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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Vamos pôr Portugal no sítio

Por: Rute Sousa Vasco

 

Um dos argumentos que sempre me tirou do sério naqueles tempos em discutíamos a troika e que Portugal não era a Grécia residia, precisamente, na certeza acintosa e moralista com que esta frase era dita. Portugal não era a Grécia, porque a Grécia estava (e está) cheia de gregos e os gregos são aquele povo que inventou subsídios para cabeleireiras e alojou nas suas ilhas a maior perfídia fiscal. E tudo isto sem o requinte de um Luxemburgo ou de outras criações da Europa que não são a Grécia.

 

A frase “Portugal não é a Grécia” encerrava todo um conjunto de convicções que alguns portugueses têm sobre o nosso imenso Portugal. E que vão além da convicção linear de que se os gregos pediram dinheiro emprestado e não fizeram bem as contas, só têm é que pagar o que devem. Qualquer outra derivada, nomeadamente sobre os respeitáveis políticos europeus que desenharam, em parceria com os desonestos políticos gregos, os extraordinários planos que garantiram à Grécia uma ruína social e económica, não interessava para nada. Este tipo de análise vem das mesmas cabeças bem pensantes, cordatas e sempre em linha com os poderes dominantes que durante anos também não viram qualquer sinal de alarme nos negócios do BES ou tão pouco na expansão galopante da Ongoing. Enquanto se ostenta o ceptro, tudo está bem – porque se vive bem nessa doce harmonia das certezas inabaláveis.

 

Mas o que interessa isso agora neste tempo novo em que falar de troika e da Grécia é tão 2012? Tudo isto vem de repente à memória na semana em que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) consegue “pôr o Sequeira no sítio”, em que taxistas declaram nova guerra à Uber e em que se assinalou o 42º aniversário do 25 de abril.

 

Começando pelo 25 de abril. É um facto que a data não passa bem na garganta de uma certa direita. É um facto que é celebrada em regime de monopólio por uma certa esquerda. Descontando os desagravos pessoais, que é impossível não existirem numa História ainda tão recente, a diferença em qualquer uma das alas chama-se cultura política e cívica. Não se obtém com o grau académico nem por pertencer a uma casta. Cultiva-se ouvindo os outros, criando o hábito de discutir ideias e, em virtude destas duas premissas, acaba-se por ser menos binário e mais efectivamente interessado no país. E o país precisa de ter mais destas pessoas e menos do grupo histriónico, que vive de certezas inabaláveis e que sabe sempre o que vai dizer na segunda-feira.

 

Passando para a batalha entre taxistas versus Uber (mais uma). O mérito – e o dilema – da discussão está no raio deste mundo virado do avesso em que todos vivemos e onde todos procuramos reencontrar o nosso lugar. Não é um problema de taxistas – é de taxistas, de fotógrafos, de hoteleiros, de designers, de jornalistas, como provavelmente um dia destes será de outras profissões que se têm mantido a salvo da grande onda que tudo abala. Aquilo que é um problema de taxistas é a forma como este grupo confronta Portugal com a sua aspiração e a sua realidade. Aspiramos a ser um povo de pessoas educadas, honestas, inovadoras e bem-sucedidas. Não toleramos pensar que possamos ser malcriados, desonestos, preconceituosos e sempre a contar os tostões. Não somos taxistas, como também não éramos gregos.

 

Mas, esperem lá, quem são (também) os taxistas? São reformados, são desempregados, são algumas pessoas sem outra qualificação que não seja conduzir um carro. Ganham pouco, arriscam bastante, têm muitas contrariedades e poucas expectativas. Soa-vos familiar a Portugal? Nasce daí uma raiva contra esse Portugal que não queremos ser. Um Portugal herdado, um Portugal com um passado mal resolvido e logo agora que somos modernos, estamos na crista da onda do turismo e do empreendedorismo. Somos livres, não voltaremos atrás – não era assim que trauteava a música da gaivota em pleno PREC?

 

E chegamos assim a Domingos Sequeira e à (brilhante) campanha do MNAA em parceria com o Público, a Fuel, a RTP e a Fundação Millennium BCP intitulada Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo. Uma campanha que angariou, através de um crowdfunding bem comunicado, 600 mil euros para que o museu possa adquirir o quadro A Adoração dos Magos e assim ter aquela que é tida como a obra-prima do pintor.

 

Não será injustiça dizer que a esmagadora maioria dos portugueses não fazia ideia de quem foi Domingos Sequeira e, por inerência, da importância da obra em causa. O que fez com esta iniciativa fosse interessante por várias razões. Por um lado, trata-se de uma obra do século XIX, o que já permite que se fale de património e de História, deixando a esquerda/direita orfã de uma das suas discussões favoritas (deve ou não o Estado apoiar a cultura). Por outro lado, mediante a inteligência do MNAA e dos seus parceiros, a comunicação foi de tal forma envolvente e cativante que conquistou pessoas fora da franja da elite cultural que naturalmente seria a base de apoio – ou seja, democratizou a arte que é a única forma, efectiva, de a tornar património de todos. Pode parecer um movimento óbvio – só que não é. E, muitas vezes, porque essa franja ou elite cultural quer preservar o seu status quo, tornando a arte uma espécie de santo cálice impossível de alcançar pela plebe.

 

No balanço final, de acordo com os dados comunicados, participaram 15 mil cidadãos e 172 instituições, entre as quais escolas, associações, fundações e algumas, mas não muitas, empresas. Entre as grandes instituições, destacou-se uma: a Fundação Aga Khan com uma contribuição de 200 mil euros.

 

Pessoas, juntas de freguesia, alunos de escolas. Se calhar um, dois taxistas. Este foi, em boa medida, o Portugal que se mobilizou para por o Sequeira no sítio. Pobre Sequeira, que passou uma vida à procura de reconhecimento e que encontrou, brevemente, com os liberais de 1820 algum do conforto que tantas vezes lhe escapara. Quase 200 anos depois, não é o liberalismo que o traz ao sítio, no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Esse liberalismo à americana ou inglesa em que quem mais ganha, devolve à sociedade, não está na mesma prateleira do liberalismo que conhecemos por cá.

 

Na realidade, quando se defendeu que Portugal não é a Grécia talvez se quisesse defender que Portugal não é Portugal. E isso até tem um lado bonito. É aquele lado em que não nos deixamos encaixar em generalizações, nos esquecemos de ser de esquerda ou de direita, taxista ou empreendedor Uber, e fazemos simplesmente o que achamos estar certo.

 

Isto do 25 de abril já não ser a justa medida para todas as clivagens sociais é muito aborrecido. A vida era bem mais fácil antes.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões

 

Ricky Gervais em versão Netflix e com uma história mesmo à sua medida (não fosse ele autor e realizador além de protagonista). Fica uma frase para abrir o apetite: "As pessoas preferem ser famosas por serem idiotas do que não serem conhecidas de todo".

 

Os números do Facebook estão para o mercado dos media como as eleições americanas para o mundo: são bem mais que apenas os resultados de uma empresa. E o facto é que continuam a mostrar um negócio muito saudável. No primeiro trimestre de 2016, as receitas subiram 52%, para 5382 milhões de dólares.

publicado às 09:39

Vem aí o Titanic II (e não é um filme)

Por: Pedro Fonseca

 

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No próximo ano, vai poder andar pelas imagens virtuais do Titanic e, em 2018, poderá viajar numa réplica do célebre navio. Isto numa altura em que o turismo em cargueiros carregados de contentores parece agradar a jovens e reformados.

 

Mais de um século depois do mais célebre navio ter embatido num icebergue, um novo Titanic II deverá ser lançado às águas em 2018. Um ano antes, no entanto, vai poder sobreviver num videojogo que retrata o interior (e o exterior) da embarcação. Mas antes do futuro, um pouco de história.

 

Lançado ao mar do estaleiro da cidade irlandesa de Belfast a 31 de Maio de 1911, o momento de celebração inicial do Titanic, da companhia White Star Line, foi presenciado por mais de 100 mil pessoas. O destino fatal para mais de 1.500 passageiros do navio ocorreu quase um ano depois, ao início da madrugada de 15 de Abril de 1912. O então maior navio a vapor foi do porto inglês de Southampton, a 10 de Abril de 1912, para Cherbourg, em França, passando depois pela cidade irlandesa de Queenstown, antes de se dirigir a Nova Iorque, nos EUA.

 

No final da noite de 14 de Abril, apesar dos avisos telegráficos lançados por outros navios sobre a existência de blocos de gelo na sua rota, o Titanic prosseguiu no Atlântico Norte até ser atingido por um icebergue e se afundar às 2h20m da madrugada de 15 de Abril. Com cerca de 2.240 passageiros e uma tripulação de quase 900 pessoas, um dos principais problemas ocorreu com os 20 botes salva-vidas a bordo. Tinham capacidade para levar um total de 1.178 pessoas, como explicou uma reportagem do canal televisivo História, salientando que, para os padrões de segurança da época, o número desses botes até excedia a regulação então imposta pelo British Board of Trade.

 

Os salva-vidas apenas conseguiram salvar 705 pessoas. Segundo a reportagem televisiva, foram realizadas cinco comissões de inquérito sobre o trágico acidente. Uma delas detectou que apesar de os botes poderem levar mais de mil pessoas, a confusão foi enorme, e daí resultou a salvação de tão poucas "almas". Todas as comissões revelaram que as situações de pânico não foram exageradas e alguns passageiros preferiram até ficar no abrigo quente do navio. A temperatura do mar (dois graus negativos) desincentivava qualquer acto de heroísmo.

 

Memória virtual e real

 

O pesado fardo da memória não demove, no entanto, quem pretende apostar na lembrança do desastre. Após a desenfreada recolha e exposição nos últimos anos dos artefactos afundados e recuperados a quase 3.800 metros, surge agora o lançamento de um videojogo com uma trama policial dentro do Titanic, que se antecipa decorrer naqueles dias até ao fatídico afundamento, ou a aposta na construção de uma réplica do navio, denominado naturalmente de Titanic II.

 

O jogo "Titanic: Honor and Glory" deve ser lançado em 2017 e para já revela um vídeo de 2h40m do naufrágio que permite ver por dentro e por fora o navio, ainda sem quaisquer personagens. Previsto para 2018, há um outro projecto mais ambicioso, com a empresa australiana Blue Star Line a lançar um verdadeiro Titanic II.

 

O projecto surgiu há quatro anos na mente do milionário australiano Clive Palmer, que o está a construir na China com um valor estimado de 435 milhões de dólares - 10 vezes mais do que o custo da embarcação original. Com dois anos de atraso relativamente ao previsto, o navio será uma quase réplica do Titanic, segundo os vídeos disponibilizados online, com quatro metros a mais dos 28 de largura e os botes salva-vidas a considerarem uma capacidade para 2.700 lugares.

 

A viagem também será diferente, segundo foi anunciado em Fevereiro passado: a partida ocorrerá do porto chinês de Jiangsu, onde o navio está a ser construído, em direcção ao Dubai. Segundo declarações de James McDonald, director de marketing da Blue Star Line, ao Belfast Telegraph, "o novo Titanic terá obviamente procedimentos modernos de retirada [de passageiros], controlo por satélite, navegação digital e sistemas de radar e todas as coisas que se esperam num navio do século XXI". McDonald afirma que a Blue Star detém os direitos de nome e de marca registada do Titanic II.

 

Com 270 metros de comprimento, 53 metros de altura e um peso de 40 mil toneladas (a versão original pesava 46 mil toneladas), terá nove andares com 840 cabinas para 2.400 passageiros e 900 tripulantes. No entanto, manterá a estrutura de bilheteira do navio original, com ofertas para primeira, segunda e terceira classes.

 

As novas viagens marítimas

 

Pode impressionar que perante um desastre como o Titanic, as viagens marítimas - algumas até bastante perigosas - continuem a captar a atenção das pessoas. Com 100 anos de diferença, e sem o mesmo impacto mortal, houve quem fizesse comparações entre o Titanic com um desastre mais recente, o do Costa Concordia perto da ilha mediterrânica de Giglio, que se afundou três horas após um embate numa rocha a 13 de Janeiro de 2012. Tinha a bordo 4.200 pessoas, embora o número de mortes tenha sido muito inferior ao do Titanic.

 

Os cruzeiros banalizaram-se e agora as rotas perigosas (ou pouco exploradas, consoante a opinião) são uma tentação. O navio de cruzeiro Crystal Serenity com mais de 1.600 pessoas registadas para ir a bordo (dos quais mil são passageiros) pretende navegar do Alaska até Nova Iorque, atravessando a complicada passagem do noroeste (Northwest Passage, ao norte do Canadá) e o estreito de Bering, numa viagem de 32 dias entre Agosto e término em Setembro. Apenas 17 navios fizeram esta travessia no ano passado e o Crystal Serenity é o maior desde que a abertura da rota ocorreu em 2007.

 

Há ainda um outro fenómeno, que são os turistas que aproveitam as viagens dos cargueiros para irem até longínquos destinos. No ano passado, a Bloomberg descrevia como apesar das companhias de viagens turísticas apostarem em inúmeras atracções, de spas e enormes piscinas a bares de sushi, havia quem optasse por navegar em cargueiros cheios de contentores.

 

Pode pensar que é uma solução para jovens ou pessoas com pouco dinehiro, mas o reformado agricultor australiano John McGuffick afirmava "estar meses seguidos no mar em cargueiros". Tinha, na altura, 72 anos. A sua maior viagem foi entre a cidade francesa de Dunquerque e Singapura, numa rota de 110 dias. O preço é uma mais-valia relativamente aos cruzeiros: estes passageiros pagam menos por uma cama e três refeições diárias, no que é também um bom negócio para as empresas de transporte marítimo, já que o preço do frete dos contentores tem vindo a decrescer.

 

Estas empresas não conseguem assegurar mais de uma dúzia de alojamentos por barco mas, segundo Julie Richards, que trata de 200 a 300 viagens por ano na australiana Freighter Expeditions, os interessados (principalmente jovens e reformados) têm de reservar com muita antecedência. Por exemplo, para a popular rota da China para a Europa ela recebe "10 a 20 emails por dia", diz, com o interesse da maioria a não poder ser satisfeito.

 

Para quem quiser antecipar este tipo de viagem, um artigo do The Guardian relata a viagem a bordo do navio chinês Hansa Rendsburg, no que denominava de "cruzeiro de cargueiro", por alguém que tentava fazer uma volta ao mundo sem voar. Sem adiantar muitos detalhes, pode-se sintetizar que a experiência entre um navio de cruzeiro e um cargueiro "é como comparar um camião a uma limusine", diz o autor.

 

Por tudo isto, não admira que exista um genuíno interesse pelas variadas formas de navegar em alto mar. Sinal disso é que, apesar das críticas de familiares dos falecidos na viagem inaugural do Titanic, a Blue Star diz ter sido "inundada" com pedidos de informação de potenciais passageiros para a primeira viagem do Titanic II.

publicado às 09:11

O mistério do quadro renascentista em que se (re)descobriu Lisboa manuelina

Por: José Couto Nogueira

 

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Parece um romance policial. Em 2009 duas historiadoras inglesas visitaram uma mansão perto de Oxford e aí encontraram um quadro do século XVI que retratava uma rua renascentista. Não se sabia se era uma rua real ou imaginada, nem quem a tinha pintado. Depois de uma longa pesquisa, as historiadoras chegaram à conclusão de que se trata de uma rua bem portuguesa que foi palco do comércio de mercadorias de todo o mundo.

 

A casa foi construída pelo escritor, artista e filósofo socialista William Morris, uma figura pública da Inglaterra vitoriana. Lá viveu desde meados do século até à sua morte, em 1896. É uma daquelas quintas inglesas cheias de carácter, rodeada por um lindo jardim e recheada com móveis, livros e objectos de grande qualidade. A viúva, e depois as filhas, conservaram tudo intacto até que, com o falecimento da última, a casa passou para uma organização chamada Sociedade dos Antiquários de Londres, que a mantém aberta ao público. Qualquer pessoa pode passar uma tarde agradável nos jardins ou a inspeccionar a preciosa biblioteca de William Morris.

 

Em 2009 duas historiadoras inglesas, Kate Lowe e Annemarie Jordan Gschwend, visitaram esta mansão do século XIX, Kelmscott Manor, localizada perto de Oxford. As duas historiadoras repararam num quadro do século XVI que o pintor Dante Gabriel Rossetti, amigo de Morris, lhe terá oferecido, ou vendido, e que estava atribuído à escola de Velázquez. Mostra uma rua renascentista, e não se sabia se era real ou imaginada, nem quem a tinha pintado.

 

Lowe e Gschwend pesquisaram longamente, à procura de referências, tanto em livros e documentos, como na própria pintura. Finalmente chegaram à conclusão, indisputada, de que se trata da Rua Nova dos Mercadores, na baixa da Lisboa manuelina. Ficava onde agora passa a Rua da Alfândega, e era o percurso mais cosmopolita numa cidade onde se negociavam mercadorias de todo o mundo. Além de algumas descrições da sua opulência, apenas existem poucas gravuras da cidade inteira, sem pormenores das ruas. A Rua Nova dos Mercadores foi evidentemente destruída pelo terramoto de 1755, e nunca mais voltou ao esplendor da Era das Descobertas. O que resta hoje é a fachada manuelina da Conceição Velha, reconstruída com um interior já pombalino.

 

O quadro é incrivelmente detalhado – tem tantos pormenores que permite reconstruir uma grande quantidade de informação sobre a Lisboa do século XVI e, por extensão, da vida urbana dum grande centro europeu. Pesquisando à lupa, um grupo de quinze historiadores de várias especialidades começou a descobrir o significado de tudo o que lá se vê: a arquitectura ainda com influências árabes, o carácter multirracial da população, habitantes e visitantes, os artefactos negociados nas lojas e os produtos vindos de todo o mundo que estavam em exposição; porcelanas chinesas, papagaios brasileiros, marfins de África e do Sri Lanka, joalharia, lacados, têxteis da Ásia e pedras preciosas dos entrepostos onde os portugueses negociavam. A partir dos objectos e figuras, os especialistas conseguem extrapolar um sem número de factos, como os modelos de negócio então praticados, o percurso dos produtos pelos portos dos sete mares e até hábitos da vida quotidiana da cidade. 

 

Nessa época de abundância, os artefactos que anteriormente só eram usados pela realeza tinham-se tornado comuns entre a rica burguesia. Neste particular, o quadro vem confirmar o que se sabe de outras fontes. Por exemplo, uma guia de desembarque de 1518 mostra que uma nau do Oriente trazia 19 mil leques chineses e duas toneladas de seda da costa de Malabar. No quadro vêem-se esculturas de cristal do Sri Lanka, biombos de laca indo-muçulmanos e esculturas cristãs feitas na Índia.

 

O resultado de todas estas pesquisas acaba de ser publicado num volume de grande formato, com 300 páginas, editado pelas historiadoras e com os comentários dos quinze críticos. Chama-se “The Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon” e é editado pela Paul Holberton Publishing, uma casa especializada em livros de arte altamente sofisticados e objectos exóticos e raros.

 

Infelizmente não se viu notícia desta publicação por cá. Nós, portugueses, a quem este assunto interessa mais do que a quaisquer outros, pois ainda vivemos a nostalgia das Descobertas e poucas informações novas já se conseguem encontrar, bem que gostaríamos. Entretanto, o livro pode ser comprado do editor (por 40 libras) ou, evidentemente, através da Amazon.

 

publicado às 17:14

Mudar, o verbo que não muda

 

Por: Pedro Rolo Duarte

 

Tudo indica que amanhã, em Lisboa, vai voltar a viver-se o caos que há uns meses paralisou literalmente a cidade: os taxistas voltam à rua com uma concentração às 8 horas e, a partir das 9, uma marcha lenta até à Assembleia da República, onde querem ser recebidos por António Costa. Florêncio de Almeida, presidente da Antral, já anda por aí nos noticiários…

 

 

A guerra é a mesma dos últimos tempos: a chegada da Uber a Portugal, a exigência de suspender os serviços da operadora, “porque há duas ordens de tribunal que os proíbem de operar”, e a reivindicação (do meu ponto de vista, a única legitima) de legislar no sentido de não haver situações de privilégio no sector.

 

Parece-me que a maioria dos taxistas quer mais do que isso, quer mesmo a Uber fora do mercado. Mas também me parece que a maioria dos consumidores quer apenas alterar a lei, de forma a que nem a Uber se aproveite dos buracos legais para fazer concorrência desleal ao serviço de táxis, nem os taxistas vivam num regalo de monopólio que dá para tudo, do serviço mais manhoso a uma espécie de cartel dominado por meia-dúzia. Há seguramente fórmulas de fazer conviver os dois serviços - tanto mais que o da Uber é elogiado pelos seus clientes e poderia elevar a qualidade geral do serviço de transporte urbano de passageiros (no Brasil, mesmo com protestos, a chegada da Uber levou taxistas a oferecer jornais, bebidas e doces aos clientes…).

 

Esta guerra é mais um dos muitos abanões que todos levamos a toda a hora, “sinais dos tempos” que mudam sem pedir licença. Se a minha classe profissional reagisse como os taxistas, bloqueava a Internet, que acabou com o modelo de negócio tradicional dos media, deixando à deriva (nalguns casos, falidos) jornais, revistas, televisões, numa oferta de informação brutal, gratuita, e onde todos podemos dizer de nossa justiça, sem filtro, sem regra, sem lei. Felizmente, os profissionais (e gestores) dos media não reagiram à bruta - e, aos poucos, às escuras, apalpando literalmente o terreno, tentam reenquadrar-se no universo da informação e perceber onde podem ir buscar a receita que lhes permita cobrir o custo e ganhar algum.

 

Podemos alargar este caos na gestão e optimização dos negócios, provocado pela tecnologia, ao comércio online, à banca, até às telecomunicações - que, em teoria, seriam as primeiras beneficiárias da revolução, não se dessem os “fenómenos” do tipo “whatsapp” ou “messenger”…

 

Neste quadro, a guerra dos taxistas ganha maior notoriedade porque paralisa as cidades, gera violência, dá directos emocionantes na TV - mas, se pensarmos um pouco, é apenas mais um conflito entre a velha e a nova economia. Vivemos um período - tão difícil e duro, quanto fascinante - de mudança radical de paradigma. O ser humano é resistente à mudança, e neste caso sofre na pele os efeitos da mudança. Mas há um facto incontornável: se nos adaptámos e aderimos de alma e coração à comunicação virtual, às redes sociais, à televisão dominada pelo nosso comando individual, às compras online em escassas horas… Bom, não podemos ignorar o reverso da medalha, o outro lado da moeda. Ele passa por formas diferentes de encarar o trabalho, de gerir os negócios. E de acordar diariamente. Tudo muda quando menos esperamos, ou mesmo quando acreditamos que talvez tudo fique na mesma. Não fica.

  

Coisas que me deixaram a pensar esta semana:

 

Extraordinária, para não dizer surpreendente, a ideia da revista “Monocle”, que por si só é um conjunto mensal de boas ideias, revelações e descobertas: um guia para fazer um país. Leu bem: construir uma nação. Infra-estruturas, legislação, sugestões nas áreas essenciais, da educação à justiça. Assim nasce um “guia” da revista, agora à venda online e em algumas livrarias internacionais, para quem queira meter-se nesses trabalhos: construir uma nação que funcione. Não é difícil pensar a quem nos apetecia oferecer a obra…

 

Qualquer comum consumidor urbano reparou certamente que a gigante McDonalds tem procurado, nos últimos anos, acertar o passo com o crescimento da tendência para a alimentação saudável, biológica, ou pelo menos mais equilibrada. Não querendo perder a sua fatia num negócio onde também começaram a operar “players” cuja imagem de marca é a fast-food saudável, a empresa desenvolveu produtos nessa área, das saladas aos wraps, da fruta fresca à sopa. Um artigo na revista “Money” surpreende com a mais básica das ideias: as saladas e essa súbita preocupação com a saúde não fazem parte do ADN da McDonalds. Talvez seja pouco inteligente tentar fazer hambúrgueres e batatas fritas passarem por peixe grelhado. E isso não é necessariamente mau, ou seja, talvez a McDonalds pudesse continuar como sempre foi. Os seus clientes parece que não se importam…

 

A rapidez com que tudo se vive chega a este ponto: o Facebook, que até ontem ou há dois dias era o rei das redes sociais, sente-se ameaçado pelos seus concorrentes Snapchat, Instagram e WhatsApp, e decide avançar para uma aplicação semelhante ao Snapchat (rede onde se podem colocar fotos e videos que duram apenas o tempo real em que são vistas, e depois desaparecem…), mas mais sofisticada. A quebra de 21% de tráfego no Facebook, em 2015, entre os seus 1.600 milhões de perfis, preocupa a empresa… 

publicado às 11:24

Projecto de governação ou de comunicação?

 

Por: Paulo Ferreira

As declarações de fim de austeridade, de renegociação de metas orçamentais, de projectos de reestruturação da dívida, de um “novo ciclo”, um “tempo novo”, de umas verdades que Bruxelas ia ter que ouvir e afins deram origem, afinal, a um Orçamento do Estado e a um PEC que cumpre as metas impostas pela Comissão Europeia.

 

 

As generalizações são potencialmente injustas e esta que vou fazer não será uma excepção. Fechado o processo orçamental deste ano e conhecido o Programa de Estabilidade e Crescimento que temos pela frente, estou convencido que a solução governativa PS+3 é mais um projecto de comunicação do que um projecto de governação.

 

Anuncio já alguns dos potenciais injustiçados. Acredito na nova geração Simplex e nos bons resultados que dali podem sair. Maria Manuel Leitão Marques já mostrou o que pode fazer quando liderou a primeira geração, no primeiro governo de José Sócrates. É verdade que se deve fazer muito mais do que passar da burocracia do papel para a burocracia electrónica, mas esta, pelo menos, tornou a vida menos pesada para cidadãos e empresas que não podem escapar-lhe.

 

Também acredito nas ideias e na capacidade de execução da área do Ministério da Economia que está entregue a João Vasconcelos. O país precisa de um choque de empreendedorismo, precisa de muita gente que testa, falha e volta a tentar sem estar à espera do subsídio ou do negócio rentista acertado nos salões de hotel.

 

O secretário de Estado da Indústria já mostrou do que é capaz no contributo que deu para colocar Lisboa e, com ela, o país no mapa global das “startups”. Ainda esta terça-feira a BBC falava disso. E esta publicidade positiva não tem preço.

 

Haverá outras áreas da governação promissoras e capazes de entregar bons resultados mas refiro-me, na generalização, ao essencial da política orçamental e económica. Aquilo que estamos a observar em Portugal é, salvaguardando as devidas proporções, semelhante ao que se passou na Grécia do Syriza: muitas ameaças, muitas promessas de um “tempo novo” para depois acabar tudo pior ou, quanto muito, quase igual. As proporções são diferentes porque o ponto de partida é muito diferente - cá com um único resgate e uma saída limpa e lá com uma sucessão de empréstimos e de doses de austeridade - e o radicalismo das promessas políticas foram também muito diversas - não temos por cá um Varoufakis e Mário Centeno está mais próximo da via da responsabilidade orçamental do que muitos suspeitariam ou gostariam.

 

Descontando a diferente intensidade, o que se está a passar é semelhante. As declarações de fim de austeridade, de renegociação de metas orçamentais, de projectos de reestruturação da dívida, de um “novo ciclo”, um “tempo novo”, de umas verdades que Bruxelas ia ter que ouvir e afins deram origem, afinal, a um Orçamento do Estado para este ano que cumpre as metas impostas pela Comissão Europeia.

 

Entre o esboço orçamental e o documento que está em vigor vão umas léguas de diferença. E, não tenhamos dúvidas, mais medidas de contenção serão implementadas se e quando a derrapagem acontecer ao longo do ano. O decreto de execução orçamental, que dá plenos poderes ao ministro das Finanças - parece decalcado dos que levaram a assinatura de Vítor Gaspar -, é disso um sinal que não engana.

 

Mais gritante ainda é o PEC. As trajectórias que são agora apontadas pelo governo até ao final da década estão muito próximas das que constavam do PEC elaborado há um ano pelo governo PSD/CDS, diabolizadas por toda a esquerda por representarem, diziam, um prazer pela austeridade, o radicalismo ideológico e a falta de sonho e por materializarem a errada visão de que “não há alternativa”. Afinal, olhando para este PEC, parece que não há mesmo alternativa.

 

Compare-se este documento com o plano inicial do PS, elaborado há um ano pela equipa de economistas liderada por Mário Centeno, e veja-se como essa alternativa não passou de um documento bem intencionado. Mas nada disto impede que o governo mantenha e vá repetindo as suas mensagens.

 

Que a sua política alternativa valoriza mais o crescimento quando, afinal, o que é previsto para o aumento do PIB não difere do que há um ano previa o anterior governo e a generalidade das agências internacionais e muito distante do que então era garantido.

Que a austeridade é passado mas, baralhando e voltando a dar, se sobem alguns impostos para aliviar outros e se faz contenção de despesa em áreas sociais como a Educação e a Saúde para aumentar mais depressa os funcionários públicos.

Que a prioridade é o emprego mas este teima em não aparecer e se mantêm as regras apertadas de admissões na função pública.

Que o investimento é uma aposta mas as previsões, sobretudo para este ano e para o próximo, são uma miragem do que eram nos planos eleitorais.

 

Pode dizer-se que a culpa é de Bruxelas, que não permite grandes desvios da sua cartilha. Ainda que seja verdade, não era o PS quem prometia que iria à Comissão defender aquilo que pensava serem os interesses do país, contra a linha do aluno obediente? Aguarda-se então uma efectiva mudança de política económica, assente no crescimento, no investimento e na criação de emprego e despojada de austeridade. Os números agora apresentados não a confirmam e, para já, só temos palavras cada vez mais afastadas da realidade.

 

 

Outras leituras

- Espanha vai novamente para eleições. Conclusão: “geringonça” não consta do dicionário de castelhano. 

 

- Já se percebeu que o BCE teve um papel fundamental no desfecho da liquidação e venda do Banif. Agora ficamos a saber que esse protagonismo não pode ser verificado ou questionado. Algo de muito errado se passa quando há poderes públicos que não podem ser sindicados.

publicado às 00:32

A extrema-direita esquiva-se ao velho estigma

 

 

 

 

Por: Francisco Sena Santos

 

“Que percentagem de votos para os populistas?” Esta passou a ser a pergunta recorrente no apuramento de resultados de qualquer eleição europeia. Quando se diz populistas, pensa-se em forças políticas (não apenas de extrema-direita) opostas aos ideais de solidariedade que levaram à criação de uma Europa unida. Agora, foi na aparentemente estável Áustria, um país vital nos campos da arte e do saber – mas que em 1938 abriu os braços a Hitler e que então votou a favor da anexação pelo Terceiro Reich.

 

Neste domingo, na Áustria, os eleitores deram o triunfo à extrema-direita (36,4%) na primeira volta da eleição presidencial que eliminou, com dura derrota, os candidatos dos tradicionais partidos maioritários, o SPO dos social-democratas e o OVP dos conservadores, que entre ambos só conseguiram juntar ao todo 22% dos votos. O declínio destes partidos oficialistas tem em contraponto a escalada dos extremistas ultranacionalistas do FPO e o crescimento dos verdes. Toda a coligação xenófoba europeia exulta com estes resultados austríacos, vê-se no twitter como se congratulam o holandês Gereret Wilders ou a francesa Marine Le Pen.

 

A Europa festeja o seu dia em cada 9 de maio. Desta vez, quando o que se vê na Áustria como nos governos da Polónia e da Hungria, também em outros países, é uma não-Europa, será melhor que a celebração seja mobilizada para debates sobre como podemos enfrentar as ameaças e retomar a coesão em torno dos valores essenciais da Europa.

 

São várias as crises com as quais a Europa se confronta, sendo que duas são principais. Uma é a crise gerada por movimentos humanos – centenas de milhar de refugiados de guerra e de migrantes económicos – que tentam entrar no continente europeu pelo sul. A outra crise é política, em grande parte dos países europeus, onde os partidos convencionais do centro-esquerda ou do centro-direita, estão a ser desafiados por partidos contra o sistema. Muitos deles, com discurso de intolerância, que tem terreno fértil quando a vida é o desemprego e a ausência de futuro nesta Europa que está politicamente débil.

 

Os partidos tradicionais começaram a ficar tolhidos pela submissão ou falta de alternativas às impostas receitas da austeridade. Depois, deixaram-se cair no prato envenenado de não desmontarem preconceitos e medos em torno de refugiados e migrantes. Deixaram que se instalasse o temor de ameaça civilizacional com a chegada maciça de muçulmanos, eslavos e outros.

 

Na Áustria, os partidos clássicos, juntos em grande coligação de bloco central no governo em Viena, perante a pressão contínua da extrema-direita, assente na questão dos refugiados, perderam a cabeça e tentaram passar a ser eles a encabeçar a onda populista: fecharam fronteiras e chegaram ao absurdo de fazer construir um muro anti-imigrantes na fronteira entre Itália e o Tirol austríaco. O muro, obviamente, não trava nada a não ser a confiança, é apenas um lastimável símbolo. O governo de Viena travestiu a sua acção com o discurso da extrema-direita, esqueceu que a cópia fica sempre abaixo do original, chegou às eleições presidenciais e foi estrondosamente derrotado. Pela primeira vez na história da Áustria os candidatos dos grandes partidos que antes costumavam superar juntos a fasquia de 80% dos votos, agora, ficam excluídos da ronda decisiva da eleição. A escolha dos austríacos, em 22 de maio, vai ser entre o ultra-direitista Norbert Hofer (36,4% dos votos), um pistoleiro candidato anti-imigrantes e eurocéptico (diz-se “um protector da Áustria, quer que o país não seja segurança social para estrangeiros” e defende o direito de cada austríaco a armar-se) e o veterano economista ecologista Alexander van der Bellen (20,4%).

 

O que está a acontecer na Áustria, tal como em outros países europeus, merece ser ponderado. Há um dado relevante: pesquisas mostram que o voto na extrema-direita tem grande base nos eleitores jovens. Significa que o estigma que marcou a extrema-direita nas gerações das décadas seguintes à Segunda Grande Guerra está agora a ficar esbatido. Para isso contribui o facto de o discurso desses partidos extremistas se ter modernizado e ter descolado de seduções pelo nazismo ou pelo fascismo. Os eleitores jovens, revoltados com a incapacidade dos partidos tradicionais, escolhem votar fora do sistema. É a expressão da contestação ao fracasso de quem tem governado. Há quem opte por votar na esquerda do leque político (Podemos em Espanha, BE em Portugal, Die Grunen/Os Verdes na Áustria e na Alemanha), mas o movimento na Europa central e de leste vira-se sobretudo para a direita extrema. É uma onda nacionalista, intolerante, egoísta, contrária aos valores fundadores da Europa. Por isso, há que enfrentar esta nova realidade que se instala. Há uma atmosfera que assustadoramente faz lembrar o que lemos sobre a Europa no começo dos anos 30 do século XX.

 

 

VALE LER:

 

A Europa observada pelo historiador Ian Kershaw: “O que tínhamos por estável agora treme”.

 

Zona nuclear de exclusão: 30 anos depois, o que resta de Tchernobil? A lição da catástrofe está aprendida?

 

Os destinos europeus mais em conta para uma escapadela estão a leste. Mas também vemos que o mapa da Trivago coloca Lisboa com preços razoáveis.

 

Que porção de alimentos devemos comer? Convém controlar este desejo.

 

Hoje há um mini-Tuesday nos EUA: cinco estados a votos em primárias. A santa aliança republicana contra Trump pode funcionar? Pouco provável.

 

À espera do regresso de Twin Peaks.

 

As primeiras páginas do Brasil no SAPO Jornais mostram como o impeachment de Dilma avança imparável. Mas a vaga está para continuar.

publicado às 08:35

Isabel, Chefe de Estado

Por: Márcio Alves Candoso

 

 

Na mesma semana, o Reino Unido vai estar ocupado com a celebração do 90º aniversário da mais icónica das suas cidadãs - e cidadãos. Elisabeth of Windsor, conhecida entre nós por rainha Isabel II de Inglaterra, bateu no ano passado o recorde de permanência no trono britânico, que pertencia à sua trisavó Vitória. De um pedestal que reconhece apenas como um ‘dever’ e não como uma prerrogativa, que aliás ganhou por mero acaso das contingências histórias, Isabel tem preferido sempre ir de encontro aos cidadãos anónimos, mostrar-se sem ser demasiado conhecida.

 

 

Na tabela de vendas de ‘hardbacks’, capítulo de ‘não-ficção’, o livro que sobressai esta semana no mercado britânico tem um título interrogativo. ‘And the Weak Suffer What They Must?’ Essa é a pergunta de Yannis Varoufakis, autor da obra que lidera a lista dos mais procurados, destronando – talvez pela novidade – uma série de três livros humorísticos que vinham dominando as preferências do público há mais de dois meses. Trata-se, aliás, de uma das duas entradas directas para o ’top ten’, sendo a restante uma dissertação sobre a importância do ‘rock’ dos anos 70, que ocupa agora a oitava posição. Não é claro qual a importância que os britânicos atribuem, nos dias de hoje, à procura de soluções para os pecados que o ex-ministro grego das Finanças insiste em denunciar em mais um livro. ‘Uma batalha titânica pela integridade e identidade europeias, contra o crescente autoritarismo e corrupção, que promovem a desigualdade’ – é esta a sinopse que a ’Amazon’ traça do conteúdo do livro da ‘pop star’ da esquerda europeia. Mas, num país onde se travam razões sobre as vantagens e desvantagens de pertencer à União Europeia, é talvez sintomático o interesse que um heterodoxo como Varoufakis desperta no púbico.

 

Margaret Thatcher, a primeira-ministra conservadora britânica por quem, diz-se, a rainha não morria de amores, acusou-a um dia de votar no Partido Social-Democrata então nascente, após uma divisão dos Trabalhistas que levaram Roy Jenkins e David Owen a criar a nova formação política. Como em todas as - poucas – tentativas de ligar a soberana a alguma facção ou ideologia dos seus súbditos, o Palácio de Buckingham apressou-se a negar a preferência. Mas os biógrafos da casa real – uns autorizados, outros nem por isso – são unânimes em considerar que a rainha sempre pendeu, em toda a sua vida privada, para uma espécie de centro-esquerda europeu. Não é por acaso que se diz que o seu primeiro-ministro favorito - dos doze que já empossou – foi Harold Wilson, do ‘Labour’.

 

Em Portugal, quando se quer falar das peculiaridades da actual Constituição, no que diz respeito aos poderes do Chefe de Estado, costuma dizer-se que ele não é a Rainha de Inglaterra, numa alusão à importância executiva que o monarca britânico tem vindo a perder no último século e meio. Salvo erro, a ideia tornou-se pública pela palavra de Mário Soares, que fazia uma interpretação extensiva das suas funções enquanto Presidente da República, tanto quanto a Constituição revista em 1982 lho permitia.

 

Mas se é verdade que Isabel II tem os seus poderes restringidos pela lei – a monarquia constitucional liberal rege a Inglaterra e as suas possessões -, a sua influência no seu longo reinado não é despicienda. A mais recente intervenção da rainha na política terá sido por ocasião do referendo com intenções independentistas da Escócia. Isabel II terá deixado escapar, numa declaração que os especialistas apelidaram de que ‘mais pública não poderia ter sido’, a frase que não traduzo: ‘Well, I hope people will think very carefully about the future’.

 

Nesses dias de chumbo da política britânica, autores e jornalistas bem próximos do primeiro-ministro, David Cameron, revelaram que ele, normalmente frio e maquiavélico em relação à política quotidiana, terá passado um mau bocado, demonstrando assinalável nível de stress; diz quem dele está próximo, que a sua irritação com a indecisão escocesa levou a mulher a quase não o reconhecer, perdendo cabelo nesse anseio conjugal.

 

O Palácio de Buckingham, como sempre tem feito através da história recente, publicou um comunicado a negar o envolvimento da rainha na questão da independência da Escócia. Fê-lo como deve ser, ou seja, depois de todos os jornais já terem publicado as declarações de Isabel II… Diz quem sabe que a rainha terá dado uma ajuda preciosa ao ‘não’ à independência da parte norte da Grã-Bretanha. Uma guerra que, aliás, algumas das suas antepassadas, com relevo para Maria Stuart e Isabel I, não desdenhariam.

 

Nos rodapés da história, diz-se que terá sido, até hoje, a única rainha a saber mudar um pneu de um carro ou a mudar-lhe o óleo.

 

Se as revistas cor-de-rosa e os ‘yellow papers’ não se cansam de escrutinar a vida mundana, amorosa ou – até - escandalosa da família real britânica, a verdade é que Isabel II tem escapado quase sempre à opinião negativa dos vendedores de papel impresso. E da única vez que ficou na mó-de-baixo, em 63 anos de reinado, apressou-se a acertar o passo – ou não fosse ela uma militante convicta das virtudes militares. Logo após a morte de Diana Spencer, na altura já separada do seu primogénito e presuntivo herdeiro, a rainha terá sido, segundo a opinião pública, demasiado fria e formal, não se prontificando a participar nas homenagens póstumas à ‘princesa do povo’. Em poucas horas percebeu o erro, e juntou-se aos seus, como sempre fez, aliás, desde que na II Guerra, com 18 anos, se pôs ao volante das ambulâncias e dos camiões do Serviço Auxiliar Territorial (ATS). Nos rodapés da história, diz-se que terá sido, até hoje, a única rainha a saber mudar um pneu de um carro ou a mudar-lhe o óleo.

 

A monarquia caiu-lhe nos braços por força de uma abdicação nunca totalmente explicada, mas especulada mais do que muito. A ascendência germânica da família real britânica, por força do casamento da puritana Vitória com Albert de Saxe-Coburgo Gotha, terá levado o presuntivo rei Eduardo VIII, tio de Isabel, a proclamar mais em privado que em público as suas preferências pelo lado alemão entre as duas guerras mundiais. Oficialmente, foi por se casar com uma senhora divorciada que deixou o trono londrino; mas há muitos que dizem que não. E a cadeira real sobrou para o pai de Isabel, irmão mais novo de Eduardo, que governou como pôde o Império Britânico.

 

Cedo, no entanto, Isabel demonstrou ter ideias políticas, tanto quanto os apertados trâmites da lei lho permitiam. O primeiro-ministro Anthony Eden que o diga, quando foi forçado a demitir-se do cargo após o fracasso da tomada do Canal do Suez, aventura que contou com a oposição frontal da rainha. Ou Ian Smith, quando declarou a independência unilateral e minoritária da Rodésia ‘branca’, sendo por tal afastado da Commonwealth pela rainha. Ou Margaret Thatcher, que Isabel considerava ‘insensível’ aos pobres e ‘teimosa’, e que não contou com o aval real quando se negou a alinhar nas sanções internacionais contra o ‘apartheid’ sul-africano. Ou Ronald Reagan, que foi censurado fortemente pela invasão de Grenada. Ou, de outro modo, Nelson Mandela, que viu Isabel II apoiá-lo logo no início do seu mandato como presidente da África do Sul; são poucas, em toda uma vida, as fotos mais sorridentes e demonstradoras de admiração como aquelas que Isabel II deixou que lhe tirassem quando se encontrou com o primeiro presidente negro da antiga possessão britânica.

 

Regrada mais que puritana, decente mais que moralista, Isabel II casou por amor com um tipo autoritário e pouco culto, que no entanto tem cumprido a preceito as funções de consorte. O apoio que lhe tem dado, publicamente expresso por Isabel em discurso por altura do seu jubileu como rainha, fica a léguas da preponderância que Albert terá tido na primeira parte da vida de Vitória, outra rainha icónica da Grã-Bretanha.

 

a nossa mais velha aliada foi o que foi: uma mulher do tempo da guerra, patriota e piedosa, que gosta de cumprir um dever

 

Pela pena de Andrew Marr, o ‘Sunday Times’ da presente semana traça um perfil da soberana um pouco antípoda da caricatura de vestes garridas e ‘cara de Miss Piggy’ – que ela assume quando está irritada – que geralmente lhe é atribuída. Num tempo em que a fama vai e vem, em que o público espera surpresa e divertimento, ela representa a perenidade sem perder o humor britânico que lhe é característico. Quem não se lembra da rábula com James Bond (Daniel Craig, na ocasião) que protagonizou aquando da abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2012, em Londres?

 

Quem a conhece, diz que não vai abdicar em favor do filho de 67 anos; talvez a educação de Carlos – que é já um dos mais velhos herdeiros de coroa da história das monarquias -, deixada aos cuidados de um tio-avô marialva e de um pai mais que rústico, seja a maior falha desta mulher que, aos 13 anos, sonhava ser campeã de natação. Sóbria – troca o gin das falecidas mamã e irmã por um ‘Earl Grey’ com leite e sem açúcar - a nossa mais velha aliada foi o que foi: uma mulher do tempo da guerra, patriota e piedosa, que gosta de cumprir um dever. Assim os joelhos, sua única falha de uma saúde de ferro, lho permitam uma outra vez.

 

E o futuro? Nas ‘pools’ da Grã-Bretanha, o neto William já vai à frente, como favorito para a sucessão, do filho Carlos, um tipo decente mas estranho, que deambula entre o jogo de pólo, a arquitectura alternativa, a homeopatia e as preocupações ambientais. Depois da morte de Diana, uma verdadeira ‘insider’ na família real britânica, resta Kate Midletton para dar um ar de graça a uma monarquia renovada. Com uma diferença em relação à defunta sogra – é que o neto da rainha escolheu-a entre todas as múltiplas candidatas, e ela ao princípio nem achou grande piada ao rapaz. O pai, Carlos, terá sido aconselhado pela sua amante de sempre, e actual mulher, Camilla, a desposar a virgem Diana, que ele levou para casa sem estar muito convencido da trama. O povo britânico sabe destas coisas...

 

No Natal ou quando ela quiser, Lilibeth, do alto dos seus 90 anos, costuma dar bonecos aos bisnetos, que lhe chamam ‘gan-gan’ em privado. Um dia destes, aposto, dá-lhes um cavalo, filho ou neto de um daqueles 22 com que já ganhou as corridas de Ascot.

 

 

publicado às 23:51

A verdade e outras mentiras

 

Por: Rute Sousa Vasco

 

Antes do Twitter e mesmo no princípio do Facebook, o programa de jornalismo com mais pergaminhos na América levou para o ar uma reportagem sobre o passado militar de George W. Bush. O programa chamava-se 60 Minutes, era então conduzido por Dan Rather e a reportagem foi emitida nas vésperas das eleições que opuseram Bush a Kerry, em 2004. Dan Rather, a sua produtora Mary Mapes e uma equipa de jornalistas do programa investigaram os factos referentes ao período em que George W. Bush prestou serviço militar e sobre a forma como alegadamente teria conseguido escapar à guerra do Vietname.

 

A reportagem foi para o ar na CBS em plena pré-campanha das eleições presidenciais de 2004 e tinha matéria de facto para poder influenciar o desfecho dessas mesmas eleições – um presidente que fugiu à guerra e que levou, anos depois, milhares de americanos para outra guerra é tudo menos um tipo simpático, além de outras idiossincrasias próprias da honra e glória ianque. Mas, acabou, na realidade, por simplesmente destruir a carreira de um dos mais conceituados jornalistas, da sua produtora e por prejudicar severamente todos os envolvidos na investigação jornalística.

Tudo começou com o ataque de alguns bloggers à reportagem, evoluiu para uma verdadeira caça às bruxas, quer a quem tinha dado testemunho aos jornalistas, quer aos próprios jornalistas, e acabou com Dan Rather, o rosto do 60 Minutes, a pedir desculpa, assumindo que a sua equipa tinha sido induzida em erro. É uma história minuciosa sobre factos, processos de trabalho em jornalismo e também sobre erros que se cometem em jornalismo.

A CBS contratou um grande escritório de advogados para escrutinar todos os envolvidos - uma espécie de comissão parlamentar de inquérito mas com consequências para os visados. Dan Rather abandonou o 60 Minutes, Mary Mapes não voltou a trabalhar em jornalismo – e já lá vão 12 anos – Bush foi reeleito e a CBS manteve o seu estatuto de empresa de media que influencia e é influenciada pelos políticos.

 

«Da mesma forma que Os Homens do Presidente não era sobre Nixon, Truth não é sobre George W. Bush (…) É muito mais sobre a interseção entre a América corporativa, o sistema político e os media. E também sobre o processo de compor uma reportagem. Creio que a única razão para voltar atrás no tempo, por mais recente que o ano de 2004 possa parecer, é se tem relevância ou interesse hoje, e eu creio que ainda há muitas questões acerca da forma como recebemos as notícias que não foram realmente publicadas. Creio que ainda não processámos na realidade a diferença entre factos e opiniões, portanto parece-me um filme bastante relevante e pertinente». Isto foi o que Cate Blanchett, que interpreta Mary Mapes no filme "Truth", disse em entrevista ao Notícias Magazine a propósito da história que protagoniza.

E, à parte da discussão sobre os factos que suportam o filme, esta é a discussão que interessa mais do que nunca: o que é hoje uma notícia, como consumimos as notícias, a diferença entre factos e opinião e, por inerência, a diferença entre o trabalho de fazer notícias e o hobby de produzir comentário avulso, seja em que meio ou rede social for.

 

Só essa distinção permite que passemos à discussão seguinte e que é sobre se precisamos de jornalismo e de jornalistas e, se sim, como deve esse trabalho ser realizado numa era que o conteúdo nos explode nas mãos e nos ecrãs a cada segundo. Só para nos situarmos: há imensos conteúdos e há poucas notícias, uma ‘história’ ou ‘estória’ não é forçosamente jornalismo (nem tem de ser) e optimizar audiências com técnicas de engadgment, analytics e gurus que ensinam quais as palavras certas a colocar num título também não é igual a jornalismo. Jornalismo tem implícita essa coisa fora de moda que é a ideia de serviço público e, contrariamente ao que muitos pensam, não é a profissão de quem tirou Comunicação Social ou de quem escreve posts a toda a hora. É a profissão de quem está disposto a comprometer-se com um conjunto de regras e de quem não se esquece, mesmo quando trabalha matérias mais ligeiras, que notícia é, em muitos dos casos, aquilo que alguém não quer que se saiba e que só importante se afectar a vida de terceiros. Senão é só coscuvilhice e má língua e disso estão as caixas de comentários assinadas por ‘anónimos’ e nick names cheias.

 

Para se ser jornalista hoje é importante perceber o negócio de media? Na minha opinião, é indispensável e os jornalistas, além de parte interessada, estão especialmente bem posicionados para entender o que está em jogo e promover a discussão pública. E sim, implica perceber de tecnologia, implica perceber de publicidade e de receitas obtidas com o trabalho jornalístico, implica saber ler indicadores e implica não ter medo de experimentar novas formas de fazer jornalismo. Mas, serve de muito pouco, se não se souber para que serve o jornalismo.

 

Para quem se interessar pelo tema, recomendo a leitura do livro “Salvar os Media”, escrito por Julia Cagé, professora assistente de Economia no Institut D’Études Politiques de Paris, e com prefácio do célebre Thomas Piketty. Que escreve a certo ponto “cada um de nós convirá que um jornal vivo e maltratado vale porventura mais que um jornal morto e respeitado”. Uma frase com um quê de Lili Caneças mas com bastante mais substância. Deste livro, importa reter várias outras pistas de discussão e alguns dados objectivos. Como, por exemplo, o valor das receitas de todos – todos – os jornais americanos versus as receitas de uma só empresa, seja o Google ou o Facebook. Ou sobre a vertigem do instantâneo e o valor que tem para os leitores. “Os jornais despendem uma crescente energia a publicar o mais depressa possível despachos de agências nos seus sítios na internet como se a capacidade de resposta no copia-e-cola tivesse mais importância que a recolha de informação original”.

 

A história de Dan Rather e Mary Mapes é sobre informação original e relevante. O filme resulta da adaptação do livro de memórias de Mary Mapes, Truth and Duty: The Press, the President, and the Privilege of Power e tem vários momentos de antologia. Deixo-vos com um. Mike Smith, um dos jornalistas da equipa do 60 Minutes, pergunta a Dan Rather por que se tornou jornalista. “Curiosidade”, é a resposta. Dan Rather devolve a pergunta a Mike Smith: “E tu, porque te tornaste jornalista?”. “Por tua causa”, é a resposta.

 

Tenham um bom fim-de-semana

 

 

Outras sugestões:

 

 

Para nos mantermos sintonizados no tema. Os jornalistas deixaram ontem Pablo Iglesias, a falar sozinho, depois do líder do Podemos ter feito um conjunto de acusações às alegadas motivações e dependências da classe jornalística. Nos comentários de redes sociais e das notícias percebe-se que muitos leitores concordam com o politico – precisamente por razões que também passam pela análise ao filme “Truth” e que ultrapassam em larga escala apenas os jornalistas. O que só reforça a importância de discutirmos quem escrutina os media, mas, tão ou mais importante, se também se escrutina todas as opiniões elevadas a factos.

 

E para aligeirar a sexta-feira, um belo trabalho da BBC sobre o clube-conto-de-fadas que está à beira de ganhar o campeonato inglês de futebol, o Leicester.

Começa assim: "Lie-kester."

"No, Leicester."

"Less-ester?"

"No, Leicester. As in Lester."

"Oh. Why is it pronounced like that?"

 

 

(*) Onde se lê agora ecrãs estava numa primeira versão cabeças. 

(...) Só essa distinção permite que passemos à discussão seguinte e que é sobre se precisamos de jornalismo e de jornalistas e, se sim, como deve esse trabalho ser realizado numa era que o conteúdo nos explode nas mãos e nos ecrãs a cada segundo.

publicado às 11:38

Isabel, chefe de Estado

Por: Márcio Alves Candoso

Na tabela de vendas de ‘hardbacks’, capítulo de ‘não-ficção’, o livro que sobressai esta semana no mercado britânico tem um título interrogativo. ‘And the Weak Suffer What They Must?’. Essa é a pergunta de Yannis Varoufakis, autor da obra que lidera a lista dos mais procurados, destronando – talvez pela novidade – uma série de três livros humorísticos que vinham dominando as preferências do público há mais de dois meses. Trata-se, aliás, de uma das duas entradas directas para o ’top ten’, sendo a restante uma dissertação sobre a importância do ‘rock’ dos anos 70, que ocupa agora a oitava posição.

 

Não sei qual a importância que os britânicos atribuem, nos dias de hoje, à procura de soluções para os pecados que o ex-ministro grego das Finanças insiste em denunciar em mais um livro. ‘Uma batalha titânica pela integridade e identidade europeias, contra o crescente autoritarismo e corrupção, que promovem a desigualdade’ – é esta a sinopse que a 'Amazon' traça do conteúdo do livro da ‘pop star’ da esquerda europeia. Mas, num país onde se travam razões sobre as vantagens e desvantagens de pertencer à União Europeia, é talvez sintomático o interesse que um heterodoxo como Varoufakis desperta no púbico.

 

Na mesma semana, o Reino Unido vai estar ocupado com a celebração do 90º aniversário da mais icónica das suas cidadãs - e cidadãos. Elisabeth of Windsor, conhecida entre nós por rainha Isabel II de Inglaterra, bateu no ano passado o recorde de permanência no trono britânico, que pertencia à sua trisavó Vitória. De um pedestal que reconhece apenas como um ‘dever’ e não como uma prerrogativa, que aliás ganhou por mero acaso das contingências histórias, Isabel tem preferido sempre ir de encontro aos cidadãos anónimos, mostrar-se sem ser demasiado conhecida.

 

Margaret Thatcher, a primeira-ministra conservadora britânica por quem, diz-se, a rainha não morria de amores, acusou-a um dia de votar no Partido Social-Democrata então nascente, após uma divisão dos Trabalhistas que levaram Roy Jenkins e David Owen a criar a nova formação política. Como em todas as - poucas – tentativas de ligar a soberana a alguma facção ou ideologia dos seus súbditos, o Palácio de Buckingham apressou-se a negar a preferência. Mas os biógrafos da casa real – uns autorizados, outros nem por isso – são unânimes em considerar que a rainha sempre pendeu, em toda a sua vida privada, para uma espécie de centro-esquerda europeu. Não é por acaso que se diz que o seu primeiro-ministro favorito - dos doze que já empossou – foi Harold Wilson, do ‘Labour’.

 

Em Portugal, quando se quer falar das peculiaridades da actual Constituição, no que diz respeito aos poderes do Chefe de Estado, costuma dizer-se que ele não é a Rainha de Inglaterra, numa alusão à importância executiva que o monarca britânico tem vindo a perder no último século e meio. Salvo erro, a ideia tornou-se pública pela palavra de Mário Soares, que fazia uma interpretação extensiva das suas funções enquanto Presidente da República, tanto quanto a Constituição revista em 1982 lho permitia.

 

Mas se é verdade que Isabel II tem os seus poderes restringidos pela lei – a monarquia constitucional liberal rege a Inglaterra e as suas possessões -, a sua influência no seu longo reinado não é despicienda. A mais recente intervenção da rainha na política terá sido por ocasião do referendo com intenções independentistas da Escócia. Isabel II terá deixado escapar, numa declaração que os especialistas apelidaram de que ‘mais pública não poderia ter sido’, a frase que não traduzo: ‘Well, I hope people will think very carefully about the future’.

Nesses dias de chumbo da política britânica, autores e jornalistas bem próximos do primeiro-ministro, David Cameron, revelaram que ele, normalmente frio e maquiavélico em relação à política quotidiana, terá passado um mau bocado, demonstrando assinalável nível de stress; diz quem dele está próximo, que a sua irritação com a indecisão escocesa levou a mulher a quase não o reconhecer, perdendo cabelo nesse anseio conjugal.

 

O Palácio de Buckingham, como sempre tem feito através da história recente, publicou um comunicado a negar o envolvimento da rainha na questão da independência da Escócia. Fê-lo como deve ser, ou seja, depois de todos os jornais já terem publicado as declarações de Isabel II… Diz quem sabe que a rainha terá dado uma ajuda preciosa ao ‘não’ à independência da parte norte da Grã-Bretanha. Uma guerra que, aliás, algumas das suas antepassadas, com relevo para Maria Stuart e Isabel I, não desdenhariam.

 

Se as revistas cor-de-rosa e os ‘yellow papers’ não se cansam de escrutinar a vida mundana, amorosa ou – até - escandalosa da família real britânica, a verdade é que Isabel II tem escapado quase sempre à opinião negativa dos vendedores de papel impresso. E da única vez que ficou na mó-de-baixo, em 63 anos de reinado, apressou-se a acertar o passo – ou não fosse ela uma militante convicta das virtudes militares. Logo após a morte de Diana Spencer, na altura já separada do seu primogénito e presuntivo herdeiro, a rainha terá sido, segundo a opinião pública, demasiado fria e formal, não se prontificando a participar nas homenagens póstumas à ‘princesa do povo’.

 

Em poucas horas percebeu o erro, e juntou-se aos seus, como sempre fez, aliás, desde que na II Guerra, com 18 anos, se pôs ao volante das ambulâncias e dos camiões do Serviço Auxiliar Territorial (ATS). Nos rodapés da história, diz-se que terá sido, até hoje, a única rainha a saber mudar um pneu de um carro ou a mudar-lhe o óleo.

A monarquia caiu-lhe nos braços por força de uma abdicação nunca totalmente explicada, mas especulada mais do que muito. A ascendência germânica da família real britânica, por força do casamento da puritana Vitória com Albert de Saxe-Coburgo Gotha, terá levado o presuntivo rei Eduardo VIII, tio de Isabel, a proclamar mais em privado que em público as suas preferências pelo lado alemão entre as duas guerras mundiais. Oficialmente, foi por se casar com uma senhora divorciada que deixou o trono londrino; mas há muitos que dizem que não. E a cadeira real sobrou para o pai de Isabel, irmão mais novo de Eduardo, que governou como pôde o Império Britânico.

 

Cedo, no entanto, Isabel demonstrou ter ideias políticas, tanto quanto os apertados trâmites da lei lho permitiam. O primeiro-ministro Anthony Eden que o diga, quando foi forçado a demitir-se do cargo após o fracasso da tomada do Canal do Suez, aventura que contou com a oposição frontal da rainha. Ou Ian Smith, quando declarou a independência unilateral e minoritária da Rodésia ‘branca’, sendo por tal afastado da Commonwealth pela rainha. Ou Margaret Thatcher, que Isabel considerava ‘insensível’ aos pobres e ‘teimosa’, e que não contou com o aval real quando se negou a alinhar nas sanções internacionais contra o ‘apartheid’ sul-africano. Ou Ronald Reagan, que foi censurado fortemente pela invasão de Grenada.

 

Ou, de outro modo, Nelson Mandela, que viu Isabel II apoiá-lo logo no início do seu mandato como presidente da África do Sul; são poucas, em toda uma vida, as fotos mais sorridentes e demonstradoras de admiração como aquelas que Isabel II deixou que lhe tirassem quando se encontrou com o primeiro presidente negro da antiga possessão britânica.

 

Regrada mais que puritana, decente mais que moralista, Isabel II casou por amor com um tipo autoritário e pouco culto, que no entanto tem cumprido a preceito as funções de consorte. O apoio que lhe tem dado, publicamente expresso por Isabel em discurso por altura do seu jubileu como rainha, fica a léguas da preponderância que Albert terá tido na primeira parte da vida de Vitória, outra rainha icónica da Grã-Bretanha.

 

Pela pena de Andrew Marr, o ‘Sunday Times’ da presente semana traça um perfil da soberana um pouco antípoda da caricatura de vestes garridas e ‘cara de Miss Piggy’ – que ela assume quando está irritada – que geralmente lhe é atribuída. Num tempo em que a fama vai e vem, em que o público espera surpresa e divertimento, ela representa a perenidade sem perder o humor britânico que lhe é característico. Quem não se lembra da rábula com James Bond (Daniel Craig, na ocasião) que protagonizou aquando da abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2012, em Londres?

Quem a conhece, diz que não vai abdicar em favor do filho de 67 anos; talvez a educação de Carlos – que é já um dos mais velhos herdeiros de coroa da história das monarquias -, deixada aos cuidados de um tio-avô marialva e de um pai mais que rústico, seja a maior falha desta mulher que, aos 13 anos, sonhava ser campeã de natação. Sóbria – troca o gin das falecidas mamã e irmã por um ‘Earl Grey’ com leite e sem açúcar - a nossa mais velha aliada foi o que foi: uma mulher do tempo da guerra, patriota e piedosa, que gosta de cumprir um dever. Assim os joelhos, sua única falha de uma saúde de ferro, lho permitam uma outra vez.

 

E o futuro? Nas ‘pools’ da Grã-Bretanha, o neto William já vai à frente, como favorito para a sucessão, do filho Carlos, um tipo decente mas estranho, que deambula entre o jogo de pólo, a arquitectura alternativa, a homeopatia e as preocupações ambientais. Depois da morte de Diana, uma verdadeira ‘insider’ na família real britânica, resta Kate Midletton para dar um ar de graça a uma monarquia renovada. Com uma diferença em relação à defunta sogra – é que o neto da rainha escolheu-a entre todas as múltiplas candidatas, e ela ao princípio nem achou grande piada ao rapaz. O pai, Carlos, terá sido aconselhado pela sua amante de sempre, e actual mulher, Camilla, a desposar a virgem Diana, que ele levou para casa sem estar muito convencido da trama. O povo britânico sabe destas coisas...

 

No Natal ou quando ela quiser, Lilibeth, do alto dos seus 90 anos, costuma dar bonecos aos bisnetos, que lhe chamam ‘gan-gan’ em privado. Um dia destes, aposto, dá-lhes um cavalo, filho ou neto de um daqueles 22 com que já ganhou as corridas de Ascot.

publicado às 15:33

Ao Bloco: e na selecção de futebol, só homens?

 

Por: Pedro Rolo Duarte

 

Pedia ao Sapo24 que fizesse o obséquio de enviar esta crónica, sob a forma de carta, ao Bloco de Esquerda, esse baluarte da liberdade, que incendiou Portugal com a ideia de mudar a designação do Cartão do Cidadão, por entender que o nome discrimina as Cidadãs. Ontem soube-se que o Governo de António Costa está aberto a debater a ideia e criar um novo nome para o cartão - é no que dão os acordos de conveniência… Urge, por isso, fazer chegar esta carta ao BE…

 

 

“Caro Bloco de Esquerda (e quem o apoiar):

Sensível à problemática do género, e aos problemas que a nomenclatura pode provocar nessa busca incessante por uma paridade total, e também eu defensor de direitos e deveres iguais para ambos os sexos - aliás, para todos os sexos… -, venho por este meio apelar ao poder que a Assembleia da Republica vos confere, e à influência que conseguem ter na agenda mediática nacional, no sentido de conseguirem impedir imediatamente, antes que seja tarde, a realização dos Jogos Olímpicos do Brasil e do Campeonato da Europa de Futebol de 2016. Não sei se uma petição é suficiente - talvez uma providência cautelar, apelo ao Tribunal dos Direitos do Homem, reuniões extraordinárias da ONU…

 

Na verdade, ambos os eventos são exemplos acabados de discriminação de género - que, de resto, se alargam a todo o mundo do desporto. Não se compreende, à luz do que os senhores passam os dias a escrutinar, que haja futebol feminino e masculino - em vez de, como coerentemente devem defender, equipas mistas em campo. O mesmo se aplica ao ténis, ao atletismo, ao basquetebol, ao andebol, enfim: a todos os desportos, praticamente sem excepção.

 

Como aceitar que se realize um Campeonato Europeu de Futebol, onde aliás Portugal vai estar presente, sem que haja no relvado uma única mulher? Nem um arbitro do sexo feminino! Às mulheres, neste evento, está reservado o papel menor de assistir aos jogos, de trabalhar em bares ou serviços de hospedeiras - e o Bloco de Esquerdas tolera esta clara discriminação?

 

É certo que há futebol feminino - mas já se deram ao trabalho de aferir os valores monetários em causa no que às mulheres diz respeito? Ou de compararem a relevância dada, em emissão, aos jogos que as televisões transmitem?

 

O que digo sobre o futebol ganha estatuto de escândalo quando entramos no universo dos Jogos Olímpicos. Começando pelos números gerais: teremos 161 provas apenas masculinas, 136 apenas femininas, e apenas 9 mistas. Como se admite? Aproximemo-nos de Portugal: segundo o site do Comitê Olímpico nacional, dos 64 atletas que vão ao Brasil, apenas 25 são mulheres.

 

E poderia seguir para bingo, falando dos valores envolvidos nas competições de ténis femininas e masculinas, acabando no automobilismo e na ausência de mulheres na Fórmula Um.

 

Caro Bloco de Esquerda: está na hora de agarrarem este tema fracturante e o trazerem para as primeiras páginas dos jornais e dos debates televisivos”.

 

Pronto. Esta seria a carta que eu enviaria ao Bloco de Esquerda neste momento extremo (para não dizer absurdo e ridículo…) a que chegámos no debate sobre a igualdade do “género”.

 

Liberal, respeitador, aberto a todas as escolhas - e obviamente defensor da paridade máxima entre todos os “géneros” -, não deixo de verificar que o excesso de zelo, neste caso, prejudica o debate. Torna ridícula uma discussão que é séria. Desvaloriza uma causa válida. E, no limite, atrasa um caminho sério e consistente que Portugal, apesar de conservador e machista na essência, tem vindo a fazer com sucesso. E isso é mesmo o que mais irrita.

 

 

 

COISAS QUE A SEMANA ME DEIXOU

 

No mundo da comunicação, toda a gente se interroga sobre os modelos de negócios que farão o jornalismo, a publicidade e o marketing de amanhã. Este video não é muito recente, mas deixa pistas sobre as quais vale a pena pensar…

 

Já houve um tempo em que ser jornalista estava entre as profissões mais prestigiadas do mercado de trabalho. Pelos vistos, esse tempo acabou - e se os jornalistas já sentiam isso na pele, agora são os inquiridos dos estudos de opinião que começam a mostrar que percebem o que se passa à sua volta. Esta semana houve notícias sobre o ranking de profissões “boas” e “más”

 

Na semana em que se assinala mais um aniversário sobre a revolução que nos devolveu a liberdade, em 25 de Abril de 1974, sugiro uma visita a estes arquivos que a RTP primorosamente tem vindo a organizar. Para uns, recordação. Para outros, novidade. Para muitos, um sorriso ou uma lágrima ao canto do olho. Irresistível…

 

publicado às 09:48

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