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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Todos diferentes, todos bons rapazes portugueses!

Por: Márcio Alves Candoso

 

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Vamos falar de futebol. Um português nascido no Brasil corta uma jogada perigosa da equipa adversária na sua grande-área. A bola é recolhida por um preto da Musgueira, que avança no terreno até ter a noção do melhor passe. Manda o esférico para um mulato da Amadora, que a mete num menino branco e pobre da Madeira. Este remata à baliza, mas o guarda-redes contrário só tem tempo de a defender para um espaço vazio. Nesse mesmo sítio, surge um cigano e marca golo.

 

A ocorrência é verídica. Aconteceu na semana passada, aos 117 minutos de um jogo que, normalmente, só dura 90, e chegou e sobrou para que a selecção nacional de Portugal derrotasse a perigosa Croácia. Esta é a história de 23 rapazes, entre os 18 anos e os trinta e muitos, que têm em comum vestir a camisola das quinas e a cruz da Federação Portuguesa de Futebol. Falam todos português, ainda que um ou outro o conjugue malzinho. Nas suas origens, está um país pequenino, que andou pelo mundo inteiro, muito coeso na sua diferença. São todos portugueses. A nenhum lhe passará pela cabeça meter uma bomba no Rossio. Agnósticos, ateus ou cristãos, não importa. Um tem antepassados judeus. Todos filhos da cultura lusitana.

 

Há gente de todo o lado. Rui Patrício é de Marrazes (Leiria), e divide a baliza com Anthony Lopes, que nasceu nos arredores de Lyon (França) e Eduardo, um trasmontano de Mirandela. Na defesa, Cédric Soares é o actual lateral direito. Veio da Alemanha, nascido mesmo ao lado da fronteira com a Suíça, mas chegou a Portugal – zona de Lisboa - com apenas dois anos, trazido pelos pais emigrantes. Divide o lugar com Vieirinha, um rapaz de Guimarães. À excepção do guarda-redes titular, que actua no Sporting, jogam todos no estrangeiro.

 

No meio da defesa está um mestiço que fala à Norte. E nem podia ser de outra maneira, já que Bruno Alves nasceu e foi criado na Póvoa de Varzim. É filho da antiga glória local, o brasileiro Washington. Tem estado no banco, dando o lugar a Ricardo Carvalho, o mais velho da selecção, que começou a carreira na sua terra natal – Amarante. Parece ter perdido a titularidade, por sua vez, para José da Fonte, um seu vizinho de Penafiel. Já Pepe – mais exactamente Képler Laveran Lima Ferreira – veio de Alagoas (Brasil) com 18 anos, para tentar a sua sorte no Marítimo. Depois de Deco, foi o segundo brasileiro a envergar a camisola da selecção nacional; mas, ao contrário do ‘mágico’, cedo aprendeu o hino que canta sempre antes do jogo começar.

 

No lado esquerdo da defesa, um açoriano mestiço e um branco nascido em França dividem o lugar. Eliseu nasceu num bairro de Angra do Heroísmo (Terceira), filho de pais cabo-verdianos, e é o primeiro jogador do arquipélago a tornar-se campeão nacional desde que Mário Jorge e Mário Lino o fizeram nas décadas de 50 e 70. Mas, ao contrário dos seus conterrâneos, não veste a camisola do Sporting – é benfiquista desde pequenino. Para encontrar um benfiquista açoriano campeão, é preciso recuar até aos anos 40, altura em que o faialense Joaquim Teixeira envergou a camisola do ’Glorioso’ e da selecção. Açoriano e benfiquista era o Mário Bettencourt Resendes, saudoso campeão de jornalismo; outras ‘guerras’...

 

Raphael Guerreiro – é mesmo assim, com ‘ph’ – nasceu canhoto perto de St.Denis, no nordeste de Paris. Jogar no Stade de France, se Portugal chegar à final, será para ele quase um regresso a casa, depois de ter passado os anos mais recentes na Bretanha e de agora rumar a Dortmund, na Alemanha. O pai emigrante também foi jogador de futebol. Gostava de actuar no Benfica, mas para já ainda não foi possível.

 

No meio-campo, a parte mais defensiva – a chamada ‘posição seis’ - é dividida entre dois rapazes de Sintra. Danilo Pereira veio de Bissau (Guiné) e William Carvalho tem ascendência angolana. Mais à frente aprece Adrien Sébastian Pérrouchet Silva, nascido em Angoulême e criado em Arcos de Valdevez. A 650 quilómetros de distância da terra minhota, nasceu João Moutinho,’marafado’ de Portimão. Já Rafael Silva, mais conhecido por Rafa, é um dos dois únicos lisboetas de gema a actuar na selecção.

 

No Porto, mais concretamente em Pedras Rubras, nasceu João Mário, que havia de tomar o avião para Lisboa para representar o Sporting. É de família angolana - os pais são de Luanda – e tem dois irmãos na alta roda do futebol – o bracarense Wilson Eduardo e o jogador de futsal do Belenenses, Hugo Eduardo. Seu vizinho de nascimento é André Gomes – Grijó, Gaia -, que cedo rumou ao Benfica de agora actua no Valência de Espanha.

 

O puto da selecção é uma obra do bairro da Musgueira, em Lisboa. Mas como tantos dos seus companheiros de infância, nasceu filho de africanos – uma cabo-verdiana e um são tomense. Renato Sanches acaba de ser vendido ao Bayern. Já Ederzinho António Macedo Lopes – cujo diminutivo é Éder – veio da Guiné com tenra idade para a zona centro do país. Distinguiu-se na Académica.

 

Sobram os três ases deste baralho de naipes coloridos. São também os mais conhecidos, neste desporto onde quem vai à frente e marca mais golos é menino querido das multidões. Luís Carlos Almeida da Cunha – mais conhecido por Nani – nasceu na Amadora e começou no Massamá, terra de descendentes africanos e de primeiros-ministros migrantes. Os pais são cabo-verdianos, onde nasceram igualmente os seus irmãos.

 

Já Ricardo Quaresma é mais que uma mistura, é várias. A mãe é uma angolana morena e o pai – de que há pouca memória – é cigano. Nascido e criado em Lisboa, é sobrinho-neto do grande Artur Quaresma, que foi campeão no Belenenses. O ’Harry Potter’ – nome que lhe vem da magia que faz com os dois pés – joga agora na Turquia.

 

Deixei para o fim o menino pobre que fez o passe para o golo no jogo contra a Croácia, e que no desafio com a Hungria tinha já marcado dois, um do tipo ‘mostra lá outra vez, que eu até troquei os olhos’ e outro de cabeça. A ‘primeira exportação da Madeira’ - bate a banana, segundo a mãe dele – está cotado como o melhor jogador do mundo. É também o desportista mais bem pago do planeta, e já bateu quase todos os recordes que há para bater. Hoje tem pela frente o recorde de Platini, o jogador que até hoje marcou mais golos em campeonatos da Europa de futebol. Falta-lhe um para igualar, com dois passa a ser o maior. Chama-se Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro.

 

Vêm de todo o lado. Não têm em comum a raça. Têm a raça portuguesa. E agora venha de lá a Polónia!

 

PS – Já que falamos de pessoas unidas na diferença, aqui fica uma anedota que os polacos contam. Uma vez, durante a II Guerra Mundial, as SS alemãs invadiram uma pequena vila polaca e fizeram refém toda a população. Um jovem conseguiu fugir à vigilância nazi, mas pouco depois tinha as SS no seu encalço. Um dos soldados apontou a arma com intenção de abater o rapaz. Mas do Céu chegou a voz de Deus. ‘- Pára, não podes fazer isso, esse rapaz vai ser Papa!’, falou lá do alto Deus. O soldado tremeu, baixou a arma e perguntou:’ – Senhor, e eu?’.. ‘- Tem calma tu vais a seguir!’…

publicado às 12:42

Todos diferentes, todos bons rapazes portugueses!

Por: Márcio Alves Candoso

 

Vamos falar de futebol. Um português nascido no Brasil corta uma jogada perigosa da equipa adversária na sua grande-área. A bola é recolhida por um preto da Musgueira, que avança no terreno até ter a noção do melhor passe. Manda o esférico para um mulato da Amadora, que a mete num menino branco e pobre da Madeira. Este remata à baliza, mas o guarda-redes contrário só tem tempo de a defender para um espaço vazio. Nesse mesmo sítio, surge um cigano e marca golo.

A ocorrência é verídica. Aconteceu na semana passada, aos 117 minutos de um jogo que, normalmente, só dura 90, e chegou e sobrou para que a selecção nacional de Portugal derrotasse a perigosa Croácia. Esta é a história de 23 rapazes, entre os 18 anos e os trinta e muitos, que têm em comum vestir a camisola das quinas e a cruz da Federação Portuguesa de Futebol. Falam todos português, ainda que um ou outro o conjugue malzinho. Nas suas origens, está um país pequenino, que andou pelo mundo inteiro, muito coeso na sua diferença. São todos portugueses. A nenhum lhe passará pela cabeça meter uma bomba no Rossio. Agnósticos, ateus ou cristãos, não importa. Um tem antepassados judeus. Todos filhos da cultura lusitana.

 

Há gente de todo o lado. Rui Patrício é de Marrazes (Leiria), e divide a baliza com Anthony Lopes, que nasceu nos arredores de Lyon (França) e Eduardo, um trasmontano de Mirandela. Na defesa, Cédric Soares é o actual lateral direito. Veio da Alemanha, nascido mesmo ao lado da fronteira com a Suíça, mas chegou a Portugal – zona de Lisboa - com apenas dois anos, trazido pelos pais emigrantes. Divide o lugar com Vieirinha, um rapaz de Guimarães. À excepção do guarda-redes titular, que actua no Sporting, jogam todos no estrangeiro.

 

No meio da defesa está um mestiço que fala à Norte. E nem podia ser de outra maneira, já que Bruno Alves nasceu e foi criado na Póvoa de Varzim. É filho da antiga glória local, o brasileiro Washington. Tem estado no banco, dando o lugar a Ricardo Carvalho, o mais velho da selecção, que começou a carreira na sua terra natal – Amarante. Parece ter perdido a titularidade, por sua vez, para José da Fonte, um seu vizinho de Penafiel. Já Pepe – mais exactamente Képler Laveran Lima Ferreira – veio de Alagoas (Brasil) com 18 anos, para tentar a sua sorte no Marítimo. Depois de Deco, foi o segundo brasileiro a envergar a camisola da selecção nacional; mas, ao contrário do ‘mágico’, cedo aprendeu o hino que canta sempre antes do jogo começar.

 

No lado esquerdo da defesa, um açoriano mestiço e um branco nascido em França dividem o lugar. Eliseu nasceu num bairro de Angra do Heroísmo (Terceira), filho de pais cabo-verdianos, e é o primeiro jogador do arquipélago a tornar-se campeão nacional desde que Mário Jorge e Mário Lino o fizeram nas décadas de 50 e 70. Mas, ao contrário dos seus conterrâneos, não veste a camisola do Sporting – é benfiquista desde pequenino. Para encontrar um benfiquista açoriano campeão, é preciso recuar até aos anos 40, altura em que o faialense Joaquim Teixeira envergou a camisola do ’Glorioso’ e da selecção. Açoriano e benfiquista era o Mário Bettencourt Resendes, saudoso campeão de jornalismo; outras ‘guerras’...

 

Raphael Guerreiro – é mesmo assim, com ‘ph’ – nasceu canhoto perto de St.Denis, no nordeste de Paris. Jogar no Stade de France, se Portugal chegar à final, será para ele quase um regresso a casa, depois de ter passado os anos mais recentes na Bretanha e de agora rumar a Dortmund, na Alemanha. O pai emigrante também foi jogador de futebol. Gostava de actuar no Benfica, mas para já ainda não foi possível.

 

No meio-campo, a parte mais defensiva – a chamada ‘posição seis’ - é dividida entre dois rapazes de Sintra. Danilo Pereira veio de Bissau (Guiné) e William Carvalho tem ascendência angolana. Mais à frente aprece Adrien Sébastian Pérrouchet Silva, nascido em Angoulême e criado em Arcos de Valdevez. A 650 quilómetros de distância da terra minhota, nasceu João Moutinho,'marafado' de Portimão. Já Rafael Silva, mais conhecido por Rafa, é um dos dois únicos lisboetas de gema a actuar na selecção.

 

No Porto, mais concretamente em Pedras Rubras, nasceu João Mário, que havia de tomar o avião para Lisboa para representar o Sporting. É de família angolana - os pais são de Luanda – e tem dois irmãos na alta roda do futebol – o bracarense Wilson Eduardo e o jogador de futsal do Belenenses, Hugo Eduardo. Seu vizinho de nascimento é André Gomes – Grijó, Gaia -, que cedo rumou ao Benfica de agora actua no Valência de Espanha.

 

O puto da selecção é uma obra do bairro da Musgueira, em Lisboa. Mas como tantos dos seus companheiros de infância, nasceu filho de africanos – uma cabo-verdiana e um são tomense. Renato Sanches acaba de ser vendido ao Bayern. Já Ederzinho António Macedo Lopes – cujo diminutivo é Éder – veio da Guiné com tenra idade para a zona centro do país. Distinguiu-se na Académica.

Sobram os três ases deste baralho de naipes coloridos. São também os mais conhecidos, neste desporto onde quem vai à frente e marca mais golos é menino querido das multidões. Luís Carlos Almeida da Cunha – mais conhecido por Nani – nasceu na Amadora e começou no Massamá, terra de descendentes africanos e de primeiros-ministros migrantes. Os pais são cabo-verdianos, onde nasceram igualmente os seus irmãos.

 

Já Ricardo Quaresma é mais que uma mistura, é várias. A mãe é uma angolana morena e o pai – de que há pouca memória – é cigano. Nascido e criado em Lisboa, é sobrinho-neto do grande Artur Quaresma, que foi campeão no Belenenses. O 'Harry Potter' – nome que lhe vem da magia que faz com os dois pés – joga agora na Turquia.

 

Deixei para o fim o menino pobre que fez o passe para o golo no jogo contra a Croácia, e que no desafio com a Hungria tinha já marcado dois, um do tipo ‘mostra lá outra vez, que eu até troquei os olhos’ e outro de cabeça. A ‘primeira exportação da Madeira’ - bate a banana, segundo a mãe dele – está cotado como o melhor jogador do mundo. É também o desportista mais bem pago do planeta, e já bateu quase todos os recordes que há para bater. Hoje tem pela frente o recorde de Platini, o jogador que até hoje marcou mais golos em campeonatos da Europa de futebol. Falta-lhe um para igualar, com dois passa a ser o maior. Chama-se Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro.

 

Vêm de todo o lado. Não têm em comum a raça. Têm a raça portuguesa. E agora venha de lá a Polónia!

 

P.S. – Uma vez, durante a II Guerra Mundial, as SS alemãs invadiram uma pequena vila polaca e fizeram refém toda a população. Um jovem conseguiu fugir à vigilância nazi, mas pouco depois tinha as SS no seu encalço. Um dos soldados apontou a arma com intenção de abater o rapaz. Mas do Céu chegou a voz de Deus. "Pára, não podes fazer isso, esse rapaz vai ser Papa!", falou lá do alto Deus. O soldado tremeu, baixou a arma e perguntou: "Senhor, e eu?". "Tem calma tu vais a seguir!"…

 

publicado às 12:34

Uma ilusão a menos

Por: Pedro Rolo Duarte

 

Oito dias depois, passado o choque inicial, as cabeças arrefecem e os comentários sobre o resultado do referendo no Reino Unido vão mudando de tom. No começo, parecia uma maré alta em tempos de marés vivas - e a histeria atravessava os que defendiam o brexit tanto quanto os que julgavam essencial a permanência do país na União Europeia. O cataclismo foi garantido de ambos os lados.

 

Agora, a “vitória” começa a ser distribuída por toda a gente: os que defendiam a saída da União continuam satisfeitos com o resultado do referendo, mas perderam a pressa na saída; os que viam no abandono britânico o terramoto que iria matar a Europa unida começam a vislumbrar no triste resultado algumas oportunidades. Repensar a Europa. Refundar a Europa. Corrigir a Europa.

 

Para quem, como eu, chegou à maioridade quando o processo de adesão à (então) CEE começou - e atravessou os anos 80 e 90 assistindo ao milagre da multiplicação das auto-estradas, ao enriquecimento de meio-mundo, ao “desenvolvimento” traduzido em multibancos, vias verdes e centros comerciais, ao fim dos tormentos nas fronteiras e à chegada, impante, de uma nova moeda -, o momento que vivemos, qualquer que seja o desenlace, é igual ao sinal de trânsito que nos indica “estrada sem saída”. É o fim desse aparente paraíso em que os mesmos países que, menos de 50 anos antes, se confrontavam impiedosamente numa guerra insana e esmagadora, estavam agora juntos e estáveis à procura de um crescimento sustentável e de um ambiente próspero para os seus cidadãos, em democracia e liberdade.

 

Foi esta ideia que alimentou a minha adesão ao projecto europeu. Como se, por fim, olhássemos uns para os outros e percebêssemos que pertencíamos a uma mesma raiz, mesmo que com crescimentos e ideias diferentes.

 

Afinal, não é bem assim. Ainda há quem ache que há seres humanos de primeira e de segunda, ainda há quem queira defender o seu território com medo de “invasões bárbaras”, ainda há quem não tenha percebido que, num mundo globalizado, quanto mais nos fechamos,  mais ameaçados estaremos (como ainda há dois dias se viu em Istambul)…

 

O resultado do referendo no Reino Unido foi mais decepcionante do que se tivesse ocorrido, com igual resultado, em qualquer outro terreno europeu - justamente porque o país reclama para si uma democracia com História, e uma certa arrogância política e cultural. Que não se traduz na resposta à pergunta mais básica de todas. A que define o futuro, independentemente das contingências do presente.

 

 

Uma semana quente…

 

Depois do referendo britânico, vieram as eleições espanholas - com menos respostas do que as desejadas, e mais surpresas do que as esperadas. Seguia-as por aqui, com dinamismo e muita informação, apesar da colagem obvia ao PP…

 

… Mas ainda sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, a mais resumida e clara soma de consequências encontrei-a, online, no Financial Times

 

Menos de dois minutos: um excelente video produzido pela revista The Economist sobre a felicidade na Europa. Em semana de ressaca do brexit, vale a pena…

publicado às 08:38

A democracia directa tem destas coisas

Por: Paulo Ferreira

 

As lideranças fracas tenderão mais a “chutar para referendo” as decisões que potencialmente dividam o país ao meio, onde o deve e haver da mercearia eleitoral não é claro. E fica sempre bem dizer que se dá “a voz ao povo”

 

A democracia e os seus instrumentos essenciais são uma coisa fantástica enquanto produzem resultados com os quais concordamos. Mas quando vence o “outro lado” o povo passa de inteligente a estúpido, a lucidez foi vencida pelo medo e a seriedade perdeu para o populismo.

 

É sempre mais fácil arrumar a questão desta forma e seguir em frente, do mesmo modo, até à próxima batalha eleitoral. O que dá trabalho e demora tempo é identificar as causas do falhanço, entendê-las e tentar alterá-las.

 

O resultado do referendo britânico foi um abalo que apanhou muita gente de surpresa. As últimas sondagens tinham-nos dito que o “ficar” estaria à frente do “sair” por uma margem que se estava a consolidar. Mas não foi assim.

 

Entristece-me a potencial saída do Reino Unido da União. Sem eles, a Europa não é a mesma coisa. Não só em questões como a dimensão, o poder económico do bloco, o contributo para a defesa comum ou a diplomacia mas, também, porque a voz crítica e desconfiada que os britânicos sempre fizeram questão de manter no palco europeu é, em si mesma, um contributo positivo.

 

Não me parece que alguém ganhe com a saída dos britânicos. Nem os próprios, já que ao estarem fora do euro mantêm já um elevado grau de liberdade nas políticas económicas, monetárias e orçamentais.

 

Mas é mesmo assim. Foi dada a voz ao povo e o povo disse de sua justiça numa decisão de enorme importância que, para muitos, tem contornos trágicos.

 

Nos últimos dias li e ouvi muita gente diabolizar David Cameron por ter convocado o referendo, vendo aí o pecado original deste tema. Certamente que se os 52%-48% (arredondados) tivessem sido ao contrário, o mesmo Cameron estaria a ser elogiado pelos mesmos por ter vencido e arrumado, por muitos anos, a questão sempre latente no Reino Unido da permanência na UE.

 

A utilização dos instrumentos de democracia directa, como o referendo, é das mais complexas e sensíveis.

 

A teoria e o politicamente correcto dizem-nos que quanto mais, melhor. Por princípio, é mais legítimo chamar milhões de cidadãos a tomar uma decisão do que deixá-la nas mãos de umas escassas centenas de deputados que foram eleitos pelo mesmo voto popular mas que podem, em dossiers concretos, fazer um julgamento diferente do da base popular que os elegeu.

 

Mas, por outro lado, transformar a democracia numa sucessão de referendos levar-nos-á a um mundo melhor? Tenho dúvidas.

 

Li por estes dias nas redes sociais um comentário com o qual concordo (lamento, mas já não consigo identificar o autor). Dizia, sobre a utilização de referendos, que se em Portugal se consultassem os eleitores sobre a introdução da pena de morte ou o acolhimento de imigrantes e refugiados talvez tivessemos uma surpresa do “povo dos brandos costumes”. É muito possível que sim, que uma maioria se pronunciasse a favor da primeira e contra o segundo. E isso seriam, a meu ver, dramáticos retrocessos civilizacionais.

 

O que para mim não faz sentido são consultas populares sobre direitos individuais que, quando exercidos por alguém, não interferem na liberdade alheia. Casamento entre pessoas do mesmo sexo e direitos associados, eutanásia, interrupção da gravidez até determinado período ou consumo de drogas leves devem, no meu entender, ser legislados no sentido de maximizar a liberdade e equiparar direitos sem me dar sequer a opção de interferir ou opiniar sobre as opções do meu vizinho. A vida dele é com ele. A minha é comigo.

 

Diferentes são os temas que dizem respeito à organização política do país que, de forma directa ou indirecta, interferem na vida de todos. O grau de envolvimento com a União Europeia, a regionalização ou mudanças profundas no sistema eleitoral são assuntos que a todos dizem respeito porque interferem com a organização da vida colectiva e com as instituições que a decidem e colocam em prática. Ao impacto destas ninguém escapa, para o bem e para o mal.

 

Mas, ainda assim, estes temas devem ser colocados a consulta popular? Isso terá mais a ver com as forças e fraquezas das lideranças políticas do momento do que com níveis de amor à democracia. Líderes fortes, com uma visão estratégica consolidada e com dimensão pessoal e política para suportar as consequências das suas decisões terão mais facilidade em decidir contra aquilo que são os sentimentos da opinião pública. Das lideranças políticas espera-se que estejam melhor habilitadas a tomar decisões complexas e muitas vezes duras, com longas listas de prós e contras, do que o cidadão médio. Foi assim que Helmut Khol fez a reunificação alemã e levou o seu país para o euro ou que Churchill optou por enfrentar Hitler.

 

Já as lideranças fracas tenderão mais a “chutar para referendo” as decisões que potencialmente dividam o país ao meio, onde o deve e haver da mercearia eleitoral não é claro. E fica sempre bem dizer que se dá “a voz ao povo”.

 

Seja como for, o que não se pode nem deve é fazer a pergunta quando não se está disponível para aceitar todas as consequências de uma resposta. Voltando ao Brexit, é isso que tem acontecido demasiadas vezes na União Europeia, com a repetição de referendos até que produzam a resposta “certa”. Essa é também uma das causas que afasta os cidadãos da Europa e repetir novamente o erro não só seria irónico como podia ser ainda mais trágico.

 

Outras leituras

  • “Brexit” é o novo “o mundo mudou”? Claro que, em termos de comunicação política, é um óptimo pretexto para assumir a deparragem das previsões. Se tem grande ou pequeno impacto de facto é uma questão bem diferente.

 

  • Tudo o que vá para além de uma sanção simbólica a Portugal, sem custo financeiro, por violação da meta do défice do ano passado será inaceitável. A menos que a Comissão Europeia queira brincar com o fogo.
publicado às 11:39

Desculpe se lhe furei os olhos, foi sem querer...

Por: José Couto Nogueira

 

 

 

Os alemães têm fama de ser rígidos, mas são os ingleses que têm o comportamento mais codificado da Europa. Quando duas pessoas não sabem sobre o que falar, falam do estado do tempo. Quando não sabem o que fazer, bebem chá. Têm horas precisas para começar e parar de se alcoolizar. Inventaram palavras para quando precisam de dizer alguma coisa e não querem dizer nada (“indeed” é uma delas). Vivem num sistema de classes em que até a maneira de falar distingue imediatamente a aristocracia da classe média e esta do proletariado. E sim, continuam a ter esse sistema de castas de mobilidade muito reduzida, apesar das instituições democráticas.

 

Tudo isto é causa e efeito. A causa é esconder a baixa quantidade de neurónios. Se soubermos como nos comportar em todas as circunstâncias e o que dizer de apropriado em qualquer altura, não precisamos de usar muito a cabeça. O efeito é uma sociedade que, apesar dos seus problemas, conseguiu construir um Império e impor uma pretensa superioridade a toda a gente. Que problemas, poder-se-á perguntar. São tantos, mas bastará enumerar alguns: o hooliganismo e o alcoolismo, as 140 mil crianças e adolescentes que desaparecem por ano, os 700 hectares de Londres que pertencem à Rainha e dois nobres, mais os 250 hectares que estão na mão dos sheiks do Golfo. O orgulho e preconceito, já dizia Jane Austen. Todos estes e muitos outros indicadores de um país difícil desaparecem debaixo da maior invenção dos ingleses, o sentido de humor, e também de um estilo muito forte que dá ideia de qualidade e duração aos produtos britânicos.

 

Isto não quer dizer que o Reino Unido não tenha gente de qualidade e grandes feitos no currículo, evidentemente; basta fazer a lista dos filósofos e cientistas, das descobertas e das invenções que mudaram o mundo. Mas a questão que está agora na mesa é o Brexit – não só a votação em si, como a atitude pós-referendo. É essa atitude, deveras surpreendente, que coloca em cima da mesa o tal problema dos neurónios.

 

Logo no dia do referendo, ao saber-se os resultados, os seus protagonistas vieram a público. Nigel Farage, o único verdadeiramente eurofóbico, disse que tinha mentido durante toda a campanha, ao afirmar que o dinheiro que se enviava para a UE será gasto em Assistência Social (serviços de saúde e pensões); David Cameron, que propôs o referendo para se manter no poder, mas era contra a saída, perdeu a consulta, e tem que se demitir. Boris Johnson, que apoiou a saída para tirar o lugar a Cameron, veio logo dizer que não há pressa em sair e, numa especulação vergonhosa, que os ingleses não vão perder quaisquer direitos na Europa. Jeremy Corbin teve um papel tão apagado que os trabalhistas já o querem substituir.

 

Isto ao nível dos que mandam. E os que obedecem? Segundo o Google, as consultas mais frequentes na Grã Bretanha na sexta-feira – depois de sabidos os resultados, foram: “O que é a União Europeia?” e “O que acontece se sairmos da UE?” Em incontáveis entrevistas feitas na rua, as pessoas dizem que estão arrependidas e dão justificações do outro lado da Lua por ter votado no Brexit:

“Não votei para sairmos, era mais um voto de protesto”.

“Na outra vez votei para ficarmos e a vida não me tem corrido bem, portanto achei que devia votar ao contrário.”

“Fiquei chocada quando soube o resultado, porque agora percebi que estamos a tramar os jovens e a poupança de 350 milhões de libras (?) não vai muito longe.” (Senhora de 87 anos, esta.)

“Votei para protestar contra as populações rurais esquecidas e as zonas industriais abandonadas, e porque estou farto do egocentrismo de Londres.”

“No meu prédio moram uma data de húngaros e estou farto de os ouvir a falar húngaro.”

“Votei para sair porque achei que íamos ficar e o meu voto não faria diferença.”

“Votei pela saída porque não quero assistir a mais jogos do Euro.”

Há dois ou três vídeos que se tornaram virais nas redes sociais onde as pessoas justificam o Brexit da maneira mais idiota. Num deles, “My Stupid Girlfriend Explains Why She Vote Brexit” (isto é mesmo real, por amor de Deus?!) uma adolescente explica que prefere comer ovos de galinhas inglesas, em vez de ovos de galinhas que não se sabe de onde vêm.

 

Os disparates, raciocínios irracionais e a pura estupidez aparecem agora no Twitter, nas redes sociais e nas cartas aos jornais. De repente, a sensação que dá é que foi tudo um engano. Claro que é menos provável que as pessoas que votaram para sair e acham que fizeram bem se manifestem, mas as consultas feitas na rua pelas televisões mostram a mesma quantidade de arrependimento.

 

No que pode ser uma situação histórica inédita, o projecto maravilhoso que é a UE pode começar o seu fim, porque pessoas que não percebem bem o querem,no segundo pais mais importante da União, tomaram uma decisão precipitada.

 

Depois, há o lado terrível. Os xenófobos, anti-imigrantes, fascistas e saudosos do Império acham que o resultado do referendo lhes dá imediatamente carta branca para por cá para fora todo o seu ódio. Num bairro periférico onde vivem muitos polacos, apareceu nas caixas do correio e nas paredes um folheto bilingue que diz “Porcos polacos voltem para casa”. Muitas pessoas, sobretudo as que não têm o suposto arquétipo britânico (pele muito branca, louro ou ruivo) ou que se vestem exoticamente queixam-se que têm sido insultadas, empurradas e, em alguns casos, agredidas. Duas amigas que estavam num café viram um homem encostar-se ameaçadoramente à mesa e dizer-lhes “Vão para a vossa terra!” Respondeu uma delas: “Mas nós nascemos aqui, esta é a nossa terra.” “Não parecem nada” respondeu o bruto. Alguns portugueses também já se queixaram de ouvir coisas desagradáveis. Uma passageira de Lisboa, quando mostrou o cartão de cidadão no aeroporto de Heathrow, o funcionário disse-lhe logo, agreste: “Da próxima vez, esse já não serve!”

 

Finalmente, há a enorme confusão entre imigrantes europeus e não europeus. Os estrangeiros que mais incomodam os ingleses são os que vieram do Paquistão, Índia e os muçulmanos radicais. A sua presença, em muitos casos há várias gerações, tem a ver com a Commonwealth. Ora, nenhuma destas três origens é europeia, e portanto a sua entrada em nada sofrerá com o Brexit.

 

O parlamento escocês decidiu que vai fazer um novo referendo para se separar da Inglaterra e depois aderir à UE. Os irlandeses do Norte estão até dispostos a juntar-se à República da Irlanda para continuar na Europa. E há um pedido para que se faça novo referendo – no domingo já tinha dois milhões e quinhentas mil assinaturas.

 

Ora, a verdade é, pela lei britânica, o referendo não é vinculativo. Trata-se apenas de uma consulta. Isto não está especificamente escrito, uma vez que o Reino Unido não tem uma Constituição, mas é a tradição. Segundo o “Guardian”, em rigor Cameron podia ignorar o acto e ficar-se por aí. Mas entretanto ele já disse que aceita o resultado. Portanto terá de apresentar a proposta ao Parlamento. O Parlamento pode rejeitar e decidir que tudo não passou tudo do tal humor britânico que disfarça tão bem a questão dos neurónios.

 

O problema é que o alemães, que não são notórios pelo sentido de humor, podem achar que então não passou de uma sórdida chantagem – um bluff à escala continental.

 

publicado às 12:14

A crise está a explodir. Alguém tem a audácia de um plano estimulante para reanimar a Europa?

Por: Francisco Sena Santos

 

Nos anos 80 e 90, até mesmo na viragem para este século XXI, a União Europeia era vivida como uma ideia visionária e um sentimento político que entusiasmava pela sua cultura que tem como valores primários a liberdade e a solidariedade.  A presidência europeia de Delors (1985/95) e a evolução do continente no tempo da queda dos muros eram a turbina para esse sentimento de esperança. Havia a ilusão de estar em construção uma união de povos assente na procura de coesão e progresso num longo e consolidado pós-guerra em que já ninguém pensava nas guerras, sonhava-se o futuro com a Europa de Schengen e de Erasmus sem fronteiras.

 

Mas começaram a aparecer desconfianças, que foram crescendo à medida que nos adentrávamos neste século. A crise financeira de 2007 marcou a viragem. Ficou instalada no poder uma geração de dirigentes que reduziu o estimulante processo de integração europeia à obstinada defesa do euro e dos interesses dos mercados financeiros. Onde antes florescia o sentimento europeísta passou a crescer a desilusão ou a fúria e o antieuropeísmo avança como ressentimento robusto.

 

Quando a ambição de caminhos imaginativos de progresso para a Europa foi derrubada nem sequer ficou a sensatez. A condução europeia, cada vez mais distante e burocrática, levou a que se instalasse um sentimento dominante de perda. Entrou um tempo de precariedade difusa, trágica. Os que mandam na Europa impuseram as receitas da austeridade, a classe média baixou drasticamente o seu poder de compra, os pobres ficaram mais desamparados, o número de pessoas excluídas aumentou. Quebraram-se os vínculos que tinham unido os europeus na ilusão de uma União em busca da coesão. Os dirigentes europeus foram incapazes de propor uma discussão estratégica plural, democrática, na procura de soluções. Imperou a política de Berlim e com ela Bruxelas, a executora, desligou-se das pessoas, dos cidadãos.

 

Com o assédio do temor de cada vez mais pobreza e insegurança, perdida a confiança nas lideranças tradicionais, um número sempre crescente de cidadãos foi-se agarrando ao que lhe ia aparecendo com promessas de mudança. Entrámos no tempo das mensagens negativas, a explorar as inseguranças. Os media também tratam de fazer negócio com a decomposição que se instala. É assim que os britânicos – deve dizer-se: os ingleses – votaram pelo rompimento com a União Europeia. É uma escolha que mobiliza mais populismos e mais xenofobia, da Holanda aos Balcãs, passando pela França e pelos países que querem escapar à ameaça da Rússia pos-soviética de Putin, Hungria, Polónia, Bulgária e os outros.

 

Uma questão essencial tem de ser esta: vai prevalecer a devastadora impotência e o contágio negativo da última década europeia ou vai ser possível, finalmente, um rasgo para que a Europa volte a poder propor futuro?

 

Lê-se e ouve-se de muitos dos políticos europeus que chegou o tempo para relançar o ideal europeu. Mas até parece que eles estão, tal como os sumidos dirigentes ingleses que ganharam o Brexit, sem saber como lidar com o que têm pela frente. Falam de reaproximação com os cidadãos, mas não se vislumbra qualquer ideia concreta para concretizarem as intenções.

 

Será que algum líder tem coragem e é capaz de ousar um golpe visionário de fantasia e inteligência que livre os europeus do assédio constante da crise, dos tecnicismos, dos medos, das exclusões, dos muros e que volte a estimular o ideal da União Europeia? Se alguém o conseguir, ainda bem que houve este sobressalto do Brexit para despertar esse rasgo que acabe com a traição em curso a um projeto político que nasceu como união de paz e concórdia. Vale lembrar sempre que a Europa se uniu para que não se repitam massacres gigantescos como os das Grandes Guerras da primeira metade do século XX. Por agora, o que se vê, é, como advertiu o Papa, uma Europa em risco de balcanização. Com o reino britânico desunido, dividido em duas metades, a sair da União Europeia, portanto a legitimar que Escócia e Irlanda do Norte avancem para a independência, com inevitável dominó na Catalunha, eventualmente no País Basco e em outras ambições soberanistas. A crise está a explodir à nossa frente. Aparecerá alguma liderança audaz, corajosa? Alguém capaz de voltar a fazer crescer o encanto com a Europa?

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

Do lado americano, notícias de sensatez do eleitorado: Donald Trump em queda livre nas sondagens. Os eleitores dos EUA estão a abrir os olhos para o risco do voto populista e um salto para o desconhecido?

 

Afinal Mariano Rajoy nem precisou de ir a penaltis, ganhou no prolongamento mas vai ter de fazer política para conseguir um acordo, não apenas de poder como também de estabilidade, para o novo governo de Espanha. O PSOE perde, mas resiste ao tsunami anunciado. Saem derrotados os novos movimentos (Podemos e Ciudadans) e as sondagens que deram grande fiasco até mesmo na noite das eleições.

 

A Islândia é um país com apenas 330 mil habitantes e uma escassa centena de futebolistas profissionais mas conseguiu eliminar do Euro16 os criadores do futebol. Antes já tinham posto fora a Holanda. Até onde vai este fabuloso destino islandês? A Espanha que entrou bicampeã  mas agora reconhece fim de ciclo e há jornais, como o Superdeporte, que chegam a ser cruéis com o selecionador que antes levou a Espanha ao triunfo. Seja como for, o futebol é para ser uma festa, ninguém ganha com azedumes. Já agora: a seleção portuguesa que seja capaz de ganhar mas, sobretudo, apetece que seja capaz de encantar com o jogo, como às vezes faz.

 

As primeiras páginas escolhidas hoje são as do futebol.

publicado às 07:30

A culpa é mesmo de Bruxelas?

Por: António Costa

 

Há hoje na Europa comunitária uma espécie de sentimento anti-Bruxelas, que se materializou, ironicamente, num referendo no país mais protegido das imposições da União Europeia do ponto de vista político e económico-financeiro. Se calhar, porque, na realidade, os responsáveis da crise da União Europeia estão, em primeiro lugar, nas capitais dos seus 28 estados-membros.

 

É fácil responsabilizar a União Europeia, os burocratas de Bruxelas e as instituições europeias pela estagnação do projeto político que começou, lá atrás, com a comunidade do carvão e do aço. A seguir, aparecem na lista dos mais procurados por esta crise a chanceler Merkel e os sucessivos presidentes da Comissão Europeia. Serão mesmo os culpados disto tudo?

 

A União Europeia, mesmo com a lógica da bicicleta que tem sempre de estar em movimento, foi o suporte da paz e do desenvolvimento económico da Europa nos últimos 40 anos. A cada novo passo, foi inclusiva, cresceu, mas manteve os compromissos iniciais de promoção da recuperação dos que estavam mais atrasados. Com muito dinheiro, suportado pelos orçamentos nacionais e pelas transferências entre países, com outro pressuposto relevante: os líderes e os cidadãos dos países menos desenvolvidos fariam o que fosse necessário para prepararem os seus respetivos países para as novas exigências de um mercado único, primeiro, e de uma moeda única, depois. É claro que o resto do mundo não estava parado e isso era, em si mesmo, uma outra dificuldade, esta externa, para a construção da União Europeia e do euro.

 

Mesmo nos países que mais beneficiaram da União Europeia e do euro, como Portugal, há uma clara falta de memória, seletiva, sim, sobre a história desde 1986. Os fundos comunitários, um mercado único para as empresas e pessoas, a redução brutal dos juros cobrados ao país porque assumimos o compromisso do euro. O que fizemos com essas vantagens, particularmente a partir de 1995? Pouco e mal. É por isso incompreensível, por exemplo, um espírito tão pouco crítico ao período 1995/2001, com o Governo de António Guterres, provavelmente o pior desde a entrada na CEE em 1986.

 

A Comissão Europeia e algumas das suas direções-gerais ganharam uma vida própria, para lá do voto dos eleitores europeus, especialmente à medida que o grupo cresceu e passou a ser mais difícil consensualizar posições. Do diálogo e da diplomacia, passamos para o voto dos mais fortes, que aliás se acentuou desde a crise financeira de 2007/2008. Os principais líderes europeus e a própria comissão cometerem erros, sim, uns de comunicação, outros de substancia. Mas, na verdade, sempre para corrigirem os pecados originais de um projeto político que ganhou expressão monetária e uma moeda única e que, eles próprios, foram impossíveis de gerir por razões de política interna de cada país. O pedido de resgate em 2011 é disso um exemplo, está longe de ser o único.

 

Os cidadãos da União Europeia estão desiludidos, e quando há momentos de decisão, como foi o caso do referendo no Reino Unido, o discurso político não ajuda. Pelo contrário, mostra todos os dias que ninguém sabe muito bem qual é o passo seguinte, ninguém (nos) apresenta novos desenvolvimentos que mobilizem, apenas a ideia de que as alternativas são piores. Não é fácil, assim, destruir a força crescente dos movimentos nacionalistas à Esquerda e à Direita, como se vê por essa Europa fora, que se alimentam das crises, do desemprego, da pobreza.

 

A bicicleta europeia não pode continuar a andar como se nada fosse, mas convém que os governos dos países da União Europeia façam um mea culpa, assumam as suas responsabilidades, porque é claramente aí que estão as respostas. A transferência de responsabilidade para Bruxelas é popular, e dá votos internamente, só que não corresponde à verdade da história. E dificulta ainda mais o que vem aí a seguir.

 

A crise financeira e económica desde 2008 e o que se seguiu nos anos seguintes mostra que nem todos os países, nem todos os governos, nem todos os cidadãos estão preparados para as exigências de uma moeda única. Pelo contrário, há um desgaste social enorme. E também mostra que estamos a chegar ao limite das possibilidades dos governos que têm de convencer as respetivas populações a pagarem, com os seus impostos, o que é necessário para manter uma moeda única nos termos em que ela existe hoje.

 

Os resultados das eleições espanholas, sem serem definitivos é totalmente clarificadores, são um bom augúrio, porque os discursos fáceis anti-Europa não ganharam, perderam até votos. Por isso, no meio desta turbulência e de mares nunca dantes navegados, nem tudo está perdido.

 

 

As escolhas

 

Os ingleses decidiram sair da União Europeia, bem, nem todos, mas os suficientes para uma vitória do Brexit. Depois do colapso dos mercados na sexta-feira, e quando anda tudo à procura de respostas, desde logo no próprio Reino (ainda) Unido, o ministro das finanças inglês, defensor do ‘remain’, garantiu hoje que o país está preparado para viver fora do espaço comunitáriowww.bbc.com. Estará mesmo ou, como em outros países, a Democracia popular vai ser ultrapassada pela Democracia representativa?

 

Ronaldo não desiste, especialmente quando perde, e na seleção até perde muito. Messi desistiu porque perdeu. A dias de mais uma final, e quando sabemos que estamos longe de ser favoritos, esta diferença é uma lição para o país. Os resultados podem ser acompanhados aqui, em 24.sapo.pt.

 

Tenham uma boa semana e Portugal Allez

 

 

 

 

 

publicado às 11:32

Um dia a Europa foi assim

Por: Rute Sousa Vasco

 

Aconteceram várias coisas naquele ano. O FC Porto foi campeão da Europa de futebol pela primeira vez. O Nelson Piquet foi tricampeão na Fórmula 1. A 24 de Junho, exactamente no dia que hoje se assinala, nasceu Lionel Messi. Também foi o ano em que Carlos Drummond de Andrade nos deixou. E, segundo a ONU, esse foi também o ano internacional dos desabrigados ou sem-abrigo, como preferirem.

 

A British Airways foi privatizada e os U2 lançaram The Joshua Tree. O então presidente da Disney, Michael Eisner, e o que seria o futuro presidente de França, Jacques Chirac, assinaram o acordo para a construção da Disneyland em Paris. Em Inglaterra, a primeira-ministra chamava-se Margaret Thatcher e, a 31 de março desse ano, deu uma entrevista de 45 minutos à televisão soviética.

 

Foi o ano em que Portugal assinou com a China o acordo para a entrega de Macau. Os Simpsons apareceram pela primeira vez como pequena animação num programa de televisão chamado The Tracey Ullman Show.

 

E um miúdo com 18 anos, Mathias Rust, piloto na força áerea da República Federal da Alemanha conseguiu furar o espaço aéreo soviético e aterrar um avião na Praça Vermelha, em Moscovo. Foi preso. Uns dias depois, Ronald Reagan que era presidente dos Estados Unidos, numa visita a Berlim desafiou Mikhail Gorbatchev, que era presidente da União Soviética, a derrubar o muro de Berlim, que era um muro que dividia as duas Europas, ocidental e de leste, desde os anos 60.

 

O Acto Único Europeu foi aprovado pela Comunidade Europeia.

Existiam cinco mil milhões de pessoas no mundo (hoje somos sete mil milhões).

Os Pink Floyd, sem Roger Waters, lançaram o álbum “A momentary lapse of reason”.

 

Os meus amigos geeks talvez não saibam, mas foi também o ano em que Larry Wall criou a linguagem de programação Perl.

E no cinema, o Oscar desse ano foi para o filme Platoon – Os bravos do pelotão. Paul Newman ganhou o óscar de melhor actor com o filme The Color of Money e Michael Caine o de melhor actor secundário, tal como Dianne Wiest, em Ana e suas irmãs, de Woody Allen.

 

Este foi o mundo que me foi apresentado em 1987, quando estava a entrar na idade adulta. Tinha coisas erradas. A Thatcher mandava em Inglaterra, o Reagan nos Estados Unidos e havia um homenzinho chamado Ceausescu na Roménia onde aconteciam atrocidades que viríamos a descobrir poucos anos depois. Mas para quem estava a terminar o liceu, havia no ar algo que nos dizia que as coisas iam ficar melhores. Que os bons iam ganhar. Que tínhamos uma grande aventura pela frente.

 

Passaram-se quase 30 anos. E hoje sei que, de alguma forma, estamos a assistir a qualquer coisa de importante para a história dos próximos 30 anos.

 

De forma egoísta e conservadora, desejei que a resposta britânica fosse “ficar” em vez de “sair”. Para que o mundo que é apresentado aos meus filhos que agora chegam à idade adulta fosse mais parecido do que diferente. Para que soubéssemos com o que contávamos (mesmo que não gostássemos disso há muito tempo) e para contarmos com algum contraponto ao eixo-central europeu (Alemanha com França a reboque). Para ‘dar um tempo’ à relação.

 

A verdade é que há muito tempo que não se sente que os bons vão ganhar e que qualquer coisa boa está para acontecer. Vivemos de medo em medo na Europa. Os fantasmas que estávamos a querer expulsar em 1987 regressaram todos, ou quase todos. É uma Europa que não hesita em humilhar os mais fracos, em vergar-se aos mais fortes, sem que se descortine o espírito europeu no discurso sem alma dos tecnocratas de Bruxelas.

 

É também uma Europa que faz justiça à sabedoria popular que diz que quem com ferro mata, com ferro morre. Ainda se lembram do que muitos disseram aquando do referendo na Grécia, há dois anos? Querem democracia? Paguem. Porque, no fim do dia, o projecto europeu é uma grande caixa registadora.

Os gregos não podiam pagar -  os ingleses podem. Vão dizer o quê agora?

 

Boris Johnson e Nigel Farage, dois dos rostos da campanha pelo Brexit, estão longe de ser os Robins dos Bosques da Europa. Pelo contrário.

 

E o apoio "desinteressado" de Putin, Trump e Marine Le Pen ao Brexit mostram, claramente, que uma Europa sem Reino Unido não é uma melhor Europa.

 

Mas às vezes as coisas certas acontecem ou são precipitadas da maneira errada. Escrevo isto e tremo por todas as memórias da história comum europeia, por todas as vezes em que nada disto foi verdade. Depois houve esta ou aquela excepção em que isso pode ter acontecido. Escrevo isto e lembro-me de uma frase do romance "Pai Nosso" da Clara Ferreira Alves em que somos advertidos a prestar atenção a todas as coisas que acontecem pela primeira vez.

 

Ainda assim. 

O Brexit, em si mesmo, pode não ser uma coisa má – é sim garantidamente o início de algo que não sabemos o que vai ser.

É garantidamente o sinal desesperado, porque todos os outros já existiram, de que precisamos de uma nova Europa.

 

(P.S. – E, na política mais caseirinha, para quem duvidava que António Costa era um homem de sorte, as teimas estão tiradas.)

 

Tenham um bom fim de semana

 

 

Outras sugestões:

 

Este foi um texto escrito pelo Pedro Santos Guerreiro no Expresso, um dia antes do jogo Portugal – Hungria, um dia antes do microfonegate. Um dia antes de um jogo de sofrimento e, de alguma forma, redenção. Porque amanhã, mesmo com Brexit, o Euro2016 continua, aqui fica como recomendação de leitura porque vale a pena.

 

E agora, Espanha. No domingo, realizam-se as eleições que – provavelmente – irão indicar quem ficará à frente dos destinos do país. Num tempo que grande turbulência europeia, são ainda mais importantes. Aqui  é um bom sítio para seguir o que se vai passar no país ao lado.

 

 

 

 

 

publicado às 12:03

Grã Bretanha: o divórcio de um casamento que nunca existiu

Por: José Couto Nogueira

 

 

Os homens, que nunca sabem bem o que querem - ou querem várias coisas, conforme a temperatura - gostam de dizer que as mulheres estão sempre a mudar de ideias, quando de facto elas é que são muito bem focadas nos seus objectivos. Esta analogia do relacionamento homem-mulher foi usada incontáveis vezes durante os meses de especulação em torno do referendo inglês sobre a permanência na UE.

 

E com razão. Ela, a Grã Bretanha, que nunca quis realmente um compromisso, aceitou a contra gosto uma união de facto atamancada, e abalou sem razões credíveis, porque nestas coisas do coração a razão fica sempre à nora. Enquanto aceitou cohabitar, a madame ora seduziu ora se fez difícil para receber miminhos, e recusou presentes para ganhar outros maiores; enquanto ele, o Continente, andou de cabeça perdida a ameaçar de dia e a rojar-se aos pés à noite, mostrando sempre a sua fraqueza e cedendo constantemente, para acabar abandonado como um amante que perdeu o interesse.

 

Pois é verdade, o Reino Unido, apesar de historicamente seguir sempre os seus interesses económicos, desta vez deixou o orgulho, um sentimento tão perigoso como o despeito, tomar conta da decisão. Os ingleses acham-se únicos, não só na personalidade dominante, como também na capacidade de resolver sozinhos todos os problemas que o destino imperial levanta. Apesar do Império se ter esfumado a partir de 1939, continuam com a mentalidade imperial e recusam-se a reconhecer o pouco que pesam no mundo cada vez mais aglomerado em blocos. (Nós, portugueses, que fomos Império há muito mais tempo e ainda sentimos o amargo de boca de já não ser, podemos compreender este sentimento muito bem. Os espanhóis também.)

 

De onde vem essa proa toda? Além do Império onde o Sol nunca se punha, os ingleses (com escoceses e irlandeses pela trela), desenvolveram a sua democracia mais cedo e dum modo diferente do resto do Ocidente. Também a exercem através dum sistema que lhes é muito próprio. O poder popular em Inglaterra vem do Parlamento e desde 1689, sendo depois aperfeiçoado através de várias afinações; nos outros países europeus o começo da democracia tem uma data exacta, a Revolução Francesa de 1789, mas posteriormente houve avanços e recuos, retornos ao poder absoluto, ditaduras e outras experiências menos felizes. Os ingleses acham o seu sistema tão superior que nunca o quiseram exportar, precisamente para manter a vantagem competitiva. Quando governaram em Portugal, estando o D. João VI eternamente hesitante no Brasil, foi a chicote, não quiseram aqui um parlamento igual ao deles, nem pensar. (A democracia americana é do modelo francês, via Jefferson, e não dos ingleses, que eram o inimigo.)

 

Uma diferença notável está precisamente nos referendos; até agora o Reino Unido só teve três: o de 1975, em que 67% dos eleitores votaram a favor da entrada na Comunidade Europeia, outro em 2011, para mudar o mecanismo eleitoral (que não foi aprovado) e o de ontem, onde a separação foi decidida por uma curta margem.

 

Os estudos da opinião pública em relação a este referendo mostram numericamente como o conceito conservador do Império e do pretenso privilégio de ser inglês está enraizado na população: os rurais, os menos educados, mais pobres e mais velhos eram a favor da Grã Bretanha separada do Continente, enquanto, os urbanos, os mais habilitados, mais afluentes e mais novos – modernos e informados - eram a favor da permanência.

 

Mas agora a questão já não é mais se os ingleses ficam ou não ficam. Agora a questão são as consequências desta separação. Por um lado, o que vai acontecer às relações entre Grã Bretanha e a UE; por outro, o modo como os países do Continente vão reagir à atitude inglesa e à chantagem que estão legitimados a fazer, para obter os privilégios que os contestatários tinham.

 

Voltando à analogia do casamento, depois da senhora exigir um tratamento especial que deixava os amigos e vizinhos entre incrédulos e irritados, com certeza que não vai ganhar uma grande pensão de alimentos nem ficar com as simpatias no bairro. Baixando o nível da conversa para mostrar a realidade nua e crua, o que o amante abandonado está a pensar é “Olha-me esta! Fez o que quis, saía e entrava às horas que lhe dava jeito, cozinhava mal, e agora ainda quer ficar com o iate, a casa de praia e a tutela dos miúdos... Vais ver, vais! Acabaram-se os vestidos da Prada e o cartão de crédito !”

 

Quem manda na União Europeia é a Alemanha, e o querido Sr. Schäuble, que nós tão bem conhecemos, já tinha avisado, naquele tom anunciador de maus ventos, que as coisas não podem continuar como estavam. E entre os pequenotes da família, não faltam reguilas que também queriam sair de casa e que, inspirados e aviltados por estas intempéries da madame, estão predispostos ao motim. São os casos da Holanda e da Dinamarca, que já ameaçam com referendos afins. A Polónia, sempre mais conservadora que o Sínodo, também não quer certas interferências na legislação de cunho moral. A Hungria já caminha para o IV Reich e a Grécia está farta de esfregar escadas. Se a dona Albion sempre fez o que quis, porque hão-de ser eles a amochar? E a Turquia, senhora de físico abundante e modos de burgesa, é um downgrade que entra pela casa dentro, perto da finesse da ex-wife.

 

Depois, há a suspeitíssima alegria dos maus. Quem era a favor do Brexit? Putin, porque enfraquece a Europa; Trump, por razões que só ele sabe mas que, sendo dele, só podem ser más; e Marine le Pen, porque acha que sobe o estatuto da França em detrimento dos outros. Como salientou um comentador – não nos lembramos qual, de tantos que zoavam – só bastava as opiniões destes três para votar contra a saída do Reino Unido.

 

Dentro dos países que ficam, e que inevitavelmente sentem a sua quota parte da rejeição, embandeiram em arco todos os partidos de direita, reaccionários e nacionalistas – menos em Portugal, originalíssimo, onde é a esquerda radical que não gosta da Europa.

 

Também se pode esperar que esta crise seja sinónimo de oportunidade, como dizem que dizia o Lao Tsé, ou o Confúncio. Mas esses eram chineses, devem estar a preparar-se para inundar o Continente com imitações espúrias de Range Rover e Miss Selfridge. A Europa não tem um histórico de transformar apertos em auto-estradas.

 

Há muito quem diga que é o fim do projecto europeu. Não será tanto, mas que tem o sabor e o odor do princípio do fim, é inegável. Apesar da Grã Bretanha achar que são eles e nós, nós sem eles sentimo-nos mancos, não há como negar. Além disso, a dinâmica da integração europeia era, por natureza, inclusiva e sempre a andar para a frente. Nunca se previu, nem sequer se especulou, o que aconteceria com um recuo. Nem sequer sabemos como se irá processar este desenlace, quais as consequências para pessoas e bens.

 

Os analistas revezam-se a especular nos vários cenários possíveis. A partir de hoje, passa-se da especulação à realidade. Melhor não será, com certeza, como vamos começar já a sentir.

 

 

publicado às 11:04

Brexit? Três contra um em como ficam!

Por: Márcio Alves Candoso

 

Enquanto as sondagens se revelam inconclusivas na definição de um vencedor claro no referendo britânico sobre a continuidade na União Europeia, as casas de apostas britânicas não têm dúvidas. O ‘stay’ vai ganhar.

 

Comecemos pelo ‘rock’. Na célebre música dos anos 80, os ‘Clash’ perguntavam se deviam ficar ou deviam partir. E asseguravam que, se partissem, isso iria trazer problemas; mas se ficassem, eles apareceriam em dobro. Ao indeciso ‘should I stay or should I go’ respondem, quase sem querer, os ‘Jets’. ‘Para que te mostre o que tenho, preciso de saber de que é que necessitas’. E concluem: ‘So put ya money where ya mouth is’. A expressão idiomática inglesa, que serviu de tópico ao único grande êxito comercial desta banda australiana, quer dizer o seguinte: ‘arrisca o teu dinheiro naquilo em que acreditas; faz, em vez de só conversares’.

 

É assim que os ‘Jets’ resolvem a questão lançada na primeira estrofe do tema. Aí, interrogam-se sobre se estão no paraíso ou no inferno. E decidem que é com a crença e com o risco - que se demonstra pelo investimento financeiro, ou seja, a aposta naquilo em que se acredita – que se resolve o dilema.

 

A ideia parece estar a ser seguida pelos britânicos, no que diz respeito às apostas que têm vindo a efectuar nos últimos dias. No Reino Unido tudo serve para apostar, seja o desporto ou a política, passando pelo nome do primeiro filho de William e Kate, qual é a probabilidade de nos encontrarmos com um extra-terrestre ou adivinhar quando será o fim do mundo. Neste último caso, os ‘brokers’ estão indecisos sobre que chances hão-de dar aos apostadores. E isto por uma questão ética - quem quer que ganhasse não seria ressarcido da sua aposta…

 

Mas enquanto as sondagens se revelam inconclusivas na definição de um vencedor claro no referendo britânico sobre a continuidade na União Europeia, as casas de apostas não têm dúvidas. O ‘stay’ (fica) vai ganhar. Na ‘SkyBet’ pagava-se ontem 2,25 libras por cada uma se a aposta fosse ‘leave’ (saír), enquanto com a vitória do ‘stay’ o apostador só ganha quatro em cada 11 moedas que arrisque. Na ‘Paddy Power’, o ‘exiting’ paga seis para um, enquanto o ‘remain’ não vai além de um em cada dez. Entretanto, na sondagem ontem divulgada pelo ’Financial Times’, que faz uma média de todas as mais recentes publicadas, o ‘sim’ à saída ficava ligeiramente acima do ‘não’ – uns 45% contra 44%.

 

 

 

O ‘Daily Telegraph’ sustentava, esta manhã, que o referendo britânico à continuidade na UE – popularmente conhecido por ‘Brexit’ – era já o maior acontecimento das casas de apostas da história do Reino Unido, batendo o anterior recorde da eleição do Presidente dos EUA, em 2012. Só na ‘BetFair’ entraram mais de 60 milhões de libras (cerca de 78 milhões de euros), quando no caso da eleição de Obama esse montante ascendeu a 40 milhões (52 milhões de euros). A casa londrina, como a maior parte das suas concorrentes, está a apostar num 3 contra 1 a favor do ‘fica’, que se traduz em percentagens a rondar os 75/78% de apostas na manutenção da união com a Europa. ‘LadBroker’, ‘William Hall’ – todos os quadros visitados vão no mesmo sentido.

 

A credibilidade das casas de apostas foi reforçada nas eleições legislativas de 2014. Enquanto as sondagens davam uma luta renhida entre os partidos Conservador e Trabalhista, os jogadores não tiveram dúvidas em dar a maioria aos ‘Tories’, numa percentagem de 80% para 20%. E a verdade é que o partido liderado por David Cameron ganhou mesmo com maioria absoluta. Já no referendo para a independência da Escócia ocorreu uma situação idêntica, com os apostadores a acertarem na manutenção da união com a Inglaterra, perante sondagens inconclusivas.

 

Recentemente, assiste-se em Inglaterra e em outros países a estudos académicos que pretendem encontrar a base científica para a razão por que os apostadores são mais certeiros do que os eleitores sondados. Há várias teorias, desde a ascensão de um grupo cada vez mais alargado de pessoas que mentem deliberadamente quando interrogadas sobre a sua preferência política - que seria uma forma de afirmação de rebeldia inorgânica cada vez mais acentuada – até àqueles que, mais prosaicamente, afirmam o tal ditado: ‘put your money where your mouth is’. Como nas séries policiais, ‘follow the money’ parece ser a chave para encontrar o criminoso ou, neste caso, o eleitor verdadeiro. Outra hipótese reconhece que há deficiências técnicas nos métodos de sondagem, nomeadamente naquelas que insistem em apurar a tendência através de chamadas telefónicas para aparelhos fixos, cada vez mais em desuso.

 

Interessante também é verificar qual o montante médio de aposta daqueles que querem ficar com a União e daqueles que querem sair. O ‘stay’ vale 450 libras (585 euros) por cada boletim entregue, enquanto o ‘leave’ se fica pelas 75 (97,5). No entanto – e é aqui que pode estar o pauzinho na engrenagem - algumas casas anunciaram que o número de apostadores na saída era em maior número que os que preferem continuar ligados ao Continente. Na verdade, embora o ‘stay’ tenha mais apoiantes do lado conservador, a verdade é que a classe trabalhadora está em boa parte ligada ao ’leave’.

 

Os analistas têm dificuldades em compreender como é que os líderes de quatro dos cinco maiores partidos – o UKIP de Nigel Farage é a excepção - apoiam o ‘stay’ e, no entanto, as sondagens continuam a ser inconclusivas. Alguns, no entanto, encontram já a resposta.

 

Muitos britânicos acreditam que a imposição de regras por parte da União Europeia, a par da imigração em massa, estão a mudar a face do país e a estragar a velha democracia; isto para além de porem em causa empregos e redes sociais de apoio. Segundo estatísticas hoje divulgadas pela imprensa londrina, mas que o Governo queria guardar até depois do referendo, estima-se que, só no ano passado, a população da Grã-Bretanha tenha crescido em mais 513 mil pessoas, dos quais 335 mil imigrantes directos; cerca de 170 mil dos quais sem trabalho garantido.

 

Já para John Harris, colunista do ‘The Guardian’, a culpa é do neo-liberalismo, que tornou precários muitos dos novos empregos. Uma análise difícil de sustentar, se acreditarmos que nas gerações mais novas – onde a precariedade é mais visível – o voto pelo ’stay’ é mais consistente.

 

Talvez o divórcio entre governados e governantes, a não compreensão dos novos anseios das populações, entaladas entre padrões de vida mais apertados e uma abertura de mercados que lhes trouxe poucos benefícios directos - ao contrário da banca e do mercado financeiro em geral, que perderá bastante com a saída do Reino Unido – os leve a pensar que mais vale a pena sair. Para lá de todo o populismo e agressividade deste processo referendário - que levou até ao praticamente inédito assassinato de uma deputada, a trabalhista pelo ’stay’ Joe Cox -, mais consistente será pensar que quem ataca as nações dificilmente poderá pretender governar povos.

 

Mas o dinheiro poderá falar mais alto. Várias previsões apontam para perdas significativas do produto interno bruto (PIB) britânico com a saída da União Europeia. Já foi isso que impulsionou os escoceses a ficarem unidos à Inglaterra, e poderá ser suficiente para que tudo fique na mesma quando, lá para as quatro da madrugada, os resultados se tornarem mais conclusivos. É que, ao contrário da canção dos ’Clash’, o ‘stay’ não resolve nada; mas o ‘leave' piora tudo.

 

publicado às 17:02

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