casos de estudo. Não estão vistas, não foram exibidas, imagens de corpos devastados no 11 de Setembro em Nova Iorque. Que imagens temos desse dia? Vimos um dos aviões a aproximar-se e a chocar com uma das twin towers. Vimos as explosões - e não podemos alguma vez esquecer essas imagens. Tal como as do aterrador desmoronamento das torres. Mas quase não vimos pessoas, os corpos não foram visíveis, o seu sofrimento não foi exposto. Há imagens de pessoas, homens e mulheres que, para escapar ao inferno das chamas, se atiraram sobre o vazio a partir de andares altos das torres. Mas nunca nos foram mostrados grandes planos dessas pessoas que saltaram para outro modo de morrer. Não as vimos de perto, não lhes vimos o rosto em sofrimento. Percepcionamos esse tremendo sofrimento, mas somente na nossa imaginação. Ele não nos foi mostrado. Não era preciso exibir em grande plano essa atrocidade a que cada pessoa foi submetida. É sabido que esta ausência de corpos das vítimas do 11 de Setembro alimentou polémicas, sobretudo a especulação de que os americanos ocultaram as imagens dos corpos porque quiseram evitar mostrar que deixavam de ser intocáveis. Mas é facto que as imagens (e a sua incessante redifusão) de corpos destroçados nada acrescentariam à compreensão do que estava em causa.


A guerra iniciada nesse 11 de Setembro de 2001 está repleta de momentos de tremenda atrocidade. Também houve pudor com as imagens do 11 de março de 2004 em Madrid. Ou com a decapitação, em 2014, do jornalista James Foley: então, os media de referência recusaram-se a exibir o chocante vídeo da execução realizado pelo autoproclamado estado islâmico. Aquele vídeo era a apresentação de um troféu como propaganda dos assassinos. Foi bem evitar a difusão do espectáculo do terror.


É facto que há imagens de violência que têm a virtude de serem reveladoras. São por isso necessárias. Os vídeos do espancamento de Rodney King, em 1991, por agentes da polícia de Los Angeles, ou o do assassinato de Walter Scott, em 2015, por um polícia de North Charleston, serviram para documentar a brutalidade de algumas práticas por polícias nos EUA.


Há muitos horrores que só realizamos terem acontecido por termos visto a prova em imagens. My Lai ou Abu Ghraib são exemplos clássicos. Mas não precisávamos de ver as imagens de corpos de turistas massacrados por terroristas na praia de Sousse, na Tunísia, no ano passado, para entendermos a monstruosidade daquela matança. Tal como outras praticadas pelas internacionais terroristas.
Sabemos que propaganda é informação que transmite de modo poderoso uma mensagem. Os terroristas que atacaram em Paris, em Istambul, em Ancara ou em Bruxelas contam com o efeito de ampliação da bomba mediática que aqueles lugares produzem e que não é atingida numa matança em Bamako ou em Lahore. O kamikaze que se fez explodir este domingo de Páscoa num parque frequentado por famílias na principal cidade do Punjab paquistanês levou pelo menos 72 vidas (entre estas, 30 crianças) e feriu 340 - "vil atentado", definiu o Papa. A dimensão do massacre é muito maior que a dos ataques em Bruxelas mas o tratamento mediático é quase passageiro. Em contraste com a exploração non stop no habitual loop catódico dos ataques em Bruxelas.

 

Obviamente, há o efeito de proximidade. Bruxelas é uma nossa referência cultural, é a capital do que queremos que continue a ser a nossa Europa. Está lá uma parte substancial do comando administrativo da nossa vida. Estão lá dezenas de milhar de compatriotas. Morreram nos atentados de 22 de março 30 pessoas e ficaram feridas 300. É terrível, sim. Mas a cobertura exaustiva, muitas vezes tão especulativa quanto pouco profunda, tende a acabar por servir a instrumentalização desejada pelo inimigo que ataca. O apocalipse relatado, se levado ao extremo, tenderia a levar os cidadãos europeus a barricarem-se em casa e a só saírem à rua dentro de um blindado. Esta espécie de convergência entre  terroristas e sistema mediático gera uma onda de medo. O poder simbólico e emotivo dos atentados contra populações civis, relatados em emissões em contínuo e dramatizadas por um sistema mediático que sabe que o terror vende, torna-se cada vez mais gerador de ânsias e medos coletivos. Este espectáculo do medo é uma armadilha. Ainda que a nossa vida de todos os dias siga igual, embora, talvez, com acrescido sentimento de insegurança.

 

A estatística europeia apurou que ao longo do ano 2014, no conjunto dos 28 países da EU, morreram 25.896 pessoas em acidentes na estrada. A comparação com os efeitos, também devastadores, dos atentados terroristas, não pode deixar de nos fazer parar para pensar. Estamos numa guerra e até por isso não dá para que se instale o espetáculo do medo.

 

 


TAMBÉM A TER EM CONTA:
 


O Nobel turco Orham Pamuk constata no El País: “a crise migratória está a comer os valores da Europa”. É uma entrevista para ler aqui.


A reconquista de Palmira revela que a jóia arqueológica no deserto sírio não estará tão irremediavelmente devastada quanto se temia. A cidade antiga, apesar de profanada, sobrevive à barbárie.


Mick Jagger levou a Cuba a voz que canta the times are changing. Mas também mudam nos EUA: os êxitos de Bernie Sanders mostram como a política dos Estados Unidos tem novas regras. O senador progressista continua a seduzir eleitores e a encravar a prevista marcha triunfal de Hillary Clinton. Entre os republicanos, algumas elites moderadas estão a constatar que perdem o partido para Donald Trump. Vale lembrar que o democrata Michael Dukakis, no início do verão de 88, tinha 10 pontos percentuais de avanço sobre George Bush mas, em novembro, o republicano foi quem venceu. Pode estar no horizonte um regresso ao passado?

 

A pessoa que dá corpo à personagem do vilão Frank Underwood: Kevin Spacey, o ator que abre portas a jovens talentos.

 

A primeira página escolhida hoje no SAPO JORNAIS. Luaty Beirão condenado a cinco anos e seis meses de prisão e outros 16 activistas enfrentam penas de dois a oito anos. "Só um regime covarde enjaula assim", comenta no Expresso o diretor, Pedro Santos Guerreiro. Em Angola, é mostrado assim. E assim.

publicado às 08:16

BPI, cómico se não fosse trágico

Por: António Costa

 

Mais de um ano depois de se saber que o BPI tem de reduzir a sua exposição a Angola, e a dias do fim do prazo imposto pelo BCE, os acionistas CaixaBank e Isabel dos Santos continuam desavindos e agora até o primeiro-ministro está ‘metido’ nas negociações deste casamento de conveniência com divórcio anunciado. Se não fosse grave, até teria graça, se não estivesse em causa um banco, se fosse ‘apenas’ uma guerra de espanhóis e angolanos, se não fosse trágico, até seria cómico. Não é.

 

O que está em causa é o BPI, e não só, é a própria estabilidade de um sistema, o financeiro, que está longe de estar resolvido e sustentado, como se sabe e como se suspeita. Por detrás do pano de fundo destas discussões, o que parece evidente é que o Caixabank está a aproveitar o que considera ser um ‘upside’ de imagem em relação à empresária angolana, em Portugal e em Frankfurt. Nas duas últimas semanas, o acordo já foi ‘anunciado’ na imprensa mais do que uma vez, já foi até aprovado um princípio de acordo na Unitel, principal acionista do BFA, o banco angolano controlado maioritariamente pelo BPI e que é a fonte original do problema. Depois, ‘qualquer coisa’ emperrava o acordo final.

 

A estratégia dos catalães não é de agora, nem sequer apenas com Isabel dos Santos. Quando lançaram uma OPA sobre o BPI, há cerca de um ano, levaram a sua até o fim. E não fizeram negócio. Ofereceram 1,3 euros por ação, quando o conselho do BPI fixou um mínimo justo de 2,25 euros por ação. Teriam resolvido o problema então, não o fizeram e recorreram, depois, à influência politica de Artur Santos Silva junto do PS e de António Costa. Foi o pecado original do primeiro-ministro, que aceitou meter-se num negócio privado.

 

O Governo preparava-se para legislar à medida, para deitar abaixo uma blindagem de estatutos que garante que todos os acionistas do BPI votem com 20%, independentemente da posição que têm. O CaixaBank tem 44%, e é justo que possa votar com essa posição, sim, mas tem de pagar o preço justo para isso.

 

É claro que Isabel dos Santos tem uma arma negocial relevante, a posição acionista no BFA e, claro, o Banco Nacional de Angola atuará, com uma nacionalização do BFA, se Portugal fizer uma lei à medida para favorecer os catalães. Alguém os pode, mesmo, criticar? O CaixaBank viveria bem com isso, Portugal é que não, porque se precisamos de Espanha, e precisamos, também precisamos de Angola. Sobretudo, precisamos de capital estrangeiro, do bom, que tenha projeto empresarial e não objetivos políticos. Hoje, só motivamos o interesse do capital espanhol e do angolano, não chega, é preciso mais.

 

Não alinho na estratégia anti-espanhola e na defesa dos centros de decisão, sabemos o que isso nos trouxe, mas rejeito a ideia de uma banca privada controlada por um país terceiro, em Madrid ou qualquer outra capital, e mais ainda a subserviência aos interesses do BCE e dos poderes europeus, para os quais seria mais fácil supervisionar Portugal como mais uma província espanhola.

 

O CaixaBank, claro, conta com o apoio explícito do BCE e o Banco de Portugal, já nem sequer disfarçam, e agora o Governo também já se envolveu no processo, o que não ajuda, envieza as negociações, torna-as políticas quando são económicas e financeiras. É também isso que levou o CaixaBank a fechar as negociações de forma unilateral, sem acordo. E conta também com a imagem negativa de Angola em Portugal, cíclica, sempre que o país está em crise e não ‘está’ investidor.

 

Com o relógio a contar, o anúncio informal do regresso das negociações conhecido hoje pode ser um bom indício de que, afinal, o CaixaBank já encontrou os limites da sua negociação, condição necessária, mas não suficiente, para um acordo no BPI.

 

As escolhas

 

Hoje vamos ouvir Marcelo Rebelo de Sousa à hora dos telejornais, exatamente às 20 horas. Na primeira comunicação relevante do seu mandato em Belém, o Presidente vai anunciar a promulgação do Orçamento do Estado para 2016, isso já não é notícia. A notícia será outra. O que vai dizer Marcelo sobre as opções económicas e orçamentais de António Costa? Vai continuar a alinhar o discurso com a estratégia dos afetos e da esperança ou vai alertar para os riscos – evidentes – da realidade? Marcelo não quer que o Orçamento entre em vigor no dia 1 de Abril, para evitar as piadas fáceis. Mas as piadas fáceis não são o maior problema. Esta primeira intervenção vai servir também para perceber como será, nos próximos meses, a relação entre Belém, São Bento…e São Caetano à Lapa.

 

E no fim de semana, a hora mudou. Sabe porquê? A guerra e o carvão ajudam a explicar, como se pode ler aqui no SAPO24.

 

Boa semana

publicado às 10:41

A “tirania do medo”

Por: Pedro Rolo Duarte

Todas as guerras em que as partes em confronto não têm as mesmas armas são, por natureza, injustas. Todas as guerras em que as partes em confronto têm princípios diferentes sobre a forma de combater, e sobre ideias simples como “não matarás à traição”, estão por natureza perdidas por quem, apesar de tudo, mantém módicos de ética em combate. A guerra também tem regras. Ou tinha.

 

Estamos a assistir à instauração e “normalização” de um novo tipo de combate (ou velho, mas afastado da Europa desde os tempos da ETA, das Brigadas Vermelhas e de outras organizações do mesmo tipo) numa guerra sem tréguas: o que utiliza a democracia para, subvertendo-a, indo directamente ao seu coração ideológico, aproveitar-se das “brechas” que são a essência da liberdade, e matar indiscriminadamente, sem qualquer espécie de lógica que não seja cultivar o terror do medo.

 

Não há um alvo a atingir, há um sentimento para alimentar: o medo. A insegurança. Os limites da liberdade em nome de uma presumível segurança. Bertrand Russel, esse génio que uniu a filosofia à matemática, falava da tirania do medo. Escreveu: “O nosso mundo vive demasiado sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos afirmativos do que de negativos. Se os afirmativos tomarem toda a amplitude que justifique um exame estritamente objectivo da nossa situação, os negativos desagregar-se-ão, perdendo a sua razão de ser. Mas se insistirmos em demasia nos negativos, nunca sairemos do desespero”.

 

Em teoria, Russell tinha razão - na prática, acordarmos numa terça-feira de Primavera com bombas a explodir no meio da Europa e dezenas de mortos e feridos inocentes, cujo único erro (em rigor, azar…) foi estarem na hora errada no lugar errado, não deixa margem de manobra para esses “motivos racionais de esperança”. Tanto mais que aqueles que nos decretam a tirania do medo são seres humanos como nós. São pessoas. Movidas pelo ódio, filhos da guerra, fanáticos, loucos, fundamentalistas, não adianta muito ir procurar a motivação desta gente - mas adianta parar para pensar que, quer queiramos ou não, aqueles assassinos nascem iguais a nós. Lá está: em igualdade e direitos.

 

E é por isso que estamos claramente a perder a guerra. Porque não estamos ao mesmo nível de quem nos ataca - estamos moral e eticamente acima, o que nos deixa mais vulneráveis. Ou seja, mais abaixo. É isto que está em causa e é neste quadro que o futuro se desenha.

 

As opções são escassas e o tempo também. Ou a Europa-que-decide se une e reconhece que estamos em guerra - e nesse caso não chega aumentar níveis de segurança e defender-se, talvez tenha mesmo de conceber uma estratégia mais musculada… -, ou vai continuar a deixar-nos viver na roleta russa de todos os dias. Com sorte, muitos de nós continuarão a não estar à hora errada no lugar errado.

 

 

COISAS QUE ME DEIXARAM A PENSAR ESTA SEMANA

  

Esta foi a ultima semana do jornal britânico The Independent em papel. A saída de cena foi bem montada, agora resta-nos o online e as versões mobile. Ao mesmo tempo que esta mudança sucede, o seu “rival” The Guardian, salvaguardado pelo financiamento de uma fundação que o sustenta, vai-se mantendo de pé, ainda que com previsões vagas de um futuro sem papel. A sempre assertiva revista “Prospect” escreve sobre o tema, num excelente artigo em que observa e perspectiva o que pode ser o futuro do The Guardian e do seu dominical The Observer. Vale a pena ler.

 

A situação no Brasil é tão confusa para os próprios brasileiros que o jornal Estado de São Paulo descobriu o filão editorial: livros que ajudam a entender o que poucos percebem. Este artigo alinha os livros que estão a ser preparados sobre o momento…

 

Quem quiser entender melhor o que está em causa nos atentados de Bruxelas tem forçosamente de passar pelas páginas do The Guardian. E já agora espreitar algumas das primeiras páginas mais fortes de ontem…

publicado às 07:12

Bruxelas: todos os problemas da Europa concentrados numa cidade

Por: José Couto Nogueira 

 

Hoje, bombas em Bruxelas. Ontem, um terrorista apanhado e vários mortos num bairro babélico de Molenbeek. Anteontem, a polícia armada até aos dentes a entrar pela casa de famílias ilegais, marginalizadas e desempregadas. Todos os dias, circulam as limousines topo de gama dos burocratas mais bem pagos do mundo. Há dois anos, a Bélgica esteve sem governo durante dezoito meses. No norte do país fala-se uma língua medieval, no sul comunica-se em francês. É assim a Bélgica, um país refém de contrastes insolúveis e contradições aterradoras. Desde 1830.

 

 

As autoridades belgas são ajudadas pelos serviços franceses, mas mesmo assim tem uma dura tarefa nas mãos. Bruxelas, sendo sede da NATO e dos órgãos de topo da UE, o Conselho da Europa e a Comissão Europeia, tem exigências de segurança acrescidas. Bruxelas abriga deputados e funcionários de topo à distancia de um tiro de bazuca de magrebinos revoltados e muçulmanos excluídos. Para não falar nos seus próprios problemas étnicos, uma vez que os flamengos se recusam a falar francês, mesmo com estrangeiros, e os valões não se querem misturar com ninguém, nem flamengos, nem estrangeiros.

 

A polícia não tem uma reputação cristalina; entre 2008 e 2014 houve vários escândalos sexuais, de pedofilia em escolas católicas a uma orgia numa esquadra de policia, sem que as autoridades conseguissem investigar a tempo inúmeras denúncias. O corpo de segurança das zonas da Flandres não se comunica com o da Valónia e Bruxelas é um enclave francófono na zona flamenga. Depois há as antipatias fronteiriças entre franceses e belgas.

 

Bruxelas foi escolhida para sede dos órgãos principais da UE segundo aquele princípio que tem norteado as decisões da União: dar importância aos insignificantes, facilmente manipuláveis, porque nenhum dos poderosos quer ficar sob a alçada de outro poderoso. Bruxelas, Estrasburgo (a outra sede do Parlamento Europeu) Durão Barroso, Van Rompuy e Jean Claude Juncker, são bons exemplos destas escolhas do menor denominador comum.

 

Aliás, a própria existência da Bélgica é uma espécie de equívoco criado pelas conveniências dos grandes. Até 1830, fazia parte da Holanda, juntamente com o Liechenstein. Nesse ano, uma revolta separou a Flandres e a Valónia, que formaram um país dividido linguística e etnicamente, sob a batuta de um rei alemão inventado para manter a coesão, Leopoldo I. (É interessante que anteriormente Leopoldo tinha recusado a coroa grega, por achar o país demasiado instável.) Os grandes poderes europeus consideraram que era uma boa ideia um estado-tampão entre a França e a Alemanha, como garante de que não se guerreariam. Claro que, quando a Alemanha decidiu invadir a França, em 1914 e 1939, passou por cima da Bélgica sem grandes problemas.

 

Na Conferência de Berlim, em 1885, ao fazer-se a divisão da África entre os europeus (Portugal incluído) aquele espaço inexplorado ao norte de Angola, que ninguém parecia querer, foi dado de presente a Leopoldo II – não à Bélgica, mas ao rei, como propriedade pessoal. No início do século XX a opinião pública mundial ficou chocada com as atrocidades que os belgas cometiam no Congo, inclusive amputações de trabalhadores considerados preguiçosos. Calcula-se que tenham morrido dez milhões de nativos em condições inenarráveis. A reputação de Leopoldo II, que até fez reformas trabalhistas inovadoras na Bélgica, nunca se recompôs dessa barbaridade.

 

O que lá vai, lá vai. Os problemas agora são outros. Os valões e os flamengos continuam a não se entender, mas pelo menos já conseguiram formar governo. Dos hábitos pedófilos, que provavelmente são iguais em toda a parte mas ficaram como uma espécie de estigma para os belgas, não se tem falado. Em compensação Bruxelas continua a ser um problema maior do que o país – são todos os problemas da Europa concentrados numa cidade.

 

Por um lado, é o centro nevrálgico da União Europeia e da NATO, o que a torna uma cidade caríssima e com permanente falta de alojamento; por outro lado tem uma população muçulmana que quer mais é que a Europa que a rejeita desapareça do mapa. As autoridades belgas, tão mal vistas internacionalmente, fazem o que podem para resolver problemas que, nitidamente, as transcendem. Por outro lado, não querem que a ajuda dos serviços de segurança estrangeiros os subalternizem na sua própria terra. Mas alguém tem de proteger os generais da NATO e os comissários da Europa. E é preciso urgentemente limitar os imigrantes e arranjar-lhes uma ocupação – em Molenbeek, o desemprego atinge os 50%. Salah Abdeslam, o homem mais procurado da Europa, escondeu-se mais de um mês em Moleenbeck, o bairro onde nasceu e cresceu, sem que a polícia desse com ele. E um dos que o acompanhava até conseguiu fugir. Outros, insuspeitos, colocaram agora as bombas de retaliação. Bem perto da classe superior que discute interminavelmente o que fazer com os refugiados sírios e os marginais de Moleenbeck.

 

O que está a acontecer por estes dias em Bruxelas é uma metáfora do estado a que a Europa chegou.

 

 

publicado às 13:17

Não podemos renunciar à liberdade. Não renunciamos a algum dos pequenos prazeres do nosso modo de vida.

Por: Francisco Sena Santos
 

 

O terrorismo trouxe uma vez mais a sua feroz guerra para o coração da Europa. Agora, em Bruxelas, à hora de ponta. A capital da União Europeia está bloqueada e o medo instala-se. É o que eles, os bárbaros, querem: abater a ideia de liberdade, progresso, justiça social.
 
 
A Europa deixou de viver em paz. As guerras do Médio Oriente estão a ser transferidas para dentro da Europa. A guerra é física e psicológica. É tempo de as lideranças europeias se deixarem das imbecis e ignóbeis quezílias egoístas de todos os dias. A crise dos refugiados evidencia-nos como falta na Europa um sobressalto de dignidade política. A Europa unida está fragmentada, em pedaços, e é evidente que só unida e solidária, corajosamente regressada aos valores fundadores, pode enfrentar o lado político desta guerra. Nós, os cidadãos, obviamente, quaisquer que sejam as ameaças, recusamos renunciar aos pequenos prazeres de cada dia, seja o de um café enquanto lemos um jornal ou um livro numa esplanada ao sol, a música dançada numa discoteca ou uma viagem de avião. Evidentemente, nada pode fazer retroceder a liberdade que é o nosso primeiro valor.
 
 
 
O BRASIL E CUBA EM ESTRADAS OPOSTAS
 
A detenção de Berta Soler, líder das Damas de Blanco, e de outros oposicionistas cubanos, neste domingo, no Parque Gandhi, em Havana, no final de uma manifestação de repúdio do governo comunista, ocorrida escassas horas antes de Obama pisar pela primeira vez solo de Cuba, lembra-nos que não há motivo para excesso de entusiasmos com a abertura política em Havana. Mas o povo cubano, sempre embalado pelo ritmo musical da salsa, pode sorrir: o horizonte é de esperança. A evolução em Cuba tende a ser lenta, gradual, mas é irreversível rumo a uma vida menos constrangida. É o oposto do que se sente no Brasil de hoje, um país que parece tomado pelos ódios.
 

Milhões de brasileiros estão a ser chamados para o protesto, furioso, nas ruas. Todos sabem que todo o sistema político-económico do país está corroído pela corrupção. É um mal que se propagou, transversal. Mas o que está em fundo a este movimento que precipita multidões para as manifestações não é um confronto entre o bem e o mal ou entre decência e corrupção, é uma luta tremenda pelo poder.
 

Esta guerra política ficou desencadeada quando em outubro de 2014 Aécio Neves perdeu a eleição presidencial em que Dilma Rousseff foi reeleita. Os anti-PT não aguentaram e desesperaram com a realidade de quatro eleições presidenciais ganhas pelo PT (Lula em 2001 e 2005, Dilma em 2009 e 2013) e a perspectiva de, após estes 16 anos, haver continuação com o regresso de Lula à presidência nas eleições de 2017. Os opositores fizeram cálculos e perceberam que Lula é, para eles, a ameaça. Dilma não tem mão para liderar o país mas Lula saiu da presidência em 2009 com taxas de aprovação tão altas que serviram para garantir a eleição e reeleição da fraca e desconhecida Dilma. Lula continuava a ser trunfo, portanto, é o ás a abater. Num país onde o voto é obrigatório, Lula tem o apoio dos muitos milhões de sem terra nem rumo que vêem nele o líder que lhes deu benefícios do dinheiro público, que lhes restituiu alguma dignidade e amanhãs. Por isso, para os opositores, o ataque teria de ser de alto calibre letal: empurrá-lo para o papel de bandoleiro que rouba o dinheiro dos brasileiros. O aparelho de poder de Lula pôs-se a jeito: não foi imune à embriaguez do dinheiro e do poder, envolveu-se nas teias da corrupção que envolve todo o sistema político brasileiro.
 

É aqui que entram em campo, nesta guerra anti-vermelhos que tem como alvo central abater Lula, dois poderes que se fizeram parte aliada: o aparelho policial-judiciário e o sistema dos media, convergentes para o fim de remover Lula e o PT do poder, objetivo que ficou por conseguir de forma democrática ao longo da última década e meia.
 

Todos pudemos notar nos últimos dias como os magistrados que conduzem a (necessária) investigação criminal não olham a meios para, com abusos vários, alcançarem os objetivos que se revelam claramente políticos. São múltiplos os indícios de que o PT está repleto de corrupção que toca em Lula. Mas todo o cidadão tem direito a que a investigação de que é alvo seja imparcial e justa. E, se a intenção é a boa de caçar todos os que têm as mãos sujas, então também será de avançar, com respeito pela prática do Direito, por todo o espectro político igualmente contaminado.
 

Paralelamente, os media, intensamente concentrados e influentes, veemente opostos ao PT, com a Rede Globo na hegemonia, meteram-se nesta guerra, teatralmente, inflamando o cenário, como agitadores e alimentadores do protesto: “O que a Globo sabe fazer magistralmente é manipular contextos”, escreve Carlos Castilho, jornalista há 35 anos e professor agora a concluir o doutoramento em Gestão do Conhecimento na Universidade de Santa Catarina, nesta análise preciosa para conhecermos o sistema dos media no Brasil. Também se recomenda este retrato do actual “turbilhão de versões e contra-versões”, igualmente por Carlos Castilho. É assim que o Brasil de agora está em espiral depressiva confrontado com uma crise gigantesca.
 

O que está a acontecer em Cuba vai no sentido oposto, o da esperança. A vida segue precária na ilha caribenha, grande parte dos seus 11 milhões de habitantes sofre de grande escassez (um professor universitário recebe um salário que não chega a 60 euros por mês) e para a maioria arranjar o que comer é uma luta diária: o cabaz básico mensal de alimentos subsidiados apenas dá para uns dez dias. O Estado é o maior empregador em Cuba mas o salário mensal médio é de 28 euros. A agricultura tem a mão-de-obra de 10% do país. As remessas do milhão e meio de cubanos no exterior são um essencial suporte para a subsistência das famílias. Mas a saúde funciona, a esperança de vida está nos 79 anos e em Cuba vivem umas 1800 pessoas com mais de 100 anos. A escola funciona e a alfabetização de adultos está nos 100%.
Há muralhas por derrubar: o regime desmente mas há evidência de continuação de prisões políticas mascaradas como casos de delito comum. O acesso à internet continua por liberalizar para a maioria da população cubana. É um dos pontos que Obama levou na agenda e a Google integra a comitiva. Tal como a PayPal e a Airbnb. Os muros estão a cair, é irreversível.
 

O papa João Paulo II abriu o caminho para a esperança ao apelar, em 1998, em Havana: “Que Cuba se abra ao mundo e que o mundo se abra a Cuba". Os papas Bento XVI e, sobretudo, Francisco deram sequência a esse caminho. Quem imaginaria há meia dúzia que um presidente dos EUA iria a Cuba apertar a mão a um Castro? Há muitos problemas para resolver mas o caminho já não tem volta para trás. A distensão com Cuba e com o Irão mostram que a presidência Obama trouxe melhorias aos mundo que, no entanto, está cada vez mais perigoso pelo terrorismo.
 
 
 
AINDA A TER EM CONTA
 
Cabo Verde votou e a oposição triunfou. O arquipélago é um exemplo de, apesar de tantas carências sociais e económicas, coexistência democrática.
 
 
Mi ê di li i di la. Esta reportagem de Vera Moutinho e Catarina Gomes, no Público, mostra o futuro virtuoso para os jornais de referência.
 
 
Três primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS: esta, esta e também esta.
 
 
publicado às 09:34

António Costa, árbitro ou jogador?

Por: António Costa

 

António Costa meteu as mãos na massa. Leia-se: o primeiro-ministro é um dos participantes ativos na nova configuração do sistema bancário nacional, no futuro do Novo Banco, do BPI e do Millennium bcp, o que nos faz recordar outros tempos, não tão distantes, em que a intervenção do Governo na ‘coisa privada’ deu péssimos resultados. Porquê? Porque está a fazê-lo da pior forma.

 

A discussão já é inevitável - estamos ou não a caminho da ‘espanholização’ da banca portuguesa? Portugal é ou não mais uma província espanhola aos olhos do BCE, que manda no Banco de Portugal? E o que é que isso impacta na economia e nas empresas portuguesas?

 

A resposta à primeira pergunta é afirmativa. A banca portuguesa corre o risco de ficar dividida entre o banco público, a CGA, e bancos comerciais controlados por Espanha. Há o terceiro setor, onde podem encaixar o Montepio e a Caixa Agrícola, e uma espécie de banco, o IFD, mas não têm o mesmo peso nem capacidade para financiar as empresas e a economia em geral. Além disso, as novas regras de supervisão europeia, a própria união bancária, são um incentivo à criação de grandes grupos na Europa, e o BCE prefere, claro, falar e acompanhar meia dúzia de grupos a partir de Madrid para toda a Península Ibérica.

 

Portugal, é preciso dizer, beneficia muito de ter bancos como o Santander, e precisa de instituições com aquela solidez e fôlego financeiro. Sem ‘mas’. Pressionam a concorrência no crédito aos melhores clientes, sim, e até funcionam como fator de melhoria das contas das empresas, por causa de um regime de avaliação de risco mais exigente do que aquele que é realizado por outras instituições. Agora, também é preciso acrescentar que o Santander tem em Espanha – porque é o seu país – uma estratégia de risco mais próxima da que têm hoje em Portugal bancos como a CGA, o Millennium bcp ou até o Novo Banco.

 

Como é evidente, o problema de endividamento das empresas portuguesas não deve ser assacado à banca, apesar de tantos erros cometidos ao longo de anos, por boas e más razões. É o que é, e que o programa da troika não resolveu. Esta é uma das raízes do problema, o que faz com que tantas e tantas empresas não tenham acesso ao financiamento, menos ainda ao do Santander, para citar o caso mais óbvio. O problema é que a economia portuguesa é a que é, é esta, não é outra. E não vai mudar de um dia para o outro, nem com um choque de risco da banca espanhola.

 

É por isso desejável que haja concorrência entre acionistas que controlam a banca, é desejável que os diversos bancos, dentro do que deve ser uma política de concessão de crédito rigorosa – com base nos depósitos dos clientes que lhes confiam as suas poupanças – procurem mercados e segmentos diferentes. É o que sucede quando há acionistas que controlam as decisões a partir de Madrid ou a partir de Luanda ou de Pequim. E, desejavelmente, de outras capitais internacionais.

 

A questão de Espanha coloca-se, em primeiro lugar, porque não há capital português e isso não se resolverá com manifestos, por mais bondosos que eles sejam. Também não pode ser o Estado a substituir capital nacional privado, já agora; convém que os governos saibam o que querem fazer com a CGD, o que é difícil de perceber. Portanto, o que estamos aqui a discutir é se é desejável capital estrangeiro além do espanhol na banca portuguesa. É, e muito.

 

Qualquer cidadão perceberá que a autonomia de decisão de um presidente de um banco em Lisboa é diferente se responder a Madrid ou a Luanda, se responder a acionistas espanhóis ou a acionistas de outras paragens, europeias, africanas ou asiáticas. É isso que está em causa, e é isso que um Governo deve definir estrategicamente. Não mais do que isso. Porque, no final do dia, o que conta é o capital, ou é isso que deve contar, e a qualidade da gestão.

 

Quando António Costa abriu a porta a envolver-se diretamente na decisão do Caixabank de controlar o BPI a qualquer preço, ou melhor, sem pagar o devido preço, meteu-se onde não deveria. Ainda há poucas semanas, o Governo admitia legislar à medida dos desejos e necessidades de um acionista espanhol contra um acionista angolano. É esse pecado original, o alinhamento com uns contra os outros, que levou Costa à posição em que está hoje. Não só árbitro, mas jogador.

 

 

ESCOLHAS

 

O mundo não está perdido, apesar do que se lê, vê e ouve. Ainda. Um presidente americano aterra em Cuba ao fim de 88 anos. Barack Obama faz uma visita histórica de três dias com um alcance geopolítico que vai muito além de Cuba e do seu futuro. Com um slogan, o da esperança. Para passar de slogan a realidade, o sucessor de Obama vai ter um papel decisivo. O regime cubano tem mais de 50 anos, o embargo comercial dos EUA a Cuba continua em vigor e há uma parte dos americanos que ainda não está convencida da bondade dos líderes cubanos. Mas Obama fica para a história, que não será a mesma a partir de agora. Acompanhe aqui, no Sapo24, os pormenores desta ‘missão’.

 

E quando a igualdade do género está em tudo, na igualdade de oportunidades e na igualdade das remunerações, surge uma voz, masculina, a assumir uma posição divergente. Citado pela BBC, o número um do ténis mundial, Noval Djokovic, questiona a igualdade de ‘prize money’ nos circuitos masculino e feminino. Porquê? Porque os homens levam mais espetadores aos courts e geram mais publicidade. As reações não se vão fazer esperar mas, antes de respostas precipitadas e emotivas, fica a pergunta: quem ganha mais no mundo da moda, as mulheres ou os homens? Nestes casos, provavelmente, a questão não é de género, desde que homens e mulheres tenham as mesmas condições de partida para mostrarem as suas competências.

 

publicado às 11:10

O que será, que será? O que não tem conserto, nem nunca terá. O que não tem tamanho 

Por: José Couto Nogueira

 

Ninguém sabe o que será do Brasil. Todos temem o que será do Brasil. Era bom que fosse – apenas – uma questão ideológica. Não é. Retrato do Brasil entre a confusão e o medo.

 

O “Jornal de Negócios” perguntou ao BE e ao PCP o que têm a dizer sobre a situação no Brasil. As respostas são constrangedoras, mas estão dentro da lógica da divisão ideológica que mal esconde a verdadeira questão que os brasileiros enfrentam. No Brasil, também, as explicações ideológicas tentam ocultar as razões económicas e judiciais que estão na génese da crise.

 

Segundo o “Negócios”, tanto um partido como o outro fazem uma leitura sucinta dos acontecimentos: “O que está em curso não é um combate à corrupção, mas sim um golpe de Estado promovido pela direita e os sectores mais retrógrados do país. A corrupção existe, mas é só o pano de fundo e o pretexto que a oposição precisa para deitar abaixo um governo eleito democraticamente.”

 

Oxalá fosse assim tão simples. Se houvesse uma direita organizada no Brasil – ou mesmo uma associação estratégica das várias direitas – seria possível pensar num tal cenário. Mas no Brasil não há uma direita uniforme e coordenada.

 

Entre os 28 partidos representados na Câmara dos Deputados, há dois partidos de direita, o DEM e o PP, que congregam os velhos políticos “rolhas” que atravessaram todos os regimes, inclusive o militar, como José Sarney e Paulo Maluf, ou o ex-presidente Collor de Melo. Nenhum deles tem massa crítica ou reputação moral junto da população para dirigir um golpe, e estão a seguir a política que sempre lhes garantiu a sobrevivência - não dizer nem que sim nem que não e esperar para que lado tende a balança. Depois há os chamados partidos evangélicos, com uma agenda moral super-conservadora e sem apetência para um golpe que não lhes traria vantagens. Têm apoiado o PT quando lhes convém e não estão interessados numa investigação às suas fortunas, obtidas à custa dos incautos.

 

O PT, sem maioria parlamentar, tem governado aliando-se a todos os partidos disponíveis, de todas as ideologias, trocando o apoio por cargos ministeriais e outras benesses. Assim se justifica que o Governo tenha 32 ministérios, alguns meramente simbólicos.

 

Na rua, também não há direita que se veja. Existem grupos fascisóides, que pedem a volta da Ditadura Militar que dirigiu o pais entre 1964 e 1985, mas são muito minoritários, sem representação social. Quanto aos militares, que poderiam ser, mais uma vez, os fazedores de um golpe, com o mesmo pretexto de que os comunistas estão a tomar o poder, encontram-se hoje muito longe das posições de 1964. Aliás, os comunistas já estão no poder há 14 anos e até escolheram um ex-guerrilheiro, Aldo Rabelo, do PCdoB, para ministro da Defesa. Se os militares aceitaram esta nomeação abertamente provocatória sem se revoltar, é sinal de que não estão dispostos a golpes. Quando muito, poderiam restabelecer a ordem pública, no caso de um confronto violento entre petistas e a população. Mas tomar o poder, não se vislumbra.

 

E elabora o BE: "Apoiadas nos sucessivos escândalos, a direita e a extrema-direita brasileiras desencadeiam agora um golpe de Estado no estilo do século XXI, articulado a partir do sistema judicial e alguns grandes empórios financeiros". Portanto, para os bloquistas a questão é a velha luta de classes, com os ricos conluiados com a Justiça para tirar os pobres trabalhadores do poder. Como veremos, não é o que se passa.

 

O PCP vai mais longe na análise delirante: “É indissociável do conjunto de manobras de ingerência promovidas pelos Estados Unidos visando os processos progressistas e de afirmação soberana na América Latina."

 

O PCP ainda se aquece com a Guerra Fria. Há pelo menos uma década que os Estados Unidos deixaram de se interessar pelos regimes da América Latina. Estão a braços com problemas muito maiores, à escala global, e têm um novo inimigo, “o islamismo radical”, que é muito mais perigoso do que uns governos revolucionários ao Sul do Equador. Já se percebeu que esses governos não têm competência para fazer as reformas económicas que prometeram e acabam por cair por si próprios. Aconteceu na Argentina, está para acontecer na Venezuela e no Peru. Há probabilidades que aconteça no Brasil; e Cuba já tem a cabeça no cepo. Assim que as relações com os americanos se regularizarem e os cubanos exilados voltarem ao país para fazer negócios, o regime cubano cairá por si. Foi essa a esperteza de Obama, perceber que o embargo a Cuba ou as restrições impostas aos países sul-americanos governados pela esquerda ajudam mais esses regimes do que o contacto aberto com as delícias do capitalismo, selvagem que seja.

 

Sair da miséria e continuar na pobreza

 

O PCP e, no caso, a esquerda brasileira, não percebem que os tempos mudaram e já não existe o odiado americano que os unia. Os problemas que o Governo do Brasil enfrenta têm muito mais a ver com a degradação da economia e a corrupção do que com uma comunização do país que, de facto, o PT nunca chegou a fazer. Diz-se que tirou milhões de brasileiros da miséria (os números variam entre 10 e 30 milhões), trazendo-os para os confortos da classe média. Mas não os tirou da pobreza, apenas lhes matou a fome, distribuindo dinheiro (a Bolsa Família, por exemplo), sem lhes dar os instrumentos para saírem por eles – a velha história, não se deve dar o peixe, mas sim ensinar a pescar. As pessoas recebem dinheiro mas não têm escolas nem assistência médica. Gastam-no em comida e quando se acaba esperam por mais. Não se pode dizer que isto seja entrar na classe média.

 

Quanto à classe média propriamente dita, que é o maior estrato económico do país, viu as suas condições económicas deteriorarem-se entre o Governo do PSDB (Fernando Henrique Cardoso) e o do PT. Neste momento a inflação é de 11% ao ano e os cartões de crédito têm juros de 400%. Os transportes públicos são péssimos e a insegurança nas ruas continua e níveis iraquianos. O PIB caiu 4% em 2015 e o poder de compra reduziu-se muito nas cidades, que têm um custo de vida elevadíssimo.

 

 

O PT não comunizou o Brasil, como receava a direita dos novos-ricos e velhos industriais e proprietários; o que fez foi reduzir o nível de vida da classe média, sem realmente melhorar definitivamente o da baixa. E aliou-se aos grandes capitalistas, que o compraram facilmente. O Movimento dos Sem Terra, constituído espontaneamente nos anos 70, ao fim de 14 anos de PT continua sem terra, pois o partido transformou-os numa tropa de choque que anda de catana em punho a destruir propriedades e a ameaçar quem não goste do partido.

 

Dá para encher a geladeira?

 

Tudo isto é muito difícil de engolir para os intelectuais brasileiros, que tiveram uma vida infernal durante a ditadura e continuam a acreditar que o PT é a verdadeira esquerda, a boa, que dará melhores condições de vida aos trabalhadores. Os militares no poder perseguiram-nos, prenderam-nos, torturaram alguns e exilaram outros. Isso nunca mais se esquece. A um Chico Buarque, um Gilberto Gil, um Jô Soares, não lhes passa pela cabeça não apoiar o governo de esquerda com que sonharam durante anos.

 

A ditadura militar deixou um rasto de violência que traumatizou a sociedade brasileira, naturalmente festiva e bem disposta. A democracia com amplas liberdades, é mesmo da maneira que o povo gosta; quanto menos Governo melhor, desde que lhe dê a oportunidade de prosperar. Uma expressão que se ouve muito, a propósito da situação económica familiar, é se o que se ganha “dá para encher a geladeira (frigorífico)”. Ora as condições económicas presentes não permitem encher a geladeira, e daí os milhões de pessoas que vão para as ruas bramar contra o Governo. Se bramam contra o comunismo, é porque o suposto comunismo o que lhes deu foi doses brutais de capitalismo salve-se quem puder. Quanto aos muito ricos e donos daquilo tudo, que seriam os supostos orquestradores dum golpe de estado, têm-se dado muito bem com o PT, que corrompem facilmente. Não têm preconceitos ideológicos; desde que possam fazer o que querem, tanto se lhes dá. E nenhum partido no poder lhes facilitou tanto a vida como este, em que tudo está à venda a troco duns milhões.

 

Quanto custa “quebrar o galho”?

 

Porque é essa a verdadeira questão: a corrupção. Sempre existiu no Brasil, tanto em ditadura como em democracia, e a todos os níveis – desde o polícia de rua que aceita uns trocos para não rebocar o carro, ao funcionário que tem de produzir um qualquer documento. É endémica e transversal, de tal modo que qualquer cidadão que tenha assuntos legais a tratar, a primeira pergunta que faz é 'quanto custa “quebrar o galho”' (resolver a situação).

 

O que aconteceu com o PT, foi que essa corrupção atingiu níveis nunca vistos, a ponto de prejudicar brutalmente a economia do país. Basta citar o caso da Petrobras, a poderosa estatal do petróleo que está à beira da falência. Em 2006, era Dilma Rousseff presidente da empresa e ministra de Lula, a Petrobras comprou uma refinaria obsoleta em Passadena, Texas. A unidade, que valia 50 milhões de dólares, foi adquirida por mil e duzentos milhões. Quando, posteriormente a tentou vender por 170 milhões, não encontrou comprador. Os directores da Petrobras já estão todos a contas com a justiça. Dilma diz que não sabia de nada.

 

O escândalo do “mensalão”, que levou à cadeia vários próximos de Luís Inácio Lula da Silva, acalmou a opinião pública temporariamente; mas as luvas (propina) que as grandes empresas pagaram a outros membros do partido, os favores e as benesses – como o jacto particular que trouxe Lula a Portugal para ser doutorado honoris causa em Coimbra e assistir ao lançamento do livro de Sócrates – fizeram ver que a corrupção dentro do PT e seus aliados era ainda maior do que se imaginava. A partir daí, num crescendo de revelações e fugas de segredo de Justiça, tem acontecido um verdadeiro massacre entre o governo e os partidos que o apoiam, nomeadamente o PSDB (no poder com Fernando Henrique Cardoso, antes da vitória eleitoral do PT).

 

A denúncia é uma arma

 

Para conseguir tanto sucesso na investigação, o sistema judicial brasileiro dispõe de um instrumento fundamental, que é a denúncia do indiciado a troco de redução de pena – a “delação premiada”. Esta figura jurídica, copiada da legislação norte-americana, nunca foi bem vista em Portugal, por questões éticas - dizem uns - ou porque os políticos não estão interessados - dizem outros. Temos uma previsão semelhante, que é o “estatuto de arrependido”, mas que é raramente usado e nunca admitido. Aconteceu com Duarte Lima, por exemplo, que obteve prisão domiciliária a troco de revelar os envolvidos no caso Monte Branco.

 

O juiz Sérgio Moro, que conduz a investigação do caso Lava Jato, tem utilizado a delação premiada com grande eficiência. Começou pelos mais fracos, os cambistas (doleiros) que enviavam os dinheiros da corrupção (propinas) para o estrangeiro e foi subindo pela cadeia do poder, até chegar aos directores da Petrobras e, finalmente, a senadores e ministros, passando pelos corruptores activos das grandes construtoras. Confrontados com as suas manigâncias, poucos resistem a denunciar os outros, a troco de um alívio de pena e devolução de alguns milhões. Porque quem não delata arrisca-se a penas pesadas, como foi o caso de Marcelo Odebrecht, da construtora homónima, que pagou o seu silêncio com uma pena de 19 anos de prisão efectiva. Fala-se que irá finalmente ceder.

 

 

Para lá do ódio aos corruptos, o sentimento mais prevalecente na sociedade brasileira é o medo. Nesta devassa na classe politica – que atinge tanto o PT como o PMDB e os outros partidos que sustentam o Governo – não fica ninguém de fora. O que significa que não há alternativas, caso Dilma Rousseff caia. É terrível, mas não se divisa nenhum político que tenha idoneidade moral para assumir o poder e recomeçar tudo outra vez. O actual presidente do PMDB, Aécio Neves, já se sabe que tem uma conta secreta no Liechenstein, além de outros ilícitos. Fernando Henrique Cardoso, uma referência moral da democracia, também terá recebido uns dinheiros suspeitos para comprar um apartamento e financiar as eleições. Michel Temer, o actual vice-Presidente (PMDB) e Eduardo Cunha, o evangélico do PMDB que preside à Câmara dos Deputados, têm péssima reputação, e o senador Delcídio do Amaral (PT) acaba de aderir à delação premiada para salvar a pele.

 

O Brasil, que tem tudo para ser um grande país, só lhe falta dirigentes à altura dessa grandeza prometida. Em conversas com brasileiros de todas as cores e estratos sociais, é esse medo do que está para vir que perturba. Que Dilma vai cair, todos concordam. O que virá a seguir, ninguém sabe.

publicado às 12:15

Pág. 1/4

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2015
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D