Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Eu ainda sou do tempo em que o Bloco e o PCP…

Por: Paulo Ferreira

Começamos a ter saudades dos velhinhos PCP e Bloco de Esquerda, sempre atentos e vigilantes a tudo o que tivesse um aspecto mais duvidoso nos negócios, fossem eles públicos ou privados. Mas o poder está a “normalizá-los”.

 

 

A grande diferença entre o resgate em curso da Caixa Geral de Depósitos e o de um banco privado é que neste último caso os accionistas podem decidir não ir “a jogo”, recusar o aumento de capital e, com isso, atirar o banco para o colo - e o bolso - dos contribuintes.

 

 

Com a Caixa, banco público, fica tudo em família logo à partida. Os accionistas finais e os contribuintes são uma e a mesma entidade e, portanto, as duas opções são apenas uma: ou pagam ou pagam.

 

 

Dir-se-á que, no caso da Caixa, estamos pelo menos a capitalizar uma empresa que “é nossa”. Isso só em parte é verdade. No passado a Caixa foi mais “deles” do que “nossa”. Deles, entenda-se, empresários, políticos e amigos de políticos que fizeram do banco público o bordel financeiro que se sabe, de agência de emprego a balcão de financiamento a fundo perdido.

 

 

Vamos ter a esperança que a classe política queira, pelo menos para efeitos de registo histórico, perder um pouco de tempo a separar o trigo do joio desse passado para percebermos quem, como e em quanto beneficiou do banco público para interesses privados.

 

 

É precisamente nestes momentos que começamos a ter saudades dos velhinhos PCP e Bloco de Esquerda, sempre atentos e vigilantes a tudo o que tivesse um aspecto mais duvidoso nos negócios, fossem eles públicos ou privados. E, convenhamos, ocasiões não faltaram para deixar a extrema esquerda carregada de razão quando falava da “economia de casino” e das “negociatas do grande capital”. Os capitalistas estão a conseguir em poucos anos o que o marxismo não conseguiu em dois séculos: destruir o capitalismo.

 

 

Mas o poder produz estes milagres. Mudam-se as posições e tudo muda com elas. A brandura e a compreensão com que comunistas e bloquistas aceitam agora que vá mais dinheiro para a banca chega quase a ser enternecedora. Sim, é para a Caixa, banco do Estado. Mas não exigem sequer saber porque é que o banco do Estado precisa de quase 4.000 milhões de euros dos contribuintes? Não era suposto que o banco público, só pelo facto de o ser e com todas as virtudes daí decorrentes, dispensasse estas ajudas típicas de “gangsters financeiros”? Não vão querer apresentar facturas a Joe Berardo, Manuel Fino ou Armando Vara?

 

 

E o envolvimento de capitais privados no plano de capitalização? São mil milhões de euros em obrigações subordinadas. É dinheiro que virá dos grandes grupos financeiros mundiais - até pode vir do Goldman Sachs, quem sabe… -, de fundos de investimento “agiotas”, de fundos de pensões privados que transformam a Segurança Social “num negócio”. Vamos todos pagar juros a esta gente por eles colocarem capitais especulativos na Caixa e ajudarem a viabilizar o plano de recapitalização?

 

 

Aguarda-se também uma posição forte contra os 700 milhões de euros que estão reservados para pagar indemnizações na dispensa de trabalhadores. Sim, serão saídas negociadas que poderão chegar a 3000 funcionários, mas sempre nos habituámos a ter no Bloco de Esquerda e no PCP dois intransigentes defensores do emprego, da manutenção dos postos de trabalho existentes e da criação de mais. Ainda que patrões e empregados possam estar aparentemente de acordo sobre a rescisão dos contratos, restam sempre dúvidas sobre a pressão e a eventual coação que possam existir para reduzir a folha de salários.

 

 

E é assim que vamos assistindo à “normalização” do Bloco e do PCP.

 

 

 

Nos últimos anos, quando havia um crescimento económico de 1,1% o PCP dizia que isso era “apenas o abrandamento do ritmo da recessão”. Agora o PIB cresce um quarto desse valor e não se ouvem os comunistas. Quando a taxa de desemprego começou a cair dizia-se que “os números do desemprego reflectem cada vez menos a realidade do mercado de trabalho”. Imagina-se que agora, por mágica, os números que são calculados da mesma forma pelas mesmas entidades, já sejam verdadeiros.

 

 

E a forma como ambos os partidos reagiram ao caso das viagens de membros do governo a convite da Galp são, nesta matéria, o teste do algodão: o exercício do poder desfigura muita gente.

 

 

É “realpolitik”, dir-se-á. Alguns fins considerados mais importantes obrigam a muito contorcionismo nos meios. É possível. Mas não deixa de ser perturbador que padrões éticos e de separação de águas que pareciam tão exigentes e tão diferenciadores dos partidos do “arco do poder” possam cair, afinal, à primeira necessidade de circunstância.

 

 

Provavelmente, a grande diferença que nestas matérias nos habituámos a constatar entre o BE e o PCP, por um lado, e o PS, o PSD e o CDS, por outro, não está na ideologia nem na “massa” de que são feitos os homens e mulheres. Está apenas no poder que se tem ou não.

 

 

Outras leituras

 

 

Aqui ao lado, em Espanha, há quase um ano que não há um governo em plenitude de funções. E, olhando para a economia, até não está a correr mal de todo…

publicado às 11:16

O país de riscos precisa de cultura de prevenção

Por: Sena Santos

Em 18 de agosto de 1756 Rousseau enviou a Voltaire o que ficou conhecido como Carta sobre a Providência. Continha os argumentos de contestação de Rousseau às ideias que Voltaire tinha colocado no Poema sobre o Desastre de Lisboa. Na origem da polémica entre os dois filósofos, discussão que depois foi alargada, esteve o terramoto e o maremoto que meses antes, em 1 de novembro de 1755, tinha devastado a cidade de Lisboa.

 

 

Se Deus é omnipotente e bondoso, que diabo o levou a deixar que Lisboa fosse sujeita a uma chacina assim terrível, é, genericamente, a questão suscitada no poema de Voltaire, tendo em fundo a recusa do otimismo filosófico que marcava aquele tempo e que Leibniz tinha teorizado. Responde-lhe Rousseau, desmontando a questão da responsabilidade de Deus: não foi ele quem colocou as pessoas e as casas nos lugares de risco de Lisboa.  

 

 

Em suma: Rousseau subtrai ao domínio da metafísica e do divino a culpa pela tragédia no terramoto de Lisboa e transporta-a para o epicentro dos territórios da ética e da política. Na prática, Rousseau remete a questão para a consciência da responsabilidade da sociedade. A questão está nas escolhas públicas, nas decisões que são ou não são tomadas.

 

 

É assim que continuamos 260 anos depois. Os terramotos na espinha dorsal de Itália avivam-nos a lembrança de que Portugal é um mosaico de fragilidades e que também tem, designadamente na área de Lisboa, em porções do Algarve e em ilhas dos Açores, exposição ao risco sísmico que deve obrigar-nos a fazer o que pode ser feito para prevenir a desgraça.

 

 

O Japão, a Califórnia e até o Chile já nos têm mostrado que uma aldeia, uma vila ou uma cidade não têm de ficar pulverizadas sempre que a terra treme com mais força.

 

 

Em Itália, nestes dias, também ficou à vista como é valioso preparar os edifícios para o risco sísmico. Em Amatrice como em Pescara del Tronto, as ruínas das casas estão a deixar a descoberto a fragilidade das suas paredes. Já estão a ser detetadas múltiplas falhas estruturais naquelas casas que ruíram. Eram quase todas casas antigas da Itália que parece mesmo eterna e que tinham sido modificadas e ampliadas nos tempos modernos. Em vários casos a estrutura terá ficado demasiado pesada para as débeis paredes de suporte. Há dúvidas sobre os materiais usados nas ampliações, classificadas de beneficiações mas feitas sem estudo de sustentação.

 

 

Logo ao lado de Amatrice e de Pescara del Tronto, no mesmo território sísmico, está Norcia. Apesar de estar a apenas 17 quilómetros do epicentro, em Norcia o terramoto não levou nenhuma vida, enquanto nas terras vizinhas os mortos são quase 300. Não foi milagre, há um pormenor decisivo: é que em Norcia, após a evidência de alto risco com crises sísmicas em 1979 e em 1997, foi decidido dar prioridade ao esforço máximo pela segurança do território local. Passou por investir no estudo do solo onde estão os alicerces de cada casa, análise de cada construção e ter a coragem de assumir que o que tinha risco ia para reconstrução com modelos anti-sísmicos. Isso implicou a coragem política de desviar dinheiros que faltaram em outras necessidades. Mas, verifica-se, garantiu salvar vidas.

 

 

Renzo Piano, lenda da arquitetura contemporânea italiana, ocupa-se há 40 anos da arquitetura e engenharia dos edifícios. Já várias vezes denunciou que “somos herdeiros, indignos, do grande património que herdámos, indignos porque não o protegemos”. Insiste que “perante as catástrofes não podemos atirar culpas para o destino e a fatalidade, mas para nós que não ouvimos os alertas”. Piano defende há muito um audaz e consistente plano de reabilitação quer das degradadas periferias das cidades italianas quer das zonas de risco sísmico. Renzo Piano foi das primeiras pessoas a quem o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, falou quando começou a tratar as tarefas de reconstrução das zonas de desastre. A conversa, no último domingo, prolongou-se por quatro horas. Piano colocou uma exigência: não fazer remendos, tratar de raiz, como deve ser. Com diagnósticos exigentes como os da medicina, com, por exemplo, a termografia a permitir saber do estado da saúde das paredes. E intervenções de micro-cirurgia para as urgências imediatas em edifícios. Com a noção de que o dinheiro gasto, e será muito, é investimento que gera riqueza: salva vidas humanas e dá trabalho a tanta gente.

 

 

Falta-nos informação sobre o estado destas coisas em Portugal. Uma responsável pela área de sismos na Ordem dos Arquitetos alertou para motivos de preocupação, em particular com as obras de reabilitação que proliferam em cidades como Lisboa. O governo, através do ministro do Ambiente, respondeu que esta é uma matéria que está em estudo, designadamente o regulamento sobre resistência dos edifícios. É preciso.

 

 

Em Portugal há grandes melhorias, nos últimos 20 anos, no que tem a ver com segurança e proteção civil. Isso ficou evidenciado no começo deste mês no Festival Andanças, junto a Castelo de Vide. Estavam reunidos milhares de participantes e um incêndio propagou-se em cascata no parque automóvel, fazendo arder 422 carros. Os carros ficaram perdidos mas a segurança foi garantida com eficácia de modo a que nenhuma vida ficasse em risco.

 

 

Precisamos dessa determinação em todos os domínios. A prescrição anti-sísmica é devidamente regulamentada e verificada? Será que cada edifício pode ter, sem burocracias, um bilhete de identidade que nos diga sobre a sua segurança, incluindo a certificação anti-sísmica?

 

 

Seria bom termos respostas a questões como estas e muitas mais colocadas pelos peritos. O físico e sismólogo Charles Richter, introdutor da escala de medição dos sismos a quem dá o nome, deixou o alerta: “O que causa maior número de mortos não é o terramoto mas as construções feitas pelo homem”. Sabemos que a prevenção custa muito dinheiro, mas custa muito menos que a intervenção em fase amarga e trágica depois da catástrofe.

 

 

As catástrofes naturais são inevitáveis. Os seus efeitos, podem ser atenuados. As lições dos desastres, lastimavelmente, depois do recorrente reality show da dor com a vida e a morte em direto, caem depressa no esquecimento.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

 

António Guterres lidera, de modo constante, a corrida para a eleição do secretário-geral da ONU. Será que a chave decisiva está, como admite o The Guardian, na negociação do voto russo? Há sinais de que a reunião ministerial, em Moscovo, de Augusto Santos Silva com Lavrov deixou portas abertas. O voto de Angola também é crucial para a seleção pelos 15 membros do Conselho de Segurança.

 

 

Espanha está em ponto morto político à espera de um acordo para governo desde as eleições de 20 de dezembro do ano passado. Rajoy volta esta tarde a tentar passar no parlamento, mas a falta de seis votos anuncia novo fracasso aritmético. Será que os espanhóis vão voltar a eleições, as terceiras, já apontadas para o Natal? Será que as eleições regionais de 25 de setembro na Galiza e no País Basco vão ajudar a negociação de compromissos para o governo do Reino de Espanha?

 

 

Duas primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS, esta do Estadão e esta do Correio Braziliense. Fica uma pergunta: como é que os historiadores, num futuro próximo, vão definir o que fica hoje decidido no Senado de Brasília?

 

publicado às 08:29

Brasília em brasa

Por: José Couto Nogueira

 

 Vivem-se dias decisivos, na capital do Brasil. Por um lado, o impeachment da Presidente Dilma Rousseff chega à fase final, em que uma votação por maioria no Senado será suficiente para a afastar definitivamente. Por outro lado, recentes desenvolvimentos no Processo Lava Jato mostram que todo o sistema de combate à corrupção está em perigo de se tornar inoperante.

 

A sala do Senado, a câmara alta do Congresso, assemelha-se mais a uma arena onde os galos – ou as víboras, dependendo do ponto de vista – se digladiam sem quartel. Na verdade, poucos têm a consciência tranquila e a questão não é a justiça, ou o país, ou este o aquele partido, mas como sobreviver a este período com o menor estrago pessoal possível. Sobre mais de metade dos senadores existem suspeitas (47 em 80), baseadas em investigações e em denúncias, que os podem levar a julgamento; e só não foram ainda porque o Supremo Tribunal Federal (STF) tem de autorizar, uma vez que usufruem do chamado “foro privilegiado” – isenção de indiciamento judicial sem aval do STF.

 

Por exemplo, o Presidente do Senado, Renan Calheiros, contra quem pesam várias acusações baseadas em denúncias credíveis, teve um encontro com o seu amigo e Presidente interino, Michel Temer, o que levantou imediatamente comentários do senador petista Lindbergh Farias. Ao que o senador Magno Malta lembrou que ele, Lindbergh, que também está na comissão do impeachment, se encontrou várias vazes com a Presidente suspensa, Dilma. Diariamente, as trocas de acusações e até, os insultos, cruzam-se na mais alta câmara da nação. Um espectáculo que pouco faz pelo prestígio da coisa pública, seguido em directo por muitos brasileiros.

 

O julgamento final do impeachment começou na sessão do Senado de quinta feira, dia 25. Hoje, dia 29, Dilma Rouseff tem a oportunidade de fazer a sua derradeira defesa, em meia hora, podendo cada senador questioná-la por cinco minutos. Amanhã, dia 30, será a votação final mas, como todos podem falar dez minutos, presume-se que só terminará na madrugada de quarta.

 

Até ao dia 25 a contagem indicava que 48 senadores eram a favor do impeachment, mas esse número ainda não é definitivo, à medida que se vão negociando contrapartidas e desviando pressões, chantagens, etc. Contudo, a grande maioria dos analistas acha que Dilma será derrotada.

 

A outra questão candente, e essa até com resultados mais profundos no panorama político a longo prazo, tem a ver com a possibilidade das Procuradorias Federais nos Estados – nomeadamente a do Paraná, do Juiz Sérgio Moro, onde está a ser processada a operação Lava Jato – continuarem a ter os instrumentos necessários para julgar e condenar os delinquentes.

 

O instrumento mais eficaz do arsenal de que dispõem esses juízes é a famosa delação premiada, ou seja, a denúncia de outros delinquentes, compensada por uma redução de pena. De delação premiada em delação premiada, o Juiz que preside à Procuradoria de Curitiba, começou com a prisão dum simples cambista e já conseguiu penas pesadas para grandes figuras do PT e do Estado, em operações como a do “Mensalão”. Quanto à Lava Jato, foi iniciada em Março de 2014 para investigar desvios e lavagem de dinheiro envolvendo a empresa estatal Petrobras. A Polícia Federal avalia em 19 mil milhões de reais (5,5 mil milhões de euros) as perdas da petrolífera com corrupção, e esta admitiu 6,2 mil milhões no ano passado.

 

Segundo os investigadores, as grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam luvas a directores e gerentes da empresa e a outros agentes públicos. Os delatores dizem que as comissões chegavam a 3% dos contratos. Em 17 etapas até agora, a Lava Jato já cumpriu centenas de mandados judiciais, que incluem prisões preventivas, temporárias, busca e apreensão e “condução coercitiva” (detenção). Até Julho de 2015, o Ministério Público tinha denunciado 125 pessoas.

 

As investigações policiais e do MPF podem resultar ou não na abertura de acções na Justiça. O juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato na primeira instância do judiciário, tinha aceite, até o início de julho, denúncia contra 114 suspeitos. Ao todo, 24 ações penais e 5 ações civis públicas foram instauradas na Justiça Federal do Paraná.

 

Contudo, à medida que as investigações se alargam, surgem novos suspeitos e – o que é mais importante – suspeitos de outros partidos que não o PT. Esse alargamento da corrupção a toda a classe política e não apenas aos ligados ao Partido dos Trabalhadores corresponde à percepção que a população tem de que o roubo é generalizado, mas ao mesmo tempo retira aliados políticos ao Judiciário.

 

É neste quadro de enormes pressões que o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, desautorizou na semana passada uma delação premiada importantíssima, pois chegava a Lula e a políticos de várias cores. Tratava-se do empreiteiro Élio Pinheiro e, segundo corre, as suas denúncias ainda são mais contundentes do que as do empreiteiro Marcelo Odebrecht. Ora, segundo publicou a revista Veja, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli seria um dos denunciados. Tanto bastou para que Janot invalidasse a delação, o que levanta um precedente gravíssimo para o prosseguimento das investigações. Simultaneamente, o STF tem uma proposta do Ministério Publico, avalizada por mais de dois milhões de assinaturas populares, chamada “10 Medidas contra a corrupção”, que está parada há semanas e que se pensa que nunca será aprovada.

 

Por outro lado ainda, há uma espécie de contra-proposta – embora não tenha sido apresentada como tal – no Senado para limitar os poderes dos investigadores, procuradorias e Polícia Federal, que praticamente impediria as delações premiadas. Uma das alíneas dessa proposta consiste precisamente em acabar com a delação premiada. Outra, modificar a presente lei que dá trânsito em julgado caso haja prisão efectiva na segunda instância. Sem a ameaça da prisão efectiva, podendo esperar pelo recurso ao Supremo em casa, os condenados não terão razões para fazer denúncias.

 

Certamente que o resultado do impeachment de Dilma terá alguns reflexos nesta guerra travada dentro do judiciário, mas é impossível saber quais. A única certeza é que o sistema que tem permitido até agora aos juízes federais dos Estados – Sérgio Moro à cabeça – combater a corrupção, está em perigo. Muitos brasileiros acham que a pressão dos corruptos sairá vencedora. Muitos mais têm esperança de que não.

 

publicado às 14:47

Agir, e não apenas reagir

Por: Pedro Rolo Duarte

Sem preconceitos: é no mínimo estranho que o “mundo pule e avance” a ritmos e passadas tão diferenciadas conforme as áreas que queiramos observar. Dos anos 60 até ao começo do século XXI, e refiro-me apenas à Europa, vimos os homossexuais ganharem os direitos mais que legítimos ao casamento ou, nos casos mais avançados, à adopção; vimos a discriminação sexual, racial, religiosa, diminuir ou mesmo desaparecer; vimos a liberalização ou, pelo menos, a descriminalização do consumo de algumas substancias “perigosas”… Enfim, poderia elencar uma lista longa de mudanças sociais que, se pensarmos nos séculos passados, foram rápidas - e que foram acompanhadas pelas leis de cada país, de forma a harmonizar e equilibrar a vida dos cidadãos.

 

Se entrarmos no domínio científico, nomeadamente da medicina, temos uma revolução permanente. A investigação, a cura de algumas doenças, a evolução do pensamento sobre a dor, a eutanásia, o prolongamento ilimitado da vida, levaram a novas formas de actuar, e por consequência legislar, que acompanham, senão a par e passo, de muito perto, o conhecimento da prática legal.

 

No entanto, estas passadas civilizacionais não foram acompanhadas de outras, que mereciam uma igual reflexão e mudança. Os casos recentes da imunidade diplomática dos filhos do embaixador do Iraque (que terão agredido quase até à morte um jovem português), e a polémica recorrente sobre as penas - ou falta, ou leveza, das mesmas… - aplicadas aos incendiários, são apenas dois bons exemplos de como, na justiça, nem sempre conseguimos modernizar procedimentos e leis ao ritmo dos factos e da sua recorrência.

 

 

O episódio dos filhos do embaixador iraquiano é, em termos criminais, uma excepção, mas acordou o país para uma medida que vem dos anos 60 do século passado, à época enquadrada num ambiente peculiar, e que talvez hoje não faça grande sentido, pelo menos nas formas de que se reveste. Na verdade, os miúdos, em legítima defesa ou não, puseram um seu semelhante entre a vida e a morte, de forma bárbara, e não podem passar incólumes pelo que fizeram. Tenham 17 ou 20 anos, sejam filhos de quem forem. E o facto, ainda que pontual, merece que se repense o conceito de “imunidade”. Não apenas para diplomatas e seus familiares, mas também para deputados e outros detentores de cargos públicos. Num tempo marcado pela corrupção e pelo lóbi desenfreado, parece-me razoável repensar a ideia de “imunidade” e, no mínimo, limitar essa “mordomia” em toda a frente política…

 

Já no caso dos incendiários, invariavelmente tidos como inimputáveis, ou libertados poucos dias depois de detidos, a coisa é mais grave. O país é anualmente delapidado de uma das suas maiores riquezas - e as causas da tragédia passam tanto pelo louco fascinado por chamas como pelos negócios que a terra queimada proporciona. Nesse quadro, a legislação terá de ser mais dura, mais rigorosa, e mais eficaz. Os pirómanos deviam, mais do que estar presos, trabalhar para remediar o mal que fizeram; as investigações policiais deveriam ser mais eficazes e chegar ao cerne dos negócios que ganham com os incêndios; e o próprio crime associado ao fogo devia ser tipificado de forma a conseguir chegar a quem realmente põe Portugal, todos os anos, a arder.

 

No caso dos diplomatas como dos fogos, o problema é o mesmo: pela excepção ou pela sazonalidade, não tarda esquecemos o tema. Até à próxima tragédia. E é por isso que nuns casos o mundo “pula e avança”, e noutros fica em banho-maria…

 

 

Semana para ler, ouvir e ver…

 

Terminados os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, é tempo de balanços. A cidade não renasceu, mas ficou claramente diferente e, segundo o insuspeito The New York Times, melhor. Vale a pena ler a reportagem que sai fora do domínio das medalhas e das modalidades e entra pela cidade dentro…

 

“The Pigeon Tunnel: Stories from My Life” é o primeiro livro autobiográfico de John le Carré, e está a ser aguardado com enorme expectativa. Enquanto promete para 3 de Setembro a publicação de um excerto da obra, o britânico The Guardian convidou actores de primeira linha para lerem na edição online bocados dos clássicos livros do escritor. Eis aqui um dos exemplos: Tom Hiddleston lê um trecho de “The Night Manager” (“O Gerente da Noite”, na tradução portuguesa)… Que prazer ouvir!

 

E porque estamos a chegar ao fim das férias, prolongo-as um pouco mais sugerindo um olhar atento sobre a edição espanhola da excelente Condé Nast Traveller. Neste caso, escolhi uma infografia que dá que pensar: ela divide o mundo em função do número de pessoas que fala cada idioma. E se “a nossa pátria é a nossa língua”, então as fronteiras do globo andam muito longe da realidade…

publicado às 14:00

A matemática acaba onde começa a filosofia

Por: Helena Oliveira

 

Quem precisa de filósofos que pensem se à nossa volta se multiplicam “pensadores”e “opinantes”, que oferecem a sua sabedoria a um ritmo vertiginoso? Como serão os líderes e decisores do amanhã que estão a crescer com o telemóvel debaixo da almofada? Das grandes empresas, como a Google, às universidades, como Harvard, há notícias animadoras: a filosofia está de volta, bem como as humanidades em geral depois de anos em que tudo o que contava era tecnologia e matemática. Temos mesmo de voltar a aprender a pensar na era da técnica.

 

 

Na década de 80 do século passado, a poderosa AT&T sofria uma enorme crise de identidade que poderia ter dado cabo da sua reputação e levado o seu fundador, Alexander Graham Bell, o inventor do telégrafo falante, vulgo, telefone, a dar muitas voltas na tumba. Como seria de esperar, e perante as dúvidas sobre o seu futuro, a empresa voltar-se-ia para os consultores de gestão – espécime em franca expansão à época – na tentativa de obter a resposta que poderia ditar o seu futuro: entrar ou não entrar no mercado emergente dos telefones celulares.

 

Utilizando os habituais modelos preditivos matemáticos, os consultores chegariam à conclusão que os telefones móveis serviriam apenas um nicho de mercado e não um em que valesse a pena investir tempo e recursos. Assim, e tal como tinha acontecido com a Digital Equipment Corporation nos anos 60 que, erradamente, tinha também previsto que nunca existiria uma forte procura por computadores pessoais, a AT&T faria um enorme erro de cálculo no que respeita a uma das mais importantes inovações tecnológicas e comerciais dos nossos tempos.

 

Ao confiar exclusivamente na gloriosa exatidão das ciências matemáticas – indispensáveis, sem dúvida, para a construção de um telefone – a gigantesca empresa de telecomunicações esquecer-se-ia do mais fundamental: o que significaria realmente ter um telefone móvel e por que motivo alguém daria dinheiro para o adquirir.

 

Esta história é contada por Ryan Seltzer, ex-consultor de gestão, que deixou o negócio da consultoria num banco em Boston (antes trabalhara na Casa Branca) - para fundar uma empresa de filosofia – a Strategy of Mind – que ajuda agora muitas outras congéneres a responder e a resolver alguns dos mais complexos desafios de gestão, nomeadamente aqueles que começam com a mais básica das questões: o “como”.

 

Serve esta introdução para falar da importância da filosofia – ou, mais especificamente, da sua aparente inutilidade – nos tempos que correm, muito graças à crescente obsessão pelas ciências exatas – nomeadamente as que cabem no famoso acrónimo STEM – para ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas ou “aquilo que está a dar”, mas não só.

 

Sim, é certo que a relevância social das denominadas ciências humanas – sim, pasme-se, também são ciências – deambula perdida nas ruas da amargura, que o seu lugar institucional é mais do que desvalorizado e a sua função pedagógica crescentemente posta em causa. Sobre esta crise que paira sobre todas as áreas do saber que não prestam vassalagem à exatidão, escreve Manuel J. do Carmo Ferreira, Professor Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa (aposentado),na revista Gaudium Sciendi, da Universidade Católica Portuguesa: “irrelevância como saber, ineficácia como intervenção, desfasamento em relação aos avanços em outras áreas do conhecimento, são os traços maiores de uma prolongada crise de legitimação das Humanidades, a que se vem juntar a insegurança dos que as cultivam quanto à natureza e títulos de afirmação do seu campo disciplinar”.

 

Mas se a prosa sobre a crise das humanidades daria pano para muitas mangas, centremo-nos apenas na Filosofia, cujo lugar na sociedade contemporânea sofre de uma enorme ambiguidade: se, por um lado, existe um desinvestimento claro no seu ensino e aplicação – quem quer trocar um filho proficiente em tecnologia por um que se perca nessa coisa que não serve para nada chamada filosofia? – por outro, e em particular no mundo dos negócios, a filosofia parece estar a transformar-se num mantra repetido por muitos no sentido de que pode ajudar ao tão almejado sucesso, aquela palavrinha que todos usamos sem nunca pensarmos no seu verdadeiro significado.

 

Apesar de, na maioria das vezes, não aparecer em estado “puro”, mas antes transvestida em modas que acabam por ser efémeras, um tonzinho filosófico fica sempre bem, principalmente na poderosa indústria da liderança, que à falta de novas ideias, vai embarcando na onda do coaching, seguida pela vaga do mindfulness – que vai de vento em popa, a propósito – e de outras que tais, “perfeitas” para se lidar com a também chamada era da complexidade e nela triunfar, é claro.

 

Ora, se é complexo, é filosófico e mesmo que se atropelem definições, conceitos e práticas, se juntem alhos com bugalhos, retirados de receitas milenares chinesas, com pozinhos pós-modernos de inteligência emocional, temperados ainda - e porque as especiarias, seja qual for a sua origem, aguçam o espírito - com umas técnicas de relaxação indianas – a filosofia parece estar, em muitos casos, a ser usada como uma espécie de cozinha de fusão. E que vende, a propósito.

 

Mas e por outro lado, esta antiga senhora faz lembrar também aquelas tias velhas e chatas que somos obrigados a convidar para as grandes celebrações: tem um lugar à mesa, mas ninguém lhe dá a devida atenção ou, pior ainda, colocamo-la no lugar mais afastado do centro, para que não sejamos contagiados com o cheiro a bafio que dela emana.

 

Existe ainda uma terceira opção: a tia é velha e chata, mas também é rica e, enquanto herdeiros, podemos sempre descobrir um camafeu, feio, mas valioso, guardado num velho baú que, devidamente vestido com novas roupagens, poderá valer uma boa maquia num qualquer novo mercado zen, devidamente comercializado por um bom leadership coach e ser tema de workshops moderníssimos que tão bem ficam nos nossos currículos.

 

Tudo isto é mais plausível de acontecer do que manifestarmos a convicção de que o mundo não precisa apenas de tecnologias, algoritmos, folhas de excel, estatísticas e afins, mas também de pessoas que saibam pensar de forma crítica, que façam as perguntas certas, que questionem o que não parece passível de ser questionado e que arrisquem em novas teorias e formas de compreender esta época que, tal como todas as outras, não deixa de ter “food for thought”, muito antes pelo contrário.

 

Basta pensarmos em três ou quatro questões bem “modernas” e podemos logo começar pela que dá o mote a este texto. Têm as humanidades um lugar legítimo num mundo em que a ciência e a tecnologia parecem reinar? Será que a inteligência artificial irá comprometer a nossa moralidade? E se a neurociência vier a colocar em causa o nosso livre arbítrio? Deverão as evidências das alterações climáticas alterar a forma como vivemos? Habituar-nos-emos a viver em clima de medo face ao fundamentalismo crescente? Será possível que o extremismo de direita, em franco crescimento na Europa, possa dar origem a um novo holocausto? Deixaremos de raciocinar num mundo em que existem apps que dizem o que devemos comer, o que devemos vestir, quantas horas devemos dormir e por aí adiante?

 

Convencermo-nos desta aparente lógica da batata não é, de todo, fácil. Para que serve a epistemologia, a ética ou a filosofia moral, a filosofia política ou a ontologia, senão como palavrões que nem merece a pena googlar? E qual a importância de termos tempo para pensar e questionar, quando vivemos, em continuum, rodeados de tecnologias que nos satisfazem os desejos mais imediatos, nos dão o poder do conhecimento total, que nunca nos deixam sozinhos com os nossos botões e que não nos permitem ter tempos de ociosidade, a pré-condição que iria dar origem aos primeiros pensamentos filosóficos? E, mais ainda: se a filosofia, enquanto disciplina ou prática, deveria responder às inúmeras novas e complexas questões que se colocam à sociedade contemporânea, não foi o seu lugar usurpado pelos incontáveis “opinantes”, “comentadores” e “cronistas”, em conjunto com os milhares de milhões de pessoas que passam a vida a dissecar a nossa realidade e a emitir juízos sobre ela? Serve a filosofia para alguma coisa no século XXI?

 

Em muitas nações ditas desenvolvidas a ideia vigente é que não se deve apostar ou investir nesta que já foi considerada como “o saber mais abrangente”. Mas também existem alguns ventos contrários que pretendem desencalhar este velho “amor pelo saber”. E que estão a empurrar, ainda que lentamente, o universo académico, por um lado, e o da liderança, empresarial mas não só, por outro.

 

Para quê usar a cabeça se temos computadores?

 

 

Em 2014, e já no rescaldo da crise financeira de 2008, o presidente da Irlanda, Michael Higgins, lançou a “Iniciativa de Ética” com o objetivo de desenvolver, a nível nacional, um debate sobre os principais valores que deveriam reger a sociedade irlandesa na altura. A ideia, várias vezes repetida em discursos presidenciais, era a de que se o povo realmente prezava a democracia, deveria evoluir para uma cidadania de pensamento independente e ativo, sendo que recuperar a importância do ensino da filosofia nas escolas constituiria um dos mais preciosos meios para atingir esse fim. Para Higgins e numa interpretação mais ou menos livre das suas ideias, a filosofia seria o mais importante antídoto contra o pensamento de grupo, encarneirado, e o melhor ingrediente para colocar um fim no enjoativo consenso que há muito estava a limitar o livre pensamento.

 

Um ano antes, e logo ali ao lado, o Reino Unido iniciaria um estudo comparado, em 48 escolas do 1º ciclo, com a duração de um ano, no qual 1500 crianças entre os 6 e os 10 anos receberiam aulas de filosofia e outras 1500 não. O estudo, conduzido pela Education Endowment Foundation (EEF), uma organização sem fins lucrativos que visa estreitar o fosso entre os rendimentos familiares (baixos) e o aproveitamento escolar, pretendia testar a eficácia das premissas filosóficas através de um “ensaio clínico aleatório”, exatamente como os que são feitos com os fármacos com potencial de comercialização. Assim, 22 escolas funcionaram como grupo de controlo, enquanto as restantes 26 passaram a ter uma aula de filosofia por semana com a duração de quarenta minutos, no que é denominado como P4C (Philosophy for Children) No total, mais de 3 mil miúdos estiveram envolvidos na experiência e os resultados foram bem além do esperado.

 

O programa, da responsabilidade da Society for the Advancement of Philosofical Enquiry and Refletion (SAPERE), não tem como objetivo concentrar-se no estudo de textos de Platão ou Kant mas, através da leitura de histórias, poemas ou pequenas notícias da imprensa, ou ainda através da visualização de pequenos filmes, estimular as discussões sobre matérias “potencialmente”filosóficas. O objetivo é ajudar as crianças a raciocinar, a formular e a fazer questões, envolvê-las em debates construtivos e apoiá-las no desenvolvimento de argumentos.

 

O “material” pode ser tão díspar quanto a leitura de uma história sobre um miúdo que queria manter uma baleia de estimação na sua banheira ou simplesmente lançar-se uma pergunta, em particular no grupo dos mais velhos (entre os 8 e os 10 anos) que tenha o tal potencial filosófico: “por que motivo os tenistas homens recebem maiores patrocínios do que as suas congéneres femininas?”, “é legítimo privar alguém da sua liberdade?” ou “se pudesses, mandarias acabar com o livre pensamento?”, entre outras inúmeras possibilidades, não esquecendo as mais “óbvias” como “O que é ser humano?”, “se tivesses outro nome, serias uma pessoa diferente?”, “qual a diferença entre dizer uma mentira ou manter um segredo?”, “temos de estar tristes às vezes para podermos estar felizes noutras?”, entre uma panóplia alargada de outras tantas.

 

Os resultados? Não só bons, como inesperados. O mais surpreendente foi o facto de todos os miúdos que participaram nesta iniciação filosófica terem melhorado o seu aproveitamento escolar na matemática e na leitura, tendo em conta que o objetivo inicial nada tinha a ver com melhorias na literacia ou na aritmética. Em média, estes progressos corresponderam ao equivalente a dois meses extra de ensino e foram as crianças provenientes dos agregados mais pobres as que um passo maior deram na sua performance: as suas competências de leitura “avançaram” quatro meses, as de matemática três e as de escrita dois.

 

Também e no geral, todas as crianças participantes demonstraram uma maior confiança para falar em público, melhoraram as suas competências de saber escutar os outros (pares e professores), demonstraram uma paciência muito mais significativa face aos colegas e apresentaram uma melhoria generalizada na sua autoestima. Novas formas de pensamento e raciocínio lógico, em conjunto com uma melhoria significativa nas suas formas de expressão, ordenação de ideias e capacidade de argumentação foram também claramente atingidas.

 

Adicionalmente, estes efeitos benéficos da filosofia duraram dois anos, com o grupo intervencionado a continuar a ter melhores resultados muito tempo depois de as aulas terem terminado, daí que a avaliação final tenha sido apenas publicada em Junho de 2015. O programa foi entretanto adotado por inúmeras escolas em todo Reino Unido, sendo que existem atualmente mais de 3 mil professores formados em P4C e 60 mil crianças a usufruírem deste tipo de experiência. A metodologia utilizada pela SAPERE foi desenvolvida há 35 anos pelo professor norte-americano Matthew Lippman, em New Jersey, e é utilizada, em formatos similares, em mais de 60 países.

 

No fundo, e no que aos mais novos diz respeito e a não ser que haja um cataclismo que desligue a internet, filosofar será cada vez mais difícil. Os alertas multiplicam-se e não é preciso ser-se tecnofóbico para perceber que não é fácil pensar, imaginar ou questionar quando temos o mundo inteiro literalmente na mão e ao nosso dispor ininterruptamente. Quem imagina um adolescente a trocar likes, tweets, instagrams e similares por uma meia hora de silêncio ou de interiorização? Ou o ciberespaço por um espaço físico para pensar? Ou até um chat por uma conversa numa mesa de café, expressando, por exemplo, a tristeza que sente sem se limitar a utilizar uma mera “carinha” triste?

 

Salvo honrosas exceções, a verdade é que cada menos se troca a cuidadosa e morosa gestão do reflexo que se quer partilhar com o mundo, por momentos de autorreflexão. Sabido também é que esta inexistência de espaço e de tempo para se pensar não afeta, como sabemos, só as novas gerações. Em passo mais do que acelerado, tudo o que acontece no mundo é vertiginosamente comentado, opinado, e, é claro, partilhado por cerca de 3,5 mil milhões de pessoas – ou 40% da população mundial que tem acesso à internet. E, destes, um ou dois mil milhões consideram-se, certamente, como filósofos. Se opinam e comentam, logo existem. E assim, para que raio servem os filósofos?

 

Obsoleta e inútil, a quem interessa a filosofia?

 

 

Apesar de, em muitos casos, a filosofia parecer ter sido arrumada numa gaveta poucas vezes aberta, em 2010, o The New York Times resolveu tirá-la do armário académico onde vivia encafuada e partilhou-a com o resto do mundo: apesar de classificada como uma mera coluna de opinião, o espaço The Stone – definido como um fórum para filósofos contemporâneos e outros pensadores, tem vindo a atrair milhões de leitores interessados em questões tão contemporâneas como intemporais.

 

Tópicos universais como os mistérios da consciência ou da moralidade, são misturados com questões da atualidade tão díspares quanto a ética na utilização de drones, o controle de armas, as desigualdades de género, a crise dos refugiados, ou seja, com as questões sociais, culturais ou políticas do nosso tempo, naquilo que parece ser uma receita de sucesso que, afinal, até “dá likes” e partilhas.

 

E foi tão grande o êxito deste “espaço para pensadores” que a coluna semanal deu origem ao livro, publicado em janeiro deste ano, The Stone Reader: Modern Philosophy in 133 Arguments , o qual, de acordo com os seus editores, coloca uma significativa parte do total do discurso da filosofia moderna ao dispor dos leitores. O livro é dividido em quatro grandes secções – Filosofia, Ciência, Religião e Moralidade, e Sociedade e a sua introdução começa da seguinte forma: “O que é um filósofo? E, mais importante do que isso, quem é que realmente se importa com isso?”.

 

Num tom bem-humorado, Peter Capatano, editor do NYTimes e responsável pela edição dos ensaios publicados na The Stone, explica que a primeira pergunta - o que é um filósofo? – foi, exatamente, o tema do ensaio de lançamento da dita coluna em 2010. E qual não foi o seu espanto, e dos ensaístas que para ela iriam contribuir na altura, quando se aperceberam que o artigo tinha sido o mais lido de todos na edição online do jornal nesse dia.

 

Nesta mesma introdução, Capatano não se esquece de sublinhar a ideia de que a filosofia é considerada como supérflua e obsoleta por um conjunto substancial de pessoas, numa espécie de movimento “anti-intelectuais” que vigora nos quatro cantos do mundo, e muito em particular nos Estados Unidos. Mas rejeita liminarmente a ideia – dando como exemplo o sucesso da coluna em causa – de que a filosofia seja inútil, não tendo medo de responder à segunda questão formulada: “há muita gente que se importa, sem dúvida”, escreve. E é esta “muita gente” que poderá ajudar a ressuscitar o valor que a disciplina teve ao longo de grande parte da história da Humanidade.

 

De Harvard aos “cursos que obrigam a pensar” para CEOs

 

 

Essa ressurreição está também a ganhar raízes nos templos do saber da atualidade. Vejamos o exemplo da mais americana das universidades, onde os alunos chegam com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em racionalidades inabaláveis, mas onde uma cadeira denominada Teoria Política e Ética Chinesa Clássica reúne o maior número de alunos inscritos, só suplantada pelas de “Princípios de Economia” e “Introdução às Ciências Computacionais” (aqui tinha mesmo de ser, mas mesmo assim não é nada mau ocupar o 3ª lugar do pódio).

 

Sim, estamos a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi ministrada), procuram resolutamente a sua aula. A disciplina – que tem como base a relevância dos textos clássicos chineses para a atualidade – deu origem ao livro The Path: What Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life, lançado no passado mês de Abril e já comprado por editoras em 25 países, incluindo a própria China, onde vai ser publicado ainda este ano.

 

O segredo de Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido como” O Livro do Caminho e da Virtude” (uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões similares – mas “modernas” – que seguramente devem ter dado cabo da cabeça dos eruditos chineses há vários séculos.

 

Mas não só. De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas próprias vidas, os ensinamentos apreendidos, sendo que os que predominam são, na verdade, ideias simples que não perdem, de todo, atualidade. De acordo com as palavras do próprio Puett, e numa entrevista que deu, em 2013, à revista The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos – quando começou a dar aulas – os alunos da atualidade sentem-se “esmagados” por um caminho específico que têm de percorrer no sentido de objetivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que “estão a dar”).

 

O que Puett observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso escolar, e até as suas atividades extracurriculares, de acordo com planos e objetivos de carreira predefinidos e “demasiado” programados. Assim, são muitos os estudantes que juram que ao perceberem que o coração e a mente, maioritariamente separados na visão do mundo ocidental, estão profundamente relacionados entre si e que não podem ser encarados isoladamente – uma das principais “lições” que Puett tenta transmitir nas suas aulas – contribuiu mesmo para mudar as suas vidas, existindo até alguns que – sim, parece loucura, mas é verdade – que trocaram as tais ciências exatas e o que está a dar por cursos em áreas das obsoletas humanidades. Será está a prova da famosa citação que é atribuída a Confúcio e que reza “escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”?

 

Harvard não é a única universidade que está a descobrir as delícias da filosofia aplicada a outras áreas do conhecimento. Outras famosas universidades estão a ir pelo mesmo caminho e o mesmo acontece, em particular, com as escolas de negócios. E é aqui que entra, mais uma vez, o fator negócio, mas um que pelo menos ajuda a desenvolver neurónios e a transformar a gestão em mais do que uma obsessão pelos resultados que figuram nos seus relatórios trimestrais. Retomando a história que deu início a este texto, o fundador da empresa de filosofia Strategy of Mind, Ryan Seltzer, assegura que são cada vez mais as empresas que estão a (re)conhecer a prosperidade de outras suas congéneres que estão a apostar em doses similares de “matemática e filosofia”. Claro que o ex-consultor poderia estar apenas a vender os seus serviços, mas abundam os exemplos de várias organizações que comprovam a sua teoria (e o seu modelo de negócio).

 

Damon Horowitz é um dos casos mais clássicos quando se fala destas estranhas decisões em que executivos bem-sucedidos e, muitas vezes, provenientes exatamente de empresas de tecnologia, decidem experimentar os caminhos incertos da filosofia. E a verdade é que o reconhecido empreendedor resolveu abandonar o seu principescamente pago lugar no mundo tecnológico para tirar um doutoramento em filosofia (a sua formação académica anterior incluía uma um mestrado tirado no MIT Media Lab e estudos em ciências da computação em Stanford, onde agora dá aulas de… filosofia).

 

O atual diretor de engenharia e filósofo in-house (este cargo não é inventado, existe mesmo) da Google proferiu uma interessante talk em Stanford, em 2011, intitulada “Por que motivo deve trocar o seu emprego na área da tecnologia e matricular-se num doutoramento em Humanidades”, a qual explora o valor das humanidades – no geral, e da filosofia no particular – num mundo que está continuamente a ser inundado por novas tecnologias. O seu caso está longe de ser único e, em particular, nas grandes empresas em que a tecnologia e a inovação constituem os principais ativos.

 

O que pode ser facilmente explicado por Fareed Zakaria, um colunista do The Washington Post e autor de In Defense of a Liberal Education. Como escreve, “uma educação alargada ajuda a estimular o pensamento crítico e a criatividade e a exposição a uma variabilidade de áreas produz não só boas sinergias, como uma útil ‘fertilização cruzada’”. Afirmando que tanto a ciência como a tecnologia constituem componentes cruciais no mundo empresarial, o jornalista confere, contudo, exatamente o mesmo valor ao Inglês e à Filosofia, e recorda que num dos inesquecíveis discursos de Steve Jobs, o fundador da empresa da maçã explicava que “está no ADN da Apple o facto de a tecnologia nunca ser suficiente – mas, ao invés, ser o seu casamento com as artes liberais e com as humanidades que produz os resultados que fazem cantar os nossos corações”.

 

No mesmo livro, Zakaria defende ainda que a inovação não é, de todo, uma mera questão técnica, “mas antes a forma de compreender como funcionam as pessoas e a sociedade, o que precisam e o que desejam”, algo que, na verdade, esteve também sempre presente na Apple, cujo enorme sucesso em muito se deveu, entre várias outras coisas, à brilhante antecipação dos desejos dos seus clientes.

 

 

Mark Zuckerberg é outro exemplo de como a tecnologia precisa, indiscutivelmente, do saber produzido pelas ciências não exatas. O fundador do Facebook foi, também, um estudante clássico das artes liberais e simultaneamente um apaixonado pelos computadores. A antiguidade grega sempre foi um dos seus principais interesses e a psicologia a área que escolheu para se licenciar. E não é preciso ser-se muito inteligentes para perceber o quão ligadas estão as inovações do Facebook ao campo da psicologia. E é o próprio Zuckerberg que afirma que o Facebook “tem tanto de tecnologia como tem de psicologia e sociologia”.

 

Zakaria cita também um outro estudo sobre o futuro do trabalho, desenvolvido por dois académicos de Oxford e que concluiu que para os trabalhadores evitarem a “computorização” dos seus empregos, terão de adquirir, cada vez mais, competências sociais e criativas”. Para o autor, o que este exemplo significa verdadeiramente é que, e sem retirar valor às ciências exatas e ao inevitável trabalho com as máquinas (que é, sem dúvida, o futuro do trabalho), as mais valiosas competências serão aquelas “unicamente humanas” ou as que os computadores nunca conseguirão imitar (pelo menos assim se espera).

 

Mas e de volta à filosofia e ao valor do “tempo para pensar”, um artigo publicado na revista The Economist ajuda a melhorar a perspetiva no que a esta necessidade no mundo dos negócios diz respeito. Intitulado Philosopher kings: Business leaders would benefit from studying great writers, defende a criação de “retiros para pensar” em substituição das inúmeras modas a que os CEOs vão aderindo, sempre com o objetivo de melhorar as suas capacidades de gestão e liderança (desde as “provas” em ambientes hostis, aos passeios em plena natureza e já contando com os cursos de mindfulness, que o artigo refere como “bons para relaxar, mas maus porque esvaziam a mente”).

 

No mesmo artigo fica expressa a ideia de que é surpreendente o número de CEOs bem-sucedidos que estudaram filosofia, de que é exemplo Reid Hoffman, um dos fundadores do LinkedIn, que optou também por tirar uma pós-graduação em filosofia em Oxford ou o já falado Horowitz, mas também de como Bill Gates, enquanto geria a Microsoft, tinha por hábito isolar-se uma semana no campo para “meditar sobre um assunto importante” ou de como Jack Welch, enquanto CEO da General Electric, reservava religiosamente uma hora do seu dia para pensar, sem recurso a qualquer tipo de distração.

 

Adicionalmente, Peter Thiel, um reconhecido investidor de Silicon Valley apostou recentemente também em conferências para as quais são convidados pensadores de renome numa tentativa de “melhorar o mundo” e David Brendel, filósofo e psiquiatra, é um dos “gurus” mais procurados por estes executivos de topo para prestar aconselhamento sobre liderança, para além de escrever assiduamente na Harvard Business Review sobre como a filosofia pode ajudar a se ser não só um melhor gestor, como um melhor líder. Curioso – ou não – é também o facto de Brendel ser igualmente um dos co-fundadores da Strategy of Mind acima mencionada.

 

Como afirma também o filósofo in-house da Google, “os líderes do pensamento da nossa indústria não são aqueles que subiram, passo a passo, mas de forma monótona, a escada da carreira, mas os que correram riscos e desenvolverem perspetivas únicas”.

 

Ou seja, aqueles que se deram ao trabalho de pensar, questionar e criar.

 

 

 

publicado às 13:38

Dispam-se quanto lhes apetecer, vistam-se como quiserem - sem tapar a cara

Por: Sena Santos

Quando, no final dos anos 40 do século XX, a campeã de natação e estrela do cinema de Hollywood Esther Williams se deixou fotografar, à beira de uma piscina, com o corpo apenas coberto pelas duas peças de tecido de um biquíni levantou-se grande alvoroço, excitação entusiasmada de uns, reprovadora de outros.

 

Quase o mesmo rebuliço, no começo dos anos 60, quando a estilista Mary Quant pôs à mostra as pernas das mulheres que então ousaram a liberdade e a audácia de usar mini-saia. Neste verão de 2016, em países muçulmanos do Mediterrâneo sul, tal como nos anos anteriores, são muitas as mulheres que ousam ignorar o olhar agressivo e intimidatório dos que pretendem vexá-las por tomarem banhos na praia vestidas ou despidas, com um fato de banho, como lhes apetece.

 

Pouco se fala da coragem destas mulheres muçulmanas que desafiam o sistema opressivo instalado nos seus países. Mas em todo este verão tem-se discutido muito o uso do burquíni, uma versão menos tapada da burqa, concebida para que as mulheres muçulmanas vão à praia. Vê-se qualquer coisa mais do corpo: os pés, as mãos e parte do rosto. Chamar-se ao burquíni um fato de banho não encaixa bem, estamos perante uma espécie de fato-armadura que esconde quem o usa – em contraste com a nudez desarmada que pode estar esparramada logo ao lado.

 

O nome burquíni pretende obviamente fazer alusão ao biquíni e percebe-se de imediato que é uma resposta, da parte de quem cultiva uma mais fechada identidade muçulmana, aquele duas peças que a mulher ocidental conquistou com alguma luta e que até já deu lugar ao monoquíni, quando não, onde pode ser, para quem quer, a nudez total, tudo para o mais total aproveitamento dos benefícios do sol.

 

A discussão sobre o burquíni, à primeira vista, parece uma estéril polémica de verão ou de como é infinita a capacidade humana para misturar problemas reais com o que é fútil. De facto, o debate não fica ligeiro, porque estão em causa liberdades fundamentais. A discussão está mergulhada numa maré europeia carregada de tensões, emoções, traumas, preconceitos, medos e distorções. Até de ódios à flor da pele.

 

Há um ponto de partida que deve prevalecer o princípio fundamental de que cada pessoa é dona exclusiva do seu corpo e da sua vida. Não pode ser um Estado ou uma religião a ditar sobre a vontade de cada pessoa. Cumpre ao Estado, isso sim, proteger a liberdade individual de escolha. Cada pessoa, mulher ou homem, deve poder vestir-se – e até quase despir-se - como entende, em respeito pela norma básica de convivência humana e de respeito pelos outros. Alguém proíbe uma freira de ir, vestida com o seu hábito, para uma praia? Porquê então proibir a mulher que usa burquíni de entrar numa praia, como sucede em lugares do sul de França? A interdição é uma inútil intolerância, uma posição rígida que dificulta o diálogo e a integração. A proibição tende a produzir o efeito contrário: é oferecer argumentos à campanha dos fundamentalistas e oferecer-lhes novos simpatizantes.

 

Esta proibição deveria estar proibida num país (num continente) que proclama a liberdade de culto como pilar da sua cultura.

 

Nem sequer dá para julgar o quão irónico é que em França, onde há 60 anos Roger Vadim expôs o corpo despido de Brigitte Bardot e revelou o seu poder sedutor nos 15 segundos de abertura do filme “E deus criou a mulher”, agora possa haver interdições e multas para uma mulher que vai à praia demasiado vestida.

 

Quem quiser tapar-se, que se tape – é certo que quem nas últimas décadas foi ousando um fato de banho com cobertura cada vez mais mínima achará um desperdício que se esconda o corpo, e que este fique subtraído aos prazeres do sol. É natural que questionemos a satisfação que pode dar estar na praia ou na piscina com grande parte do corpo coberto pelo burquini. Mas é a opção de cada pessoa.

 

Evidentemente, quem escolhe o burquíni está a assumir uma afirmação: “esta é a minha identidade, esta é a minha religião”. Escolha livre, liberdade de indumentária. A liberdade individual é sempre sagrada e o Estado existe para defender os direitos das pessoas, não para os limitar.

 

Diferente é a questão do uso da burqa, que tapa o rosto. É insuportável vivermos numa sociedade onde há gente que tapa a cara em lugares públicos. Do mesmo modo que é inaceitável que alguém possa caminhar pela rua, sentar-se num café ou esplanada, entrar numa escola ou mercado com um capacete a cobrir-lhe a cabeça, também não é admissível que alguma mulher o faça com uma burqa – a burqa é uma limitação que o fundamentalismo, discriminatoriamente, impõe apenas às mulheres. O cara a cara é uma das bases na nossa convivência.

 

É facto que a sucessão de ataques terroristas instalou na Europa um modo desconfiado, atemorizado, de olhar para o que é diferente. Estaremos a distorcer tudo se não soubermos distinguir entre islão, fundamentalismo e terrorismo. Sem perder a noção da cultura de tolerância que é suposto marcar a modernidade ocidental. Já agora: distinguindo também entre a submissão da mulher – que nos habituámos a lastimar no mundo muçulmano, ainda que não seja exclusivo do grupo - e costumes atávicos, mas legítimos.

 

Não esqueçamos que até ao século XVIII nadar ou tomar banho de mar eram práticas reprovadas no ocidente cristão. Constata-se que há sociedades do mundo muçulmano onde subsistem práticas parecidas. Mas pretendermos catalogar as mulheres muçulmanas em função dos centímetros de roupa que usam parece abuso de arrogância. Impor-lhes um tamanho de tecido a cobrir-lhes o corpo é uma estúpida cruzada contra a liberdade individual.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

Feyisa Lilesa, o atleta etíope que nos alertou para mais uma das muitas tragédias em países do Corno de África.

 

A imagem de 12 dias no mar com uma operação de salvamento ao largo da costa da Líbia.

 

Os melhores filmes do que vai de século numa escolha para a BBC de 177 críticos de 36 países:  o topo do pódio para o inquietante Mulholland Drive, de David Lynch.

 

Primeiras páginas escolhidas hoje: esta, esta e esta. A Europa, como um grande navio, vai finalmente mover-se em boa rota? Mas era preciso que a reunião de Renzi, Merkel e Hollande fosse a bordo de um porta-aviões militar, mesmo que frente a uma ilha simbólica?

publicado às 08:17

O dragão das Filipinas

Por: José Couto Nogueira

 

Eleito numa plataforma de direita em Maio, o novo Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, está a cumprir o que prometeu na campanha: matar os suspeitos de tráfico de droga, sem julgamento.

 

A última vez que se falou das Filipinas à escala multicontinental foi quando se ficou a conhecer a colecção de sapatos de Imelda, a mulher do presidente/ditador Ferdinand Marcos. Em 1986, o marido foi obrigado a fugir do país por causa de uma revolução, ela deixou para trás mais de mil e duzentos pares. No país, um arquipélago de 7.641 ilhas com 11 grupos étnicos e 19 idiomas reconhecidos, mais de 99,5 por cento da população sequer tinha um par de sapatos.

 

Os sapatos de Imelda tornaram-se um símbolo da ditadura corrupta, até hoje lembrado por gerações que não fazem ideia quem é Imelda, ou onde ficam as Filipinas, habitadas por cem milhões de almas cristãs, protestantes, muçulmanas, animistas e comunistas.

 

Todavia, as Filipinas têm uma longa História, repleta de peripécias, injustiças, massacres, guerras civis, limpezas étnicas e tudo o mais que uma longa História pode proporcionar. Situada no mar da China, a Sul desta e a Norte da Indonésia, foi descoberta por Fernão de Magalhães (o nome vem de Filipe II) e ficou sob a coroa de Espanha até os americanos a conquistarem, na passagem do século XIX para o XX. Salvo uma curta e sangrenta ocupação japonesa, na Segunda Guerra Mundial, tem estado sempre sob a influência americana, mascarada de república presidencialista, democrática e independente.

 

 

Depois da deposição de Marcos, cuja brutalidade já não estava a dar resultados, o país conheceu vários presidentes, a começar por Coraçon Aquino, viúva de um opositor incómodo que Marcos mandara matar a tiro na placa do aeroporto de Manila. O discurso oficial é mais ou menos democrático, até onde é possível no meio da confusão de credos, idiomas e etnias, distribuídos por 99,9 por cento de muito pobres e 0,01 por cento de fabulosamente ricos. Num documentário recente sobre Manila podia-se ver um luxuoso centro comercial, ao nível de Milão ou Miami, ao lado de um cemitério onde vivem milhares de pessoas. Sim, as pessoas vivem dentro dos jazigos, dentro de anilhas de esgoto à espera de serem colocadas, na rua, na selva e na água. Às guerrilhas comunistas que há décadas massacram populações, também massacradas pelo exército, juntaram-se nos últimos anos as guerrilhas fundamentalistas muçulmanas, que já estão a dar uma boa contribuição para o terror anárquico geral.

 

 

Compreende-se que não é fácil governar um país tão complexo, e talvez por isso os filipinos têm escolhido personagens que parecem tirados de um mau filme de aventuras – daqueles em que um grupo de mercenários comandados por Chuck Noris ataca o palácio presidencial. Aliás, a lista de presidentes inclui um actor secundário retirado de Hollywood (Joseph Estrada) e vários filhos e filhas das eternas famílias dominantes, muito ao género de “Rich Kids of Beverly Hills”. O facto é que tem havido eleições municipais, estatais e nacionais, nas datas previstas, produzindo uma sucessão de presidentes eleitos por um único mandato de seis anos, com poderes muito abrangentes.

 

 

2016 foi ano de presidenciais, e quem ganhou por larga margem foi o Presidente da Câmara de Davao, Rodrigo Duterte, de cognome “O Castigador”. O adjectivo vem do modo como Duterte acha que a justiça deve ser servida e também da sua noção do que é justo ou decente. Por exemplo, em 1989 houve uma revolta de reclusos, que fizeram como reféns um grupo de religiosos protestantes que tinham ido à prisão dar-lhes apoio moral. Os bandidos, maus como as cobras, violaram todas as mulheres do grupo, entre outras barbaridades. Duterte mandou as forças policiais investir e assim morreram os 12 revoltosos e cinco reféns. Até aí podia dizer-se que foi uma negociação mal sucedida. Mas, ao percorrer a prisão depois do incidente, Duterte ficou gravado em câmara – e foi televisionado para todo o pais – ao lado do cadáver de uma das missionárias, Jacqueline Hamill, a dizer o seguinte: “Filha da mãe, que desperdício! Fico a pensar que eles se puseram em fila para a violar. Isso chateia-me, por um lado; mas ela era tão bonita, parecia uma actriz de cinema americano... acho que o Presidente da Câmara devia ter sido o primeiro.”

 

Rodrigo Duterte é assim, diz o que pensa, e o que pensa está muito além dos códigos civilizados.

 

Para a campanha presidencial, Duterte apresentou o seu currículo de lei e ordem em Davao, uma cidade infestada de crime e tráfico de drogas que ele conseguiu conter com políticas brutais. As associações de Direitos Humanos, tanto filipinas como internacionais, protestaram várias vezes, até Duterte encerrar o assunto: “Que se lixem os Direitos Humanos. Não estou nem um pouco preocupado com essas coisas.” Pelos vistos, 39 por cento dos filipinos concordam com esta visão. É preciso levar em conta que, sendo o país muito pobre, com fome, deportações forçadas e outras violências, a droga e o crime fazem parte do dia-a-dia. Drogas leves, pesadas e pesadíssimas são vendidas nas ruas por viciados que precisam de sustentar o vício, fornecidos por uma cadeia alimentar que possivelmente termina nos palácios dos administradores.

 

Há tribunais e leis, inclusive pena de morte. Mas o que Duterte pretende não é levar os criminosos a tribunal. Isso custa caro e leva tempo. Duterte disse aos seus cidadãos que, quando encontrassem um traficante, estavam à vontade para chamar a polícia, ou que resolvessem o assunto logo ali, se tivessem uma arma. "Não digo que o matem, mas a ordem é morto ou vivo." 

 

De Maio para cá, o resultado tem sido fulminante: mais de 800 assassinatos sumários de presumíveis traficantes, feitos pela polícia e por grupos de vigilantes. E dezenas de milhares de outros supostos traficantes e consumidores entregaram-se voluntariamente nas esquadras, achando talvez que uma hipótese de ir a julgamento (se a polícia estivesse para aí virada) sempre era melhor que que ser sufocado com fita-cola enrolada à volta da cabeça, o método preferido pelos justiceiros.

 

Levanta-se imediatamente a questão de condenar à morte pessoas antes de serem julgadas, com o cortejo de injustiças, enganos e vinganças que este sistema proporciona. Mas Duterte, embora reconheça que possa haver enganos, tem a certeza de que vale a pena. Afirma que já matou três passadores com as suas próprias mãos e que o fará sempre que tiver oportunidade; e ainda que quem o fizer não será levado a tribunal. Ou seja, qualquer pessoa pode assassinar outra e depois dizer que era traficante.

 

Mas ainda o calvário dos supostos traficantes começou, já Duterte olha para um horizonte mais vasto. Há dias afirmou que a morte de alguns jornalistas pode justificar-se pela forma como andam a investigar os assassinatos e, pior ainda, casos concretos da corrupção generalizada que sempre navegaram tranquilamente pelas águas filipinas.

 

Em seis anos, o país vai ficar limpinho, a brilhar, sem a mancha das drogas ou das nódoas da corrupção. A comunidade internacional tem mais com que se preocupar do que com as receitas de limpeza de Rodrigo Duterte.

 

publicado às 09:37

Sangue novo em corpos velhos. Uma espécie de Drácula ou a fonte da juventude?

Por: Pedro Fonseca

 

Pode-se ser mais saudável no envelhecimento ao introduzir sangue jovem nas veias? O ressurgimento de um processo chamado de parabiose está a captar as atenções, assim como várias críticas. Mas a evolução demográfica poderá ditar um maior interesse - e investimentos - nesta técnica.

 

 

Porque estão as revistas de economia interessadas na transfusão de sangue? Apesar do potencial económico deste novo negócio, a razão deve-se às declarações de Peter Thiel sobre uma técnica que tem mais de 150 anos. O bilionário que ditou, na semana que passou, o fim do site Gawke, e que lidera vários investimentos no sector da tecnologia, tem aplicado "milhões de dólares em startups que trabalham em medicina anti-envelhecimento", segundo a revista Inc., mas o que o cativa actualmente é a introdução do sangue de jovens nas veias dos idosos, através de um processo denominado de parabiose.

 

Esta ideia de "fonte da juventude" é uma técnica com mais de 150 anos, teve interessados na Rússia e na Europa no século passado, foi praticamente abandonada nos anos 70 mas, mais recentemente, ressurgiu na Califórnia, na China ou na Coreia do Sul.

 

Uma das empresas envolvidas nestes testes é a Ambrosia, com os pacientes acima de 35 anos a terem de pagar 8000 dólares para conseguirem acesso a sangue de menores entre os 16 e os 25 anos. Na explicação dos testes, que devem estar terminados em Julho de 2018, a empresa afirma querer 600 interessados.

 

Liderada pelo médico Jesse Karmazin, este afirma que "os mecanismos em jogo não são totalmente percebidos" mas "o sangue dos organismos jovens não apenas contém todos os tipos de proteínas que melhoram a função celular como, de alguma forma, também induz o corpo dos recipientes a aumentar a sua produção dessas proteínas", com efeitos alegadamente permanentes.

 

Thiel contactou directamente a Ambrosia, através do seu "director pessoal de saúde" (e também de "outros proeminentes líderes de negócio e investidores de Silicon Valley") Jason Camm, que é igualmente o responsável do sector médico da Thiel Capital. O empresário explicou estar interessado na parabiose mais como um tratamento pessoal do que como uma oportunidade de negócio, salientando que o tratamento nem sequer precisa de ser autorizado por entidades como a Food and Drug Administration (FDA) por se tratarem "apenas de transfusões de sangue".

 

No entanto, e como o sangue humano não está disponível facilmente, é a FDA quem "regula a recolha e fabrico de sangue e de componentes de sangue", no sentido de garantir a sua segurança. As empresas também podem ter alguma dificuldade em obtê-lo de bancos de sangue não-lucrativos. Karmazin concorda e nota que "o plasma é relativamente abundante e tem uma duração de dois anos". Mas existe o potencial para um mercado paralelo ou mesmo ilegal de venda de sangue jovem.

 

 

Interesse milionário

No ano passado, a revista Forbes também analisou esta técnica, lembrando a incerteza de saber se ela prolonga a vida, desde que um estudo na Universidade da Califórnia, em 1972, com ratos em laboratório, lhes permitiu viver mais quatro a cinco meses relativamente a um grupo de controlo, que não receberam quaisquer transfusões. Aparentemente, os efeitos funcionam para neurónios, músculos, ossos e células nervosas.

 

Outra empresa, a Alkahest, acredita que o tratamento possa ser eficaz em doenças como a demência. Fundada por Tony Wyss-Coray e Karoly Nikolich, este responsável da empresa explicou à revista científica Nature, em Janeiro do ano passado, entender "os problemas de segurança, mas enfatiza que milhões de transfusões de sangue e plasma [já] foram efectuadas de forma segura em humanos".

 

Wyss-Coray explica que não é necessário mudar todo o sangue para aumentar níveis de aprendizagem e da memória. Este investigador interessou-se pelo assunto em Agosto de 2008, após ouvir o seu estudante Saul Villeda a falar em público sobre estudos efectuados na transfusão de sangue jovem de ratos para outros mais idosos, segundo o The Guardian.

 

Entre céptico e admirado, Wyss-Coray percebeu que podia ser algo "surpreendente". "Não acreditámos que isto funcionava", tal como sucedeu com revistas científicas a quem apresentaram o estudo, depois repetido durante um ano "num outro local, com diferentes equipa, instrumentos e ferramentas" para validar as conclusões. Os resultados foram semelhantes. Agora, "estou convencido que funciona", disse Wyss-Coray à Nature.

 

A investigação de Villeda apenas foi publicada em 2011 mas, no ano seguinte, a Nature rejeitou o estudo. Este acabou por ser aceite pela publicação Nature Medicine em Maio de 2014.

 

O trabalho chamou a atenção de vários milionários, incluindo da família do falecido chinês Chen Din-hwa. A sua família, com um historial de doença de Alzheimer, teve reuniões com Nikolich sobre o trabalho de Wyss-Coray e acabou a financiar a Alkahest, cujos testes com a Universidade de Stanford, iniciados em Setembro de 2014 em 18 pessoas com demência, devem ter resultados conhecidos nos próximos meses.

 

Wyss-Coray, que começou por estudar a demência relacionada com o HIV e depois com o Alzheimer (tendo criado a empresa Satoris para comercializar a investigação sobre a detecção precoce nesta última doença), assume que não faz transfusões de sangue jovem em si próprio.

 

John Hardy, investigador da doença de Alzheimer no University College de Londres, considera o trabalho de Wyss-Coray "interessante", mas é igualmente cauteloso, por outra razão: o plasma pode funcionar em ratos mas não em humanos, que "vivem mais tempo e em ambientes mais variados".

 

 

De fonte da juventude a marmelada de sangue

A aposta de Wyss-Coray na parabiose parece ser relativamente simples: "quando nascemos, o nosso sangue está repleto de proteínas que ajudam os tecidos a crescer e a curarem-se. Na idade adulta, os níveis dessas proteínas diminui. Os tecidos que as segregam podem produzir menos, porque envelhecem e se desgastam, ou os níveis podem ser suprimidos por um programa genético activo. De qualquer forma, dado que estas proteínas pró-juventude desaparecem do sangue, os tecidos no corpo começam a deteriorar-se. O corpo responde libertando proteínas pró-inflamatórias, que se acumulam no sangue, causando a inflamação crónica que danifica as células e acelera o envelhecimento". Assim, ao agir junto de um orgão, como o cérebro, percebe-se que este não está petrificado, mas é "maleável" ao longo da idade.

 

É assim que o conceito da parabiose parece fazer sentido, há séculos.

 

Em 1615, o alemão Andreas Libavius propôs ligar as artérias sanguíneas de velhos e novos para gerar uma "fonte da juventude". Em 1668, o viajante inglês Edward Browne assistiu em Viena (Áustria) a uma execução capital de um criminoso e, para seu espanto, um homem dirigiu-se ao executado com um recipiente, recolheu o sangue que lhe saía do pescoço decapitado e depois bebeu-o, contava a The Daily Beast.

 

Browne não se mostrou espantado, até porque aparentemente já ouvira falar do mesmo na Alemanha, como prática entre os mais pobres, sem dinheiro para pagarem a médicos.

 

Robert Boyle, um dos fundadores da Royal Society, criada em Londres em 1660, registou uma lista de projectos científicos a efectuar, sendo um deles "o prolongamento da vida" que, esperava ele, passava "pela substituição de velho sangue por novo", diz o The Guardian. "Sem conhecimento de grupos sanguíneos ou factores de coagulação, as experiências iniciais de transfusão foram mortais", sendo banidas em França e depois em Inglaterra, a que se seguiu uma decisão papal no mesmo sentido em 1679 - ano em que um texto de um farmacêutico franciscano já "providenciava instruções para fazer marmelada de sangue".

 

 

A parabiose, na sua forma mais moderna, iniciou-se em 1864 pelo francês Paul Bert, quando despelou dois ratos para criar um sistema circulatório conjunto, constatando que o sangue circulava realmente entre os dois animais, recorda a Nature. O trabalho científico de Bert pode ter estado na origem do livro "A Ilha do Dr. Moreau", de H. G. Wells, publicado em 1896 e onde se referem experiências científicas de fusão entre diversas criaturas.

 

O interesse na técnica chegou à Rússia, onde Alexander Bogdanov, "o pioneiro esquecido da transfusão de sangue", criou em 1926 um instituto para demonstrar como essa transfusão podia ser uma terapia e um "estimulante corporal". No caso dele, acabou por morrer após receber uma transfusão de um estudante que tinha sangue com vestígios de tuberculose e malária.

 

Três décadas depois, Clive McCay, gerontólogo na Universidade de Cornell em Nova Iorque (EUA), aplicou a técnica ao estudo do envelhecimento em ratos. Deste teste, em 1956, alguns morreram e deram origem à chamada doença parabiótica. Seguiu-se o estudo em 1972, na Universidade da Califórnia, que "sugeriu pela primeira vez que a circulação de sangue jovem pode afectar a longevidade".

 

Após um período de aparente desinteresse, uma investigação revelada em 2005 por Thomas Rando, do Stanford Center on Longevity, tentou dissipar a dúvida sobre a razão porque os tecidos num corpo envelhecem em simultâneo. A parabiose funcionou e alguns ratos mais velhos conseguiram melhorias ao nível dos músculos, fígado e células cerebrais. Wyss-Coray trabalhava então com Rando, após ser contratado por este em 2002.

 

Em 2014, a investigadora Amy Wagers, do Harvard Stem Cell Institute, registou que o sangue de ratos novos melhorava os músculos, coração e funções cerebrais em ratos mais velhos, dinamizando um novo interesse na parabiose, dizia a Technology Review, salientando que investigadores da farmacêutica Novartis tinham "contestado" o estudo de Wagers, seguindo-se outras contestações por parte de cientistas da GlaxoSmithKline ou da Five Prime Therapeutics. No entanto, para a revista, a investigação de Wagers "sugere que há algo no sangue jovem a promover o rejuvenescimento".

 

 

Desconfortável, demorada mas com demografia a favor

Na entrevista à Inc., Thiel reconhece o "desconforto" por esta prática na sociedade actual, mas há pressões demográficas que podem alterar o panorama. "Em 2030, 56 países terão mais pessoas com ou acima dos 65 anos do que menores de 15 anos", antecipa um ex-responsável de demografia das Nações Unidas. E "em 2050, dois mil milhões de pessoas terão 60 ou mais anos, quase duplicando o número actual", segundo o The Guardian.

 

Para Rando, a técnica não visa prolongar a existência de uma pessoa, mas proporcionar-lhe uma melhor qualidade de vida. A Nature apontava no mesmo sentido, em Janeiro de 2015, dizendo que, "por enquanto, quaisquer alegações de que sangue jovem ou plasma vão prolongar a vida são falsas: os dados simplesmente não existem", com qualquer experiência a ter de demorar mais de seis anos - o tempo dos ratos envelhecerem, morrerem e os dados serem analisados e publicados.

 

Mesmo o objectivo da Alkahest – "identificar as proteínas principais no plasma que rejuvenescem ou envelhecem os tecidos humanos", para depois criar um produto substituto - só deve estar concluído entre "10 a 15 anos", diz o The Guardian.

 

Perante a criação de empresas a oferecerem este tipo de serviços antes da investigação estar totalmente considerada segura, Sergio Della Sala, da Universidade de Edimburgo, clarifica a situação: "a ciência deve entender primeiro e depois vender", e não o inverso.

 

David Glass, director executivo da investigação de envelhecimento na Novartis, considera que os pacientes da Ambrosia não vão ter qualquer grupo de controlo, pelo que "será impossível decifrar quaisquer benefícios".

 

No início de Agosto, também a revista científica Science questionou os testes da Ambrosia, nomeadamente por se tratar de uma investigação em que 600 participantes pagam do seu bolso 8.000 dólares, um tipo de ligação entre resultados científicos e dinheiro "que tem levantado preocupações éticas".

 

Karmazin assegura estar a cumprir todas as regras éticas, mas um crítico especial declara "não existir qualquer prova clínica" do tratamento poder ser ou não benéfico, e que se "está a abusar da crença das pessoas e da excitação pública" sobre esta técnica. Esse crítico é Wyss-Coray.

publicado às 18:56

O carro do "rei" esteve desaparecido 50 anos. Até que Jack lhe deu uma nova vida

 Por: Paulo Rascão

 

Todos os anos na praia de Pebble Beach, na Califórnia, mais concretamente ao buraco 18 do Pebble Beach Golf Links, tem lugar uma das mais sérias competições automóveis do mundo. Ao contrário de Le-Mans ou do Mónaco, não ganha o mais rápido, mas sim o mais bonito. Entre os mais bonitos deste ano, está o carro do "rei" Elvis, que esteve desaparecido quase 50 anos e que é uma história de verdadeira dedicação de um coleccionador chamado Jack Castor.

 

Elvis.jpg

 

O “Pebble Beach Concours d’Elegance” reúne 200 dos coleccionadores de automóveis mais premiados, do mundo que todos os anos vão orgulhosamente mostrar ao publico e ao exigente júri as suas “jóias” do restauro automóvel. Os proprietários gastam anos de trabalho e autênticas fortunas para conseguirem ter um carro premiado.

E será depois do desfile no 18º buraco do campo de golfe (apelidado pelos concorrentes como “the best finishing hole in golf”) que hoje será conhecido o vencedor deste ano.

 

Competindo com as vedetas habituais - Ferraris, Lamborghinis, e uma reunião de modelos do Ford GT - a BMW leva este ano ao desfile um carro muito especial.Trata -se de um singelo roadster dos anos 50, o BMW 507. Dois lugares, “apenas” 150 cavalos de potência debitados por um motor V8 de 3.2 litros e 205 kms hora de velocidade máxima. Mas estes não são os números que interessam. Neste carro em concreto o número mágico é o 70079, e está escrito no chassi. E o que é que tem de especial?

 

P90229737-highRes.jpg

 

Pois bem, o BMW modelo 507 com o número 70079, pertenceu a Elvis Presley. Comprado na Alemanha no tempo em que o rei ali cumpriu o serviço militar obrigatório e também conheceu a sua futura mulher, Priscilla, que acompanhava a mãe e o padrasto, um oficial da força aérea americana. O carro do rei do rock esteve desaparecido quase 50 anos até que foi descoberto na garagem de um coleccionador na Califórnia. Depois de quase dois anos de restauro no departamento de clássicos da BMW, volta a rodar para se estrear no “Pebble Beach Concours d’Elegance”.

 

 

O “BM” do Jack que o rei usou na tropa

 

A BMW só produziu 254 automóveis do modelo 507, entre os anos de 1955 e 1959. O que fazia do carro já por si uma raridade. O 507 de Elvis Presley foi comprado em Frankfurt por impulso depois de fazer um test drive. O carro  tinha sido usado em competições por  um corredor conhecido na altura como “hillclimb champion” de seu nome Hans Stuck, que tinha feito algumas modificações ao modelo original, nomeadamente uma caixa de velocidades nova.

 

trseira.jpg

 

O jovem soldado Elvis, então com 23 anos, já era uma estrela reconhecida a as fãs deixavam beijos e mensagens escritas com baton na pintura branca do carro. É por isso que Elvis decide pintá-lo de vermelho para “disfarçar”.

 

Em 1960, depois do serviço militar cumprido, o carro foi despachado para os Estados Unidos, mas poucos meses depois foi vendido em Nova Iorque por 4500 dólares ao animador de rádio Tommy Charles que leva o 507 para a sua terra natal, Birmingham, no estado da Alabama -  e o pequeno carro agora vermelho volta às pistas. É-lhe mudado o motor, caixa de velocidades, eixo traseiro, painel de instrumentos e tem um gloriosa segunda vida nas corridas. Em 1963 é de novo vendido com tantas modificações que já quase só o número 70079 lembrava que era o carro do rei do rock.

 

Mais duas mudanças de dono e em 1968, o 507 vai para a Califórnia e passa a ser o carro de todos os dias de um engenheiro espacial, Jack Castor, colecionador de bicicletas e de carros antigos. Os anos passam e o 507 junta-se à restante coleção na garagem.

 

Jack foi colecionando informações e peças originais do 507 como o intuito de o restaurar, até que um dia, ao ler um artigo na revista “Bimmer” sobre o carro de Hans Stuck e depois de Elvis, resolveu escrever à jornalista Jackie Jouretcarrium  que assinava o artigo a dizer que tinha um BMW 507 e com número de série 70079.

 

O departamento de clássicos da casa mãe da BMW há muito que procurava o carro do Elvis e quando a jornalista os informou que o carro estava na Califórnia, a BMW quis imediatamente adquiri-lo. Mas o engenheiro espacial tinha planos para o 507 e não o vendeu logo; foram necessários vários anos de namoro até que Jack aceitasse a proposta dos alemães, com a condição que o restauro fosse executado com todo o rigor como ele planeara fazer, embora a idade avançada já não lhe permitisse.  

 

Finalmente, o carro volta para a Alemanha, em 2014, num contentor juntamente com as peças originais que Jack tinha vindo a colecionar, e depois de uma breve passagem pelo museu da BMW, numa exposição intitulada, “Elvis’ BMW 507 – Perdido e Achado”, começa o enorme trabalho de restauro, que leva quase dois anos. Para chegar à versão original de 1958.

 

P90229719-highRes.jpg

 

O carro foi totalmente desmanchado e foram recuperadas todas a peças originais que estavam em bom estado. As partes que não se conseguiram recuperar foram  feitas do zero, com o método dos anos 50 e tecnologia de ponta a ajudar. Os puxadores da portas foram impressos em 3D com base na digitalização tridimensional dos originais e a pele e a costura dos bancos coincide com as fotografias de 1955. O motor e a suspensão foram reconstruídos e a pintura voltou a ser o branco original.

 

Todo o restauro foi executado conforme as indicações do Jack. Embora ele não tenha chegado a ver resultado final, porque faleceu no final de 2014 com setenta e sete anos. Se este carro foi do rei o grande legado que ficará do 507 será o de Jack Castor que cuidou e preservou a jóia da coroa durante tantos e anos, sem saber a quem tinha pertencido antes.

 

E agora graças aos investimentos no restauro que a BMW Classics fez, hoje será possível a outros donos deste modelo, encomendar peças  que entretanto foram produzidas para o 507.

publicado às 17:59

Quanto vale o mercado negro mundial?

Por: Pedro Fonseca

 

Para Portugal, os dados são reduzidos, mas há um site que retrata o que se passa ao nível global na economia paralela. Aquela que não é tributada e tem vencimentos de fazer inveja a qualquer trabalhador honesto. Onde é possível, por exemplo, saber quanto ganha um assassino na Colômbia, um vencedor de luta de galos em Los Angeles ou um traficante de droga no Rio de Janeiro.

 

 

Portugal ocupa a 69ª posição na lista dos negócios ilegais em todo o mundo, segundo o site Havocscope, que agrega informação sobre este sector paralelo a partir de dados recolhidos de "agências governamentais, estudos académicos, notícias e fontes próprias". Estamos atrás de Singapura, Honduras e Bélgica, e à frente da Áustria, Dinamarca e Finlândia.

 

No entanto, o valor referente aos crimes do mercado ilegal em Portugal está apenas indexado aos 245 milhões de dólares da pirataria de software, reportados pela Business Software Alliance (BSA ou actualmente denominada como The Software Alliance) em 2011. Ora, segundo o relatório mais recente da BSA, essa pirataria de software em Portugal caíu em 2013 para os 180 milhões de dólares e, no ano passado, para os 145 milhões de dólares - o que permitia "ganhar" apenas quatro lugares, para ficar na 73ª posição entre a Finlândia e o Equador.

 

Os dados não são apontados apenas numa única direcção sectorial. Ao contrário do nosso país, por exemplo, a preponderância nas Honduras está no contrabando de gás e de petróleo ou na exploração ilegal de produtos florestais.

 

Apesar destas limitações de um agregador de dados, o Havocscope tem algum mérito na divulgação do mercado de bens e serviços ilegais, assumindo e revelando as fontes de onde conseguem essa informação, permitindo aos "utilizadores verem de onde veio a informação, julgarem a credibilidade da fonte e fazerem uma nova pesquisa se necessário", diz o site, criado em Setembro de 2013.

 

Este permite ainda aos utilizadores submeterem informação que nem sempre é - ou pode ser - divulgada pelas fontes oficiais, como os preços de rua (para Portugal) da cocaína, ecstasy, heroína ou marijuana, assim como o custo de uma arma AK-47, que vai dos medianos 534 dólares em muitos países mas sobe para os 1500 dólares no Afeganistão.

 

Corrupção, lavagem de dinheiro ou crime organizado não são contabilizados

 

Além de penalizarem os países pela fuga aos impostos, estes negócios ilegais têm um impacto directo na vida de muitas pessoas. A lista de países mais afectados pelo mercado negro é liderada pelos EUA, com uns impressionantes 625 mil milhões de dólares, que incluem a pirataria de bens (225 mil milhões), tráfico de drogas (215 mil milhões) ou o jogo ilegal (150 mil milhões).

 

No grupo dos 10 países mais problemáticos seguem-se a China (261 mil milhões de dólares), o México (126 mil milhões), a Espanha (124 mil milhões), a Itália (111 mil milhões), o Japão (108 mil milhões), o Canadá (77 mil milhões), a Índia (68 mil milhões), o Reino Unido (61 mil milhões) e a Rússia, com pouco mais de 49 mil milhões de dólares de negócios ilegais contabilizados neste site.

 

O Havocscope lista ainda o impacto, riscos económicos e valores do mercado negro mundial (que nem sequer incluem valores directos sobre a corrupção, lavagem de dinheiro ou do crime organizado, por se considerar a sua potencial sobreposição com outros negócios).

 

Por exemplo, a combinação de jogos de futebol está indexada aos 15 mil milhões de dólares, enquanto os serviços de uma prostituta de luxo em Cannes (França) podem chegar aos 40 mil dólares por noite, subindo para os 100 mil no Brasil.

 

Este mercado negro global é liderado pela falsificação de medicamentos (um negócio que vale 200 mil milhões de dólares), seguindo-se a prostituição (186 mil milhões), falsificação de bens electrónicos (169 mil milhões), a venda de marijuana (141 mil milhões), o jogo ilegal (140 mil milhões) e o negócio relacionado com a cocaína, que vale 85 mil milhões de dólares.

 

O site permite ainda saber quanto ganha um assassino na Colômbia por cada morte (3000 dólares), um vencedor de luta de galos em Los Angeles (15 mil dólares), o rendimento anual de um traficante de droga no Rio de Janeiro (pode chegar aos 15 milhões de dólares), o valor de um hacker num jogo online (16 mil dólares mensais na China), o valor de um "like" no Facebook (15 dólares por milhar - o mesmo valor para se ter 10 mil falsos seguidores no Twitter) ou quanto pode ganhar um carteirista em Barcelona - mais de seis mil dólares por semana!

publicado às 10:11

Pág. 1/4

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2015
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D