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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Porque é que o programa do PS é um erro

Por: António Costa

 

Pronto, já temos um governo de Esquerda, ou melhor, um governo minoritário do PS com o apoio da CDU e BE, e, à medida que se conhece a substância do acordo, a forma, as medidas, os números, as 138 páginas, mais reservas ele suscita, mais dúvidas se levantam sobre a sua credibilidade e consistência.

 

António Costa é um homem de bastidores, de águas profundas, e, para quem tivesse dúvidas, terão sido dissipadas. Percebeu, cedo, que não seria possível juntar à mesma mesa, e ao mesmo acordo, os três partidos, e por isso jogou em vários tabuleiros, com uma vantagem: quem não cedesse, seria responsável pela manutenção da coligação de Direita no poder. Foi assim mais uma forma de pressionar uma coligação negativa que está em formação.

 

Se uma coligação de Esquerda começava mal, fragilizada, porque o PS perdeu as eleições para a coligação PAF, a confirmação de que o governo será minoritário, e dependerá de dois partidos com quem tem tantas e tão profundas diferenças, só pode significar que o próximo governo tem tudo para correr mal. Costa dependerá, a cada momento, da boa vontade, da tática e da estratégia de dois partidos que, até ao dia 3 de Outubro, diziam que o PS era igual ao PSD e PP. Não são iguais, mas partilham os mesmos valores. Diferentes dos que defendem os dois partidos de Esquerda.

 

 

Os problemas não acabam aqui. À dimensão política, aquela que deveria ser o cimento de uma coligação, juntam-se duas outras, igualmente importantes. Em primeiro lugar, a nova troika política que vai assumir funções depois de chumbar o Governo diz-nos que tudo é possível, e mesmo assim, cumpre as metas orçamentais e os objetivos macroeconómicos. Em segundo lugar, propõem-nos um modelo que não muda nada de estrutural, acentua o perfil de economia assente no consumo, assusta o investimento e condena o país a prazo.

 

Vamos por partes: qualquer português de bom-senso defende medidas que permitam a melhoria do nível de vida dos portugueses, o aumento dos salários, das pensões, como é evidente. E uma aplicação da austeridade justa, equitativa e que ao mesmo tempo permita olhar para a frente. Sobretudo depois de anos de um cinto apertado à medida das nossas possibilidades. Não é a Esquerda que tem esse património. Os caminhos são diferentes, sim, e este programa dá primeiro para, com isso, tentar mudar a economia depois. Uma profissão de fé que já mostrou ter falhado no passado. Todos erramos, mas seria desejável a aprendizagem com o erro. A realidade não é essa, por muito que quiséssemos.

 

António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa acordaram devolver a totalidade dos cortes de salários na Função Pública em 2016, extinguir a sobretaxa de IRS em dois anos, repor os abonos de família e as atualizações automáticas das pensões, descongelar as progressões nas carreiras do Estado e cortar a TSU para salários brutos de até 600 euros. E até reduzir o IVA na restauração. Tudo é possível, e coerente com a descida do défice, para 2,8% em 2016, com a queda da despesa pública em percentagem de um PIB com um aumento limitado, com a queda do peso das prestações sociais no total da despesa, e até a receita total também cai em percentagem da riqueza criada no país. António Costa é especialista em quadraturas do círculo, mas esta é impossível. A não ser que falte alguma coisa para dizer. E falta muito.

 

Estes números são opacos, propositadamente. Vem aí um enorme aumento de impostos, e não é para os ricos, porque esses já perceberam o que aí vem e já estão a fazer as malas, ou as doações em vida, ou a antecipação do pagamento de dividendos. Vem para os mesmos, os trabalhadores por conta de outrem que já hoje pagam uma enorme fatura fiscal. À luz do fisco, um agregado que ganha mais de 80 mil euros brutos por ano é rico. É? Não é. Estas taxas vão aumentar, e preparem-se para o pior. À francesa, um país inspirador para Costa. E o mérito e a competência, a atração dos melhores, fica para outros, os que percebem o que está em causa numa economia global.

 

Se isto já é arriscado, para não dizer outra coisa, o próprio caminho é um desastre. Até Mário Centeno já se deve ter arrependido do filme em que se meteu. Até a sua medida-chave – o regime conciliatório – caiu, a medida que permitiria contribuir para uma mudança da estrutura económica que deu passos, mas lentos, muito lentos para as necessidades. Não só caiu, como ficou escrito que caiu.

 

O programa de governo do PS, ao contrário, vai reverter as medidas laborais por exigência do PCP, ou melhor, da CGTP, vai recuperar medidas como as portarias de extensão e vai por fim à caducidade dos contratos coletivos. O salário mínimo vai aumentar 25% em quatro anos, portanto, é bom que as empresas garantam muita atividade até 2019. Mas não só. A reforma do IRC vai ser deitada ao lixo e até no Estado o novo governo promete acabar com a mobilidade de funcionários públicos.

 

Tudo isto, somado, só poderá ter maus resultados, porque o país precisa de capital, de investimento, só isso terá consequências no emprego, na estrutura da economia, na produtividade. Aí, sim, teríamos condições para adotar este programa do PS, pelo menos uma parte dele. Depois, não antes.

 

O anterior Governo não fez as reformas que deveria fazer, cumpriu regras, e mostrou que sabe fazê-lo, seguiu uma tabuada, fez as contas e tirou-nos da intervenção externa com a ajuda, sim, do BCE. Ficou muito aquém do que poderia e deveria. Foi uma pena, uma oportunidade perdida. O governo que está hoje em funções, com os mesmos líderes, promete fazer o que o anterior não fez. O programa anunciado de um governo do PS diz-nos de forma clara que vamos mesmo andar para trás. E depois, quando chegar a fatura dos 18 mil milhões de euros de juros que têm de ser amortizados em 2016, digam que a culpa é dos mercados.

 

*Espero estar errado.

 

As escolhas

 

No meio dos bastidores destas negociações políticas, emerge um homem, Arménio Carlos, que impôs a vontade da CGTP ao PCP. Tempos estranhos estes, mas por isso têm de ler a entrevista que o secretário-geral da central sindical dá ao Diário Económico. Qual é a primeira prioridade? Tirar a Direita do poder. Estamos conversados.

 

Não é só em Portugal que a política domina, como é óbvio. Dentro de um ano, os americanos vão às urnas, para as presidenciais. Ouçam na Monocle em versão rádio o que está em causa e o enquadramento económico e financeiro do país.

 

publicado às 11:19

Luta de egos

Por: Adriano Freire

 

Sabia que a personalidade de Passos Coelho é parecida com a de Jerónimo de Sousa? E que Paulo Portas tem muito em comum com Catarina Martins? Já António Costa tem um posicionamento muito invulgar… E é por isso que a luta pelo poder está ao rubro!

 

Quer compreender realmente a atual situação política em Portugal? Comece por conhecer melhor os seus protagonistas. Afinal de contas, são os líderes partidários que conduzem o jogo do poder. E prepare-se para ficar muito surpreendido. Porque na política, as aparências enganam mesmo…

 

Para entender bem as jogadas dos políticos, é necessário conhecer primeiro o tabuleiro onde se posicionam as suas personalidades, o Mapa EGOS, mais abaixo.

 

Como seria de esperar, todos os líderes políticos em qualquer parte do mundo evidenciam fortes características do perfil Empreendedor. Por isso é que conseguem superar os seus oponentes internos e ascender à posição cimeira nos respetivos partidos. Mas as semelhanças terminam aqui…

 

De facto, a orientação ideológica de cada partido reflete-se geralmente no seu posicionamento distinto no Mapa EGOS. Ideologias políticas de direita, como o liberalismo e o conservadorismo, sendo defensoras da liberdade de atuação dos cidadãos e de uma reduzida intervenção estatal, tendem a fomentar o individualismo e a competição (características do perfil Empreendedor), a par com o pragmatismo e a adaptação às circunstâncias (características do perfil Operacional).

 

Inversamente, ideologias políticas de esquerda, como o socialismo e o comunismo, sendo defensoras de uma sociedade igualitária e de uma elevada intervenção estatal, tendem a fomentar a utilização coletiva dos recursos e a cooperação (características do perfil Social), a par com a planificação e a regulação governamental (características do perfil Governador).

 

Qualquer ideologia política pode ainda ser adotada num sistema democrático, que tende a fomentar o envolvimento alargado dos cidadãos (característica do perfil Social) e a luta pelos votos dos eleitores (característica do perfil Empreendedor), ou num sistema totalitário, que tende a fomentar controlo absoluto do estado (característica do perfil Governador) e a passividade da população (característica do perfil Operacional).

 

Por exemplo, enquanto na Holanda, uma nação atualmente com um regime liberal (ideologia de direita) e democrático, é acentuada a livre iniciativa e a orientação prática para a ação, na Coreia do Norte, uma nação atualmente com um regime comunista (ideologia de esquerda) e totalitário, é imposta a submissão à autoridade do líder e o cumprimento estrito das diretrizes presidenciais.

 

Portanto, a par das suas características do perfil Empreendedor, os dirigentes partidários também costumam assumir características típicas das ideologias que promovem. Assim se compreende que os líderes políticos em Portugal tenham posicionamentos diferentes no Mapa EGOS: 

  • Passos Coelho: personalidade EG, mediamente introvertida, que combina características liberais (E) com algum sentido regulatório (G), como é habitual num partido social-democrata europeu.
  • Paulo Portas: personalidade ES, bastante extrovertida, que combina características individualistas (E) com alguma preocupação social (S), como é habitual num partido de direita com inspiração católica.
  • Catarina Martins: personalidade SE, bastante extrovertida, que combina características coletivistas (S) com alguma orientação competitiva (E), como é habitual num partido de esquerda gerado pela fusão de várias doutrinas.
  • Jerónimo de Sousa: personalidade GE, mediamente extrovertida, que combina características normativas (G) com algum pendor de luta revolucionária (E), como é habitual num partido comunista de raízes soviéticas.

 

O posicionamento das personalidades destes quatro líderes partidários no Mapa EGOS reflete bem as suas semelhanças e diferenças. Na realidade, apesar de Passos Coelho e Paulo Portas partilharem a predominância do perfil Empreendedor, contrastam na abordagem às questões políticas: Passos Coelho é bastante mais estruturado (G) e Paulo Portas muito mais impulsivo (S). Por isso, poucos acreditavam que a coligação conseguisse durar os 4 anos da legislatura, e o episódio da demissão irrevogável pareceu dar razão a todos os céticos. Porém, para surpresa geral, a rutura não aconteceu e ambos os líderes passaram mesmo a ser mais flexíveis e convergentes na condução do Governo: Passos Coelho passou a ser mais comunicativo (S) e menos controlador (G), enquanto Paulo Portas passou a ser mais regrado (G) e menos emotivo (S). E dessa forma a rivalidade inevitável entre as suas personalidades Empreendedoras também ficou muito atenuada.

 

Por outro lado, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa divergem bastante na abordagem às questões políticas, apesar de comungarem de ideologias de esquerda. Catarina Martins é mais inspiradora (S), como é típico da esquerda urbana moderna, enquanto Jerónimo de Sousa é mais dogmático (G), como é típico da esquerda comunista tradicional. E como ambos também são competitivos (E), não admira que o entendimento entre os dois partidos não seja fácil...

 

Mas o mais curioso é que estes quatro líderes políticos podem ser agregados em dois grupos que cruzam as fronteiras ideológicas. Na verdade, Passos Coelho (EG) e Jerónimo de Sousa (GE) têm personalidades muito próximas, tal como Paulo Portas (ES) e Catarina Martins (SE) têm muitas características em comum! Assim se compreende que estas posições políticas tanto se possam complementar, como tem sido o caso à direita com o PSD e o CDS-PP, como possam competir entre si, como tem sido o caso à esquerda com o Bloco de Esquerda e o PCP.

 

Falta contudo analisar um último líder partidário para compreender bem o atual jogo do poder político…

  • António Costa: personalidade EO, mediamente introvertida, que combina características de ambição (E) com um sentido prático e improvisador (O), o que é pouco habitual num partido socialista europeu.

 

Na realidade, António Costa tem poucas características dos perfis Social ou Governador evidenciadas pela maioria dos líderes do PS (Mário Soares, Vítor Constâncio, Jorge Sampaio, António Guterres e António José Seguro), e apenas revela algum do forte pendor Empreendedor de José Sócrates. O que torna António Costa único é mesmo o elevado peso das características do perfil Operacional na sua personalidade. E isso ajuda a compreender melhor a sua atuação política antes e depois das eleições…

  • Só avançou contra António José Seguro quando achou que a posição dele estava fragilizada (pragmatismo)
  • Tomou decisões precipitadas no apoio a Sampaio da Nóvoa e na preparação dos cartazes (improvisação)
  • Conduziu a campanha eleitoral de uma forma algo errática, com aproximações à direita e à esquerda (maleabilidade)
  • Promoveu múltiplas reuniões com os outros líderes partidários sem qualquer pressão temporal (paciência)

 

Esta atuação tanto foi criticada como elogiada com argumentos políticos e morais, mas a verdade é que António Costa apenas evidenciou a sua própria personalidade EO: combinando de uma forma invulgar a competitividade (E) com a adaptabilidade (O), reinventou o jogo do poder em Portugal. Contudo, esta abordagem pioneira também explica a sua dificuldade em ser bem sucedido. É que as jogadas de António Costa podem ser muito diferentes, mas as regras do jogo não mudaram…

 

Na realidade, Passos Coelho e Paulo Portas desconfiam da indecisão do líder do PS e criticam a sua hesitação em assumir plenamente os compromissos europeus, não se revendo portanto nas suas características mais Operacionais. Por seu lado, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa desconfiam da necessidade de protagonismo do líder do PS e criticam a sua argumentação economicista, não se revendo portanto nas suas características mais Empreendedoras.

 

Ainda assim, a análise do Mapa EGOS revela sem qualquer margem para dúvidas com quem é que António Costa se prefere aliar:

 

 

Enquanto numa aliança à direita António Costa fica numa posição subalterna e em competição permanente com Passos Coelho e Paulo Portas, numa aliança à esquerda António Costa assume a desejada liderança e ainda se posiciona como o elemento agregador de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Nesta opção, a aproximação ao Bloco de Esquerda é obviamente a mais fácil, uma vez que as características Sociais de Catarina Martins propiciam um rápido entendimento. O problema é a aproximação ao PCP, uma vez que Jerónimo de Sousa é um líder bastante mais rígido e prefere partir a torcer…

 

Não admira pois que o futuro político de Portugal passe pela eventual flexibilização de Passos Coelho ou de Jerónimo de Sousa na interação com António Costa. Quem conseguir atenuar as suas características Empreendedoras ou Governadoras e reforçar as suas características Operacionais, estará em melhores condições para criar uma aliança parlamentar com o PS. Depois só terá de se preocupar com a sua manutenção ao longo do tempo…

 

O jogo do poder não se disputa portanto apenas no tabuleiro político. Em última análise, é também uma luta de EGOS!

 

  

MAPA EGOS

 

O Mapa EGOS é um inovador modelo de personalidade assente na combinação de quatro perfis distintos.

 

Empreendedor: competitividade, tomada de iniciativa, orientação para os objetivos, rapidez de atuação e pensamento estratégico.

Governador: lógica, rigor analítico, orientação para os processos, aversão ao risco e controlo normativo.

Operacional: improvisação, persistência, orientação para a execução, pragmatismo maleável e informalidade.

Social: cordialidade, comunicação persuasiva, orientação para as pessoas, idealismo emotivo e impulsividade.

 

Obviamente, cada pessoa integra à sua própria maneira características de todos os perfis EGOS na sua personalidade. Mas em função da sua natureza biológica e psicológica, tende a assumir sobretudo as características de determinados perfis ao longo da vida (personalidade natural). Ainda assim, em situações específicas, a pessoa pode precisar de acentuar outras características, adotando então temporariamente personalidades mais adequadas a esses contextos (personalidades adaptadas).

 

Adriano Freire é Professor da Universidade Católica e autor do livro Mapa EGOS.

publicado às 11:00

É isto a vida? É só uma fantasia? Realmente, não importa

Por: Rute Sousa Vasco

 

 Começa de mansinho, como se fosse apenas mais uma. Não tarda e é uma balada e quase nos convence, pelo tom, de que se trata de um love affair, apenas mais um love affair, que, como todos os outros, pode acabar mal, mas também pode acabar bem.

 

Até que prestamos atenção às palavras, sílaba a sílaba, até que uma guitarra nos interrompe o interlúdio e nos atira água para a cara, antes de sermos lançados no mais excruciante drama. Com Scaramouche, Galileu, Fígaro e Bismillah. Bismillah, do árabe, o nome de Deus.

 

E não acaba aqui. Continua, continua, despeja tudo em modo hard rock. Até que enfim termina, até que enfim nos dá uma espécie de paz. Ou de resignação.

 

Podia ser uma banda sonora dos nossos dias. Dentro e fora do país. Podia ser e de certa forma é. Amanhã, dia 31 de Outubro, a Bohemian Rhapsody, dos Queen faz 40 anos. Podíamos dizer, a Bohemian Rhapsody de Freddie Mercury, mas seria uma injustiça com todos os outros que, como Brian May recordou esta semana à BBC, abraçaram esta música como se abraça uma graça que inesperadamente nos é dada.

 

A Bo Rap, como se tornou também conhecida, marcou a história, mudou a história. Tudo o que não era suposto acontecer, aconteceu.

 

Desafiou a tecnologia existente à época e não por acaso foi gravada em seis estúdios de som. É considerada a primeira música em videoclip – uma peça vista vezes sem conta e que os membros da banda encararam, à época, como pouco mais que uma foleirada destinada a passar num programa da BBC. E eles lá estavam, e ele lá estava, no seu fato colado ao corpo a evocar os Abba e o Mr Spock de Star Trek de uma só assentada. ”Foi filmado expressamente para o Top of The Pops. Para aqueles de nós que se lembram, não era um programa cheio de classe. O Top of the Pops não tinha boa reputação entre os músicos. Ninguém gostava, na realidade”, recordou Brian May.

 

A editora garantiu-lhes que era o tipo de música que nunca passaria na rádio. É na rádio que explode, depois de um homem da rádio ter oportunamente desviado uma cassete.

 

Chegou à televisão pelo Natal de 1975, no programa The Old Grey Whistle Test, gravado integralmente no Hammersmith Apollo, em Londres, e que terá agora um DVD de celebração dos 40 anos também. Para música que nem passaria na rádio, não correu nada mal: um milhão de cópias vendidas em Inglaterra até Janeiro de 1976, depois de nove semanas seguidas no top.

 

Uns anos mais tarde, em 1992, a Bo Rap voltou a fazer história. Desta vez nos Estados Unidos. Desta vez, por culpa de Mike Myers e do filme Wayne's World. Freddie Mercury recuperava assim, à distância, a sua América perdida.

Numa edição ainda posterior, no Irão, incluída nos Greatest Hits da banda, a Bohemian Rhapsody é apresentada como a história de um homem que acidentalmente matou outro homem e que, tal como Fausto, vendeu a sua alma ao diabo. Até ao dia … até ao dia antes da sua execução, em que chama por Deus (Bismillah) e recupera a sua alma.

 

Is this the real life?

Is this just fantasy?

Caught in a landslide

No escape from reality;

 

A Rapsódia Boémia, agora sim, em português, é tão portuguesa. Tão portuguesa como de qualquer outra parte onde as pessoas realmente vivam vidas, se apaixonem, sejam traídas, se arrependam e recomecem, tudo outra vez.

 

É uma excelente banda sonora para estes dias que vivemos, dos revivalistas do PREC àqueles rapazes e raparigas da minha criação, que ainda nem na escola primária estavam em 1975, mas que cruzam os dedos e dizem jamais esquecer a Fonte Luminosa. É verdade que a célebre manifestação da “maioria silenciosa”, organizada por Guterres e com Soares no discurso provavelmente mais memorável da sua vida, também fez 40 anos em Julho, mas, tal como a Bo Rap, só seria escutada por esses rapazes e raparigas uns 10 anos depois, quando já andavam pelo liceu e, pasme-se, Portugal já se preparava para ser outra coisa qualquer, na antecâmara do cavaquismo que tomaria o país por 20 anos.

 

Talvez também por isso é uma banda sonora igualmente perfeita para quem, embalado na ideia de que tudo, afinal, lhe vai correr bem, pode tão simplesmente estar na antecâmara de um exílio prolongado de poder. António Costa, sim, o PS, sim, arrastando ou não consigo a esquerda com a qual não consegue um acordo efectivo de governação. Um homem temporariamente só, aos comandos de um país que em poucos meses o poderá executar, como ao personagem da rapsódia. Na vida dos países, como das pessoas, e das músicas, há momentos em que se mudam as regras do jogo, em que se cria algo de novo. E até se pode começar por uma estreia em programas foleiros e de pouca reputação. Mas tem de existir algo de fundamentalmente verdadeiro, uma vontade efectivamente nova. Se não, apenas se vende a alma ao diabo e a redenção chega tarde e, na realidade, não chega para mudar nada.

 

Se não, "nothing really matters...".

 

“It's one of those songs which has such a fantasy feel about it. I think people should just listen to it, think about it, and then make up their own minds as to what it says to them... Bohemian Rhapsody didn't just come out of thin air. I did a bit of research although it was tongue-in-cheek and mock opera. Why not?”

—Freddie Mercury

 

Outras coisas com 40 anos, ou quase

 

Depois de 36 anos de imposição da lei do filho único, a China anunciou que os casais “já” podem ter dois filhos. Também por lá, pelo maior país do mundo, a demografia do envelhecimento começa a estar na ordem do dia. Cerca de 30% dos chineses têm mais de 50 anos e os 400 milhões de nascimentos que a lei do filho único impediu começam a fazer toda a diferença.

 

Às 22h30 do dia 29 de outubro de 1969, nos Estados Unidos, era feita a primeira ligação ARPANET, no momento em que dois computadores separados por mais de 500 km comunicaram. Ou seja, há 46 anos, a nossa vida mudou e nunca mais seria a mesma.

 

 

 

 

 

 

 

publicado às 10:54

Revista à portuguesa

Por: Pedro Rolo Duarte

  

O que parece mais interessante no momento político nacional - e até, quem sabe, objecto de estudo para o futuro - é o facto de os protagonistas, sem excepção, protagonizarem uma qualquer personagem, interpretarem um papel, e ficcionarem a realidade como se efectivamente vivessem nesse inexistente mundo.

 

Sabem que falam de uma realidade que não existe, mas fazem de conta com razoável sabedoria. Se trabalhasse num departamento de ficção de uma televisão ou produtora, estava em cima do fenómeno - de Passos a Jerónimo, temos ali um painel de actores que vale a pena avaliar…

 

No passado isso era comum com os partidos derrotados - que se declaravam “vencedores”… -, com os clubes que não ganhavam o campeonato - e despejavam nos media a conversa habitual sobre os árbitros, a corrupção no futebol e o papel da Federação Portuguesa de Futebol - e com os desgraçados que não eram apurados para o Festival da Canção. Agora, o fenómeno domina a política.

 

O partido que perdeu acha que ganhou e faz por isso. O partido/coligação que ganhou (sabendo que foi uma vitória “poucochinha”…) vai governar, mesmo reconhecendo que não faz nada sozinho, o que é o mesmo que dizer que perdeu mas faz de conta que ganhou. Os partidos pequeninos gritam vitória como crianças no pátio da escola. Não ganharam nada. E depois há o Presidente, que esperávamos que estivesse acima disto tudo, mas alinha na brincadeira. Sabendo que está apenas a adiar um problema criado pelos números (de que tanto gosta, ironicamente…).

 

Resultado: como numa peça, assistimos à representação até ao fim. Sabemos que é ficção, e que daqui a pouco vamos novamente estar entre a parede e o abismo, votando para um qualquer mal menor. Nada de muito novo. Como espectadores passivos do espectáculo, mantemo-nos quietos. A ver no que dá.

 

O que mais impressão me faz é ver esse tal de Cavaco Silva interpretar o papel que não estava no guião original da peça: ser juiz num julgamento para o qual não foi chamado; dar palpites no lugar onde só se lhe pede arbitragem; e indicar caminhos, quando lhe pagamos para gerir semáforos.

 

Por mim, mais voto menos voto, dá igual: já percebi que a política é um teatro. De sombras e luzes. Confesso que só não esperava um Presidente a quem cabia o lugar, no limite, de “compére" (o actor que vai dando as deixas para o actor principal brilhar na revista…), mas a quem apetece ser primeira figura.

 

Está tudo trocado. Mas também é verdade que a revista à portuguesa só resta mesmo na política. Às tantas, trata-se de uma homenagem. Manhosa. Não podia Cavaco ficar-se por uma comenda ao Parque Mayer?

 

Coisas que me deixaram a pensar esta semana

 

A ideia do Museu de Arte Antiga de lançar uma campanha de angariação de fundos para comprar uma obra de arte é um achado e um momento de maturidade política e social. É a primeira vez que tal se faz em Portugal. A obra chama-se “Adoração dos Magos”, é uma pintura de Domingos Sequeira, e custa 600 mil euros. Numa operação que envolve entidades publicas e privadas, abre portas ao envolvimento de todos numa aquisição de peso. Vale a pena conhecer esta brilhante ideia aqui, no jornal “oficial” da campanha

 

Viver é cada vez mais fácil. A frase parece parva? Pois parece. Mas experimente acompanhar esta ideia, de que cito apenas o primeiro parágrafo, e verá que talvez tenha sentido: “Quatro casais de amigos norte-americanos decidiram que queriam morar juntos até a velhice. E qual foi a ideia? Construir uma vila somente para eles, toda sustentável, em um lugar chamado Llano Exit Strategy, composto por quatro cabanas de frente ao rio Llano, no Texas”…

 

Quem gosta de design, de capas de jornais e revistas que primam pela ousadia, originalidade, surpresa, ou capacidade de impressionar e motivar leitores, não deve deixar de passar os olhos pela Cover Junkie. Há cinco anos que o holandês Jaap Biemans, ex-director de arte da Volksrant Magazine, escolhe boas capas, reúne as mais clássicas, e junta um acervo precioso. Razão suplementar: a capa da primeira edição da renovada “Visão” teve direito a destaque no site. É quase como se fosse um prémio. Merecido.

 

 

publicado às 10:35

Cenários de apocalipse neste inverno a chegar

Por: Francisco Sena Santos

 

Já estamos em Portugal quase todos a ir ao roupeiro buscar as roupas mais aconchegadas para o inverno. O frio chega à Europa ao mesmo tempo que centenas de milhar de refugiados de guerra. São, só neste último mês, 250 mil que batem à porta. A maior parte foge da guerra civil que desde 2011 devasta a Síria – agora, também tentam escapar aos bombardeamentos da aviação russa. Para maior desgraça, abeiram-se da Europa num tempo em que muitos países europeus estão a barricar-se como resposta à insegurança e aos medos que sentem. É assim que tantos países estão a fechar as fronteiras, os olhos, os ouvidos e a carteira do dinheiro para a ajuda.

 

Nas eleições deste domingo na Polónia venceu, com maioria absoluta, um partido ultranacionalista, anti-europeu, anti-imigrantes. O presidente deste vencedor PiS, iniciais do partido que se define do Direito e da Justiça, alertou num comício na última semana de campanha para o perigo de epidemias que representaria a chegada maciça de refugiados. Chegou a dizer que a cólera está a propagar-se pelas ilhas gregas e que na Áustria se multiplicam casos de disenteria. Também que os refugiados são portadores de parasitas que podem ser perigosos.

 

A Polónia, com 38 milhões de habitantes, é uma fortaleza económica e motor do leste europeu. Os números da economia crescem imparáveis desde 1990. Enquanto a Europa mergulhou em 2009 em crise e recessão, a Polónia desse tempo apenas viu abrandar o seu crescimento económico. O PIB polaco cresceu mais de 40% entre 2004 e 2014. É um país em expansão económica, mas à custa de muito aperto e insatisfação: mão-de-obra muito barata e escassos direitos sociais. O terreno ficou assim fértil para o discurso do PiS, partido cuja identidade se define pelo “contra”: contra as ingerências externas, contra o federalismo europeu, contra a abertura liberal, contra o controlo da economia pelo capital estrangeiro.

A esquerda polaca apareceu nestas eleições com discurso pró-europeu e o resultado é não haver um só representante da esquerda no parlamento de Varsóvia. O politólogo Kasimierz Kik explica no Libération que “os polacos estão fartos da Europa“ e é também por isso que estão a recusar as quotas de refugiados impostas por Bruxelas. Ele especifica: “Para um polaco, um estrangeiro é antes de tudo o mais um ocupante, um invasor, seja russo ou seja alemão”. Traumas antigos.

O PiS prometeu na campanha novos impostos sobre a banca e as grandes cadeias de supermercados (quase tudo com origem no estrangeiro, designadamente em Portugal, neste caso com denúncias específicas), prometeu aumentar os apoios às famílias pobres com filhos, e também prometeu reinstalar a velha confiança no sistema de segurança social do Estado. Este discurso nacionalista e de conservadorismo social rendeu maioria absoluta. E enquadra o paradoxo polaco: um dos países da “Nova Europa” que mais beneficiaram em fundos financeiros com a adesão (em 2004) à União Europeia põe no poder um partido nacionalista e contra a Europa. A postura populista sobre os estrangeiros, inspirada na do húngaro Orbán, pretende fazer de Varsóvia uma nova Budapeste: muro e arame farpado da Europa cristã frente à “invasão muçulmana”.

É certo que no último domingo a liderança da União Europeia reagiu e impôs um plano de urgência – para acolhimento de 100 mil dos muitos mais refugiados em espera. O comando desta Europa que tanto se sobressalta com as questões económicas e financeiras e que não levantou a mão quando a Hungria se pôs a levantar um muro na fronteira com a Croácia para barrar o caminho aos refugiados, agora, finalmente, está impor medidas humanitárias, garante refúgio temporário, comida e assistência médica para proteger os homens, mulheres e crianças que, em desespero, fogem da guerra. Mas o consenso de agora é apenas sobre 100 mil. Muitos refugiados continuam barrados numa fronteira dos Balcãs, sem teto, a sentir o inverno entrar. O primeiro-ministro esloveno alertou neste domingo em Bruxelas para um cenário de apocalipse.

Voltamos ao agasalho para o inverno: sabemos como nos queixamos quando o frio, o vento e a chuva nos apanham desprevenidos na rua ainda com roupa de meia-estação. Como será para aquela gente em ambiente hostil, sem abrigos nem radiadores? Sei que há em Portugal quem reclame toda a prioridade para o apoio aos nacionais que precisam de ajuda. Sim, muita gente precisa de socorro. Mas, apesar de tudo, para quem está no seu país, sempre há redes de apoio, a começar pela família e a continuar em sistemas de solidariedade que traduzem o melhor de nós. Aliás, algumas dessas redes estão já mobilizadas para o apoio aos refugiados de guerra.

 

A ler nos jornais, a ver nos ecrãs

 

Luaty Beirão tem toda a razão: após 36 dias de greve da fome, “a vitória já aconteceu”.

 

Geração frustrada na África do Sul. A BBC mostra-nos a nova consciência negra mas sem o sonho que Mandela abriu.

 

Reviravolta política na Argentina? Ninguém previa um cenário assim renhido para a segunda volta presidencial. No SAPO JORNAIS podemos ver como a bolsa de Buenos Aires está otimista e dispara 17%.

 

Os tuk-tuks de Lisboa chegam ao The New York Times.

 

Como o Libération conta a integração da kizomba, do kuduro e do funaná na paisagem musical portuguesa.

 

"Things to do in Portugal": estas evasões com olhar canadiano.

publicado às 08:28

Uma escolha fácil

Por: António Costa

 

 Se o governo de Pedro Passos Coelho cair no Parlamento, Cavaco Silva vai ter de escolher entre um governo minoritário do PS com apoio dos partidos anti-europeus e um governo de gestão ou, no limite, de iniciativa presidencial. E, se nenhuma das opções impedirá eleições a curto prazo, a opção por um solução oficialmente provisória seria o caminho mais rápido para o abismo.

 

Cavaco Silva deixou a ameaça, sim, de que não daria posse a um governo com partidos anti-europeístas. E, por comparação, sublinhou os (maiores) riscos financeiros, económicos e sociais em relação a um governo minoritário da coligação. Nada mais certo, porque as posições do BE e do PCP não só põem em causa o que já foi feito, como são a garantia de que a economia portuguesa será menos competitiva, menos amiga dos negócios e do investimento, até do mérito. Mas o presidente tem a obrigação de saber que, pelas mesmas razões, um governo de gestão, necessariamente limitado nas suas ações e com um parlamento a legislar em sentido contrário por força da maioria negativa de Esquerda levaria o país para a quarta intervenção externa em quarenta anos de Democracia.

 

Sou dos que duvida da capacidade de António Costa para corrigir as contas do Estado e para fazer as reformas estruturais que aumentem o potencial da economia nacional, hoje uns limitados 1,5% ao ano, menos ainda quando tem de dar ao PCP o fim da caducidade dos contratos coletivos como já deu ao BE o fim do regime conciliatório nas rescisões laborais. Poderá até segurar o Governo para lá do orçamento de 2016, mas tudo ficará na mesma, ou pior. Mas não tenho dúvidas de que, mesmo com os cofres cheios, um governo de gestão estará não só impedido de tomar decisões para lá das que assegurem a gestão corrente do país, como será promotor involuntário do caos financeiro, primeiro, e económico e social, depois.

 

Um governo em gestão não tem o mais relevante dos instrumentos de política económica e financeira, um Orçamento do Estado, não pode cortar na despesa e, vá lá, uma vantagem, não pode aumentar impostos. É claro que o conceito de ‘atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos’ tem subjacente uma avaliação política e não jurídica. Mas como se ultrapassa isto quando o Parlamento tem uma maioria da oposição? Não ultrapassa. Portanto, qual défice abaixo dos 3%, qual dívida pública a cair e economia a crescer. Seria, será, tudo ao contrário.

 

Os empresários, economistas e gestores que têm mantido um silêncio medroso e comprometido com o anormal estado político do país sabem que um governo de gestão seria um desastre, pior do que um governo de Esquerda com o PCP e o BE. Por isso, sobre isto, vamos começar a ouvi-los. Pode ser que Cavaco os ouça também.

 

A não perder

 

Já no próximo sábado, mais um TEDxLisboa. Será na Aula Magna, e uma oportunidade para ouvir, e questionar dez oradores com dez temas, transversais à economia e à sociedade. Um exemplo? O empreendedor António Fernandes via falar sobre o design e a inovação. Prometo, para a semana, trazer aqui ao SAPO24 uma visão, a minha, desta iniciativa.

 

O capital, sabe-se, é coisa que não abunda, e não é só em Portugal. Na Irlanda, no pico da crise, e com uma intervenção externa, os pequenos negócios começaram a fechar, e o Governo decidiu criar um fundo de apoio ao microcrédito. Com um princípio, emprestar com risco. A história, com final feliz, está no jornal Público.

 

 

 

publicado às 10:50

Se queres conhecer realmente alguém, dá-lhe poder. Ou então tira-lho.

Por: Rute Sousa Vasco 

A seguir à comunicação ao país do Presidente da República fiz um radar rápido às opiniões verbalizadas em sites e redes sociais. Uns acharam péssimo, outros acharam extraordinário. Tudo normal, a esquerda ficou mais irritada, a direita ficou mais aliviada (e vice-versa também, por incrível que possa parecer). Política "as usual".

 

Até que os meus olhos pararam num comentário lido num mural onde um conjunto de pessoas elogiava o discurso de Cavaco Silva e sublinhava que agora, sim, Cavaco tinha voltado a ser ‘o seu presidente’. No meio dos elogios à qualidade do discurso e à forma como o presidente tinha posto António Costa na linha, deparo-me com um comentário que, concordando com a opinião expressa naquele mini-forum, fazia uma ressalva sobre Cavaco Silva: o facto de não lhe poder ser perdoada a decisão sobre a lei do aborto e o casamento homossexual. Pode parecer desajustado, mas foi exactamente aqui que eu parei.

 

Na minha perspectiva, esta é a verdadeira e porventura mais perigosa cisão do país, de qualquer país. Uma cisão pelos costumes, pelo modo de vida. É este o palco dos mais perigosos radicalismos, seja em Portugal, seja nos Estados Unidos, onde convivem as misturas mais explosivas. É também este o terreno fértil onde as religiões não muitas vezes instrumentalizadas e a crença em qualquer Deus se transforma rapidamente no direito em julgar os outros, obrigar os outros, castigar os outros. É o espaço do debate público mais importante – porque estes temas devem ser discutidos e pela discussão talvez nos salvemos desses mesmos extremismos.

 

O que também nos salva desses extremos é uma cola invisível feita por uma enorme maioria que está no meio, às vezes mais à esquerda, às vezes mais à direita, mas quase sempre a pender para o meio. É essa maioria, que tantas vezes nos aborrece na sua monotonia, que nos defende de ideias absolutistas de pessoas que acreditam que a sua visão do mundo se deve sobrepor a qualquer outra visão do mundo. Seja o tema o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o direito a possuir uma arma, assunto que inflama a política americana há décadas. Todas estas manifestações representam a mais pura matéria-prima humana. No seu dia a dia as pessoas não andam preocupadas com a história da democracia, a constitucionalidade das nomeações ou as fórmulas da governabilidade. No seu dia a dia, as pessoas andam preocupadas com a sua qualidade de vida, o seu futuro e … os valores em que acreditam. Foi pelos valores em que acreditam que muitos socialistas (e não socialistas) penalizaram António Costa. Pessoas para quem a forma como o líder do PS tomou o poder é mais grave do que discussões revivalistas sobre o PREC e a ameaça dos comunistas que comem criancinhas ao pequeno-almoço.

 

Os exemplos de proximidade entre a política e a religião, no sentido da crença fundamentalista, sucedem-se. Catarina Martins disse ontem na TVI que Cavaco Silva era ‘líder de seita’; na semana passada o MRPP, depois de ter acusado o seu líder histórico de “anticomunismo primário” (!), exigiu de Garcia Pereira uma das famosas ‘autocríticas’. Religioso, isto.

 

O Wall Street Journal publicou esta semana um artigo sobre um estudo apresentado no jornal de Social Neuroscience, da autoria de Mark Plitt do Baylor College of Medicine. O estudo demonstra que assumimos que as empresas e organizações são pessoas também. Ou seja, interpretamos as suas acções pela mesma lente com que avaliamos a acção de outro ser humano. Isto ajuda também a perceber a facilidade com que transferimos tantas vezes para os mercados, empresas, clubes de futebol, sentimentos e estados de espírito de cada um de nós – e a verdade é que encontramos um certo conforto nisso. Curiosamente, os neurocientistas sociais parecem encontrar provas de que mais facilmente nos ‘empatizamos’ com uma empresa ou instituição do que com um sem-abrigo – e nisso não há conforto algum.

 

Voltando ao discurso de Cavaco Silva, também aí regressámos aos medos sem rosto, mas ainda assim com estados de alma. São mercados, instituições europeias, investidores. Assustados, apreensivos, nervosos. Yanis Varoufakis, aquele cujo nome não se deve dizer para tantos que andam por aí, também falou disso na sua passagem por Portugal, diga-se. É, aliás, um exercício interessante comparar temas e visões de Cavaco e Varoufakis, o que pode ser feito aqui e aqui.

 

A degeneração das eleições de dia 4 de outubro numa luta de facções é um risco e um acto de irresponsabilidade para todos os que promovem esse desenrolar dos acontecimentos. Não é assim tão diferente das facções fundamentalistas que julgamos ser uma coisa do outro mundo, não do nosso, civilizado. Na génese, está uma mesma pulsão que devemos controlar, domesticar e que tem sido ao longo de séculos o legado de grandes estadistas.

 

Lembram-se da frase de de Abraham Lincoln? “Se quiser por à prova o carácter de um homem, dê-lhe poder.” Pensando na nossa situação política, também pode ser ao contrário. Se queremos conhecer realmente alguém, também podemos experimentar tirar-lhe poder. É essa a ameaça que António Costa sente e, na realidade, Cavaco Silva também.

 

Tenham um bom fim de semana.

 

Leituras sugeridas

 

Falando em fundamentalismos, há qualquer coisa nas praxes que me evoca o imaginário de comunidades religiosas, líderes espirituais e experiências libertadoras e de purificação. Exagero, eu sei. Mas há lá qualquer coisa. Seja como for, “Desobedecer à praxe” é um livro que chega agora às livrarias e que vale a pena espreitar.

 

A BBC descreve Robert Menard como alguém que foi “um jornalista, um socialista e um dos fundadores dos Repórteres Sem Fronteiras”. Há 18 meses venceu as eleições na cidade de Beziers, no sul de França, com o apoio da Frente Nacional de Marine Le Pen. E num ano e meio tornou Beziers num dos bastiões da extrema direita. Vale a pena ler esta história.

 

E depois há os milagres. Ou como seis mil mulheres indianas que todos os dias apanham chá se uniram para fazer face a uma multinacional e ganharam. Pempilai Orumai.

 

publicado às 11:09

Cartas na mesa

Por: Pedro Rolo Duarte

 

 Nós cumprimos o nosso papel (falo por mim, claro, e pelos que foram até às câmaras eleitorais): votámos no dia 4 de Outubro. Depois, coube àqueles senhores entenderem-se sobre a melhor forma de continuar a delapidar o país e a dar-nos cabo da paciência… Pelos vistos, não chegam a qualquer acordo, ainda que a esquerda esteja toda na cozinha, a temperar os sapos que se prepara para engolir, e a pensar no que vai poder dizer que explique como se conciliam as Europas do PS, do Bloco e do PC, as moedas de cada um (para não falar da Nato, da Banca, das privatizações)…

 

…Na verdade, a partir de certa altura torna-se penoso ouvir os noticiários e aquele ping-pong de acusações, birras, fitas, falsas boas intenções, facadinhas aqui e ali. Incomoda. Magoa. Deprime. Ninguém quer assistir a uma putativa luta de galos praticada por frangos em capoeira a céu aberto. Por mim, dispenso. Também dispensava o triste espectáculo de ver o PS, o BE e a CDU virarem, sem apelo nem agravo, as costas aos seus eleitores - mas isso teremos tempo para aferir nos próximos dias…

 

Procuro, de alguma maneira, qualquer coisa de positivo no desenrolar dos factos. Curiosamente, encontro: eles escrevem-se! Pedro Passos Coelho e António Costa escreveram cartas um ao outro. Já ninguém o faz! Parecem namorados em dia de arrufo…

 

Por instantes, consigo achar o momento politico vagamente didáctico: eles dão o exemplo à geração dos mails, das sms, dos chats, dos “likes”, e dedicam-se à arte nobre da escrita. Como se tratarão? Meu Caro Pedro? Querido António? Estimado Paulo? Ou mais secamente “Caro derrotado”? Ou “Vencedor sem maioria”?

 

A imprensa não nos revela o essencial deste momento epistolar: as cartas foram escritas à mão ou no computador? Entregues pessoalmente, enviadas por correio azul ou correio normal? Terão “k” em vez de “que” e “ctg ñ kero nda” em vez de “contigo nem morto me alio”?

 

Seria importante, se foram entregues em mão, saber quem as levou - pois, como a História nos ensina, em geral o mensageiro acaba morto (e a CMTV quer dar em directo, claro). Os pormenores sobre o tipo de papel usado e os envelopes também ganham relevância neste raciocínio - afinal, é bem diferente uma carta escrita à mão, caneta de tinta permanente, num sólido papel “conqueror”, ou uma folheca de 75 gramas impressa numa clássica jacto de tinta.

 

Confesso: além de deprimido, sinto-me desinformado. Por um lado, sei que os senhores trocaram cartas, facto que me apraz registar e elogiar, pelo que tem de pedagógico e respeitador de tradições que me são caras. Por outro, como não sei de que cartas falamos - do formato ao estilo -, receio que, uma vez mais, estejamos a ser enganados. E aquilo a que chamam cartas sejam afinal SMS com smiles ou os mais banais mails (cheios de “cc” para que nada escape aos jornais e ao Sr. Presidente).

 

Ou seja: ainda antes de governarem, uns ou outros, todos desdizendo o que antes disseram, cheira-me que já nos estão a enganar. Ou se calhar nunca deixaram de estar. Por escrito ou oralmente.

 

Coisas que me deixaram a pensar esta semana

 

A Majora pertence à minha infância, ao meu imaginário, e à ideia de tempos livres bem passados entre amigos e familia. Por isso, gostei de saber que Catarina Jervell é a nova diretora geral da empresa, que os jogos de tabuleiro não vão desaparecer do mercado e que, se tudo correr bem, a Majora daqui a um ano pode facturar um milhão de euros.

  

Costumo dizer que o segundo café matinal de cada dia, depois do verdadeiro, é a crónica diária do meu amigo Miguel Esteves Cardoso no Público. Como todas as crónicas diárias (e ele escreve sem interrupção de domingo a domingo…), não pode ser sempre genial - mas o Miguel consegue que seja sempre interessante, pela revelação, pelo conselho, ou pelo pensamento. Esta, da semana que passou, ficou-me atravessada e é daquelas que só mesmo o Miguel, que há tantos anos conheço e amo, podia escrever. Termina assim: “Pensar só uma vez pode ser a solução parcial do sofrimento que sentimos. O melhor é sentir e seguir em frente.” Mas vale a pena lê-la toda…

  

A linguagem muda todos os dias. Nascem palavras, expressões, rótulos, e é cada vez mais difícil acompanhar esta voragem que leva a que a moda de hoje seja nostalgia amanhã. Uma das boas maneiras é seguir este dicionário desinteressado da linguagem urbana. Cuidado, às vezes o palavrão ferve… Mas aprendemos!

 

 

publicado às 09:47

O que não vai acontecer

Por: Paulo Ferreira

Que governo vamos ter daqui a um mês? Quem vai ser o primeiro-ministro? Vamos ter Orçamento do Estado aprovado para entrar em vigor no dia 1 de Janeiro? Há alturas em que a imprevisibilidade reina. Este é um desses tempos. No momento em que escrevo não sei o que vai o Presidente da República fazer em relação ao próximo governo. Será António Costa com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista? Ou será Passos Coelho, com uma espada sobre a cabeça?

Estes são momentos em que não sabemos o que vai acontecer. Mas conseguimos apostar no que não vai acontecer.

 

Não vamos ter um governo estável. Esta é fácil. Só um entendimento sério e comprometido para a legislatura entre PSD/CDS e o PS conseguiria dar ao país uma perspectiva de estabilidade governativa. António Costa optou por outro caminho para ser primeiro-ministro e tentar levar os socialistrs ao poder, única forma de continuar a liderar o partido após a derrota nas eleições que não podia perder. Seja qual for a solução que resulte da charada política que temos pela frente, será sempre uma solução fraca. Se for a coligação a governar, é Pedro Passos Coelho quem tem o seguro de vida do cargo nas mãos de António Costa. Se for António Costa a governar, estará sempre refém do BE e do PCP. Esperar destes dois partidos um apoio firme a um governo que tem de fazer e cumprir orçamentos rigorosos durante toda a legislatura é esperar que eles neguem a sua razão de ser. A governação vai ser feita dia a dia, lei a lei, medida a medida. Sempre com a corda na garganta e eleições à espreita.

 

Não vai haver reformas estruturais. Governos fortes e com apoio maioritário de um só partido não gostam de reformar. Governos fracos não podem reformar. Fazer reformas é incomodar muita gente. É alterar práticas de décadas. É combater interesses instalados à mesa do orçamento. É comprar guerras permanentes, ter protestos na rua e greves frequentes. Nada que passe pela cabeça de um primeiro-ministro que a tem a prémio de forma permanente. De uma forma ou de outra teremos um governo que será pouco mais do que um governo de gestão para tratar do expediente mínimo.

 

A Segurança Social não vai ser reformada. Alcançar a sustentabilidade implica mexer nos benefícios - que têm que ser menores - e nas contribuições - que têm que ser maiores. Medidas duras e impopulares, como se sabe. A urgência demográfica e económica não vai dar tréguas, à espera que os políticos se entendam. Podem aparecer mais alguns remendos, mas que não serão mais do que isso.

 

As condições de competitividade da economia não vão melhorar. Cá dentro temos instabilidade, incerteza, imprevisibilidade e políticas erráticas. O que vai acontecer ao IRC? E às leis laborais? E às taxas de juro? E ao ambiente regulatório? Ninguém sabe. Lá fora temos economias em desaceleração e focos de instabilidade política em vários mercados importantes - Angola, Brasil, China. A Alemanha espirra e a Europa pode constipar-se de novo. Portanto, teremos mercados a definhar e menos capacidade para os atacar. O resultado não pode ser bom.

 

As contas públicas não vão chegar ao equilibrio. A dívida pública só começa a descer de forma sustentada quando deixarmos de fazer défices anuais. Isto não é economia nem política: é aritmética. Governos fracos (ver primeiro ponto) não conseguem equilibrar contas. Se conseguirmos manter o défice abaixo dos 3% do Tratado Orçamental já será um milagre. Défice próximo de zero? Não acreditamos no Pai Natal, pois não?

 

O próximo Presidente da República não vai ter vida fácil. É possível que o próximo Presidente tome posse com uma tarefa importante na agenda: resolver se leva ou não o país para eleições assim que os prazos constitucionais o permitam. Será certamente preciso mais do que a tradicional “magistratura de influência”. Vai ser necessário arregaçar as mangas e meter “as mãos na massa”, decidir, fazer opções em vez de esperar que alguém as faça por ele (ou ela). Ao mesmo tempo, será fundamental que o próximo inquilino de Belém seja uma referência de estabilidade, de seriedade e de traquilidade no ambiente revolto que se antevê à sua volta. Não é coisa pouca.

 

Mudanças (também) lá fora

 

Não confundir estes “liberais” com os do lado de cá do Atlântico. Lá, nas Américas, os liberais são os dos costumes, os de esquerda. Foi nestes que o Canadá votou. Vale a pena conhecer a agenda de Justin Trudeau.

 

Se a Apple avisa é porque alguma coisa vai acontecer. Agora é na indústria automóvel.

publicado às 01:05

Agora, é preciso governar

Por: António Costa

 

 A coligação ganhou as eleições, o PS perdeu. É este o ponto de partida que precisa de ser aceite por todos – e pelos vistos nem todos o aceitam – para ser possível a formação de um governo que tem de ter no Parlamento as condições de governabilidade equiparadas àquelas que os portugueses lhe deram nos votos. Para garantir que o novo governo acaba o que o anterior começou.

 

Nesta campanha eleitoral, falou-se muito de promessas – António Costa, então, prometeu tudo a todos – e falou-se pouco ou mesmo nada das reformas estruturais que o país continua por fazer, a começar pela do Estado que ficou na gaveta de Portas.

 

Hoje, com uma vitória clara da coligação - os portugueses, afinal, aprenderam mesmo a lição - é preciso ultrapassar a discussão partidária. A não-demissão de António Costa e as vitórias morais dos que reclamaram uma maioria de esquerda, ao género do golpe de Estado parlamentar, não ajudam a focar o país naquilo que, a partir de agora, é preciso pôr na agenda das prioridades. Ainda ontem, antes do discurso de não-derrota de Costa, os cenários estrambólicos em cima da mesa davam para tudo, e antecipavam o caos.

 

O Governo vai ter de aprender a negociar mais do que aquilo que fez nos últimos quatro anos, Passos vai ter de mostrar a habilidade política que demonstrou a negociar com Portas nas negociações e nos compromissos com a oposição, leia-se, com o PS. Com António Costa, que perdeu uma oportunidade para sair com dignidade e agora vai embrulhar-se em guerras internas imprevisíveis.

 

Da confusão do discurso final de Costa – uma síntese da confusão que foi a sua própria campanha – só se salvou a ideia de que o PS não estará disponível para assaltar o poder a todo o custo, para fazer alianças com aqueles que não querem o regime político e económico e social em que vivemos. Do mal, o menos. Seria o desastre para o PS, a sua ‘pasokização’, mas seria ainda pior para o país. E isso permitiu também olhar para o dia seguinte com uma ideia de maior estabilidade face àquela que se temia. Ou de menor instabilidade. Pelo menos, a coligação tem um prazo de validade até ao orçamento de 2017. Depois, logo se verá.

 

O Governo tem agora de tomar posse, primeiro, levar o seu programa ao Parlamento, depois, e garantir que fecha o ano de 2015 com um défice inferior a 3%. Uma condição essencial para, logo depois, apresentar o primeiro orçamento da nova legislatura. Os mercados, isto é, os investidores, estão aí, estão a olhar para o que o novo Governo, e o novo Parlamento, vai fazer. A olhar para o défice e para a dívida pública, que resistem, para a estabilidade do sistema financeiro, que continua periclitante, para a competitividade, que tarda. E nós continuamos a precisar deles.

 

E hoje é dia 5 de Outubro, dia da República, um dia que não vai contar com o seu máximo representante, o Presidente. Cavaco Silva diz que precisa de pensar, os portugueses também já estão a pensar, mas no próximo inquilino em Belém. Quem pode ser? A sondagem da TVI/TSF e Público dão a vitória esmagadora a Marcelo Rebelo de Sousa. Mas o 5 de Outubro é do povo, e pode ser acompanhado aqui, em 24.sapo.pt.

 

 

publicado às 09:48

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