Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Glória ao persistente trabalho quotidiano de jornalistas

Por: Francisco Sena Santos

 

Martin Baron tomou posse do cargo de editor do Boston Globe em 2 de junho de 2001. Nesse mesmo dia, este jornalista então com 47 anos de idade e 25 de ofício, reuniu-se, primeiro, com toda a equipa do jornal e, logo a seguir, com cada uma das editorias da redação. O Boston Globe tinha a funcionar desde os anos 70 uma equipa de investigação composta por meia dúzia de jornalistas cuja tarefa era a de, pacientemente, em dedicação exclusiva, procurar e investigar histórias complexas e delicadas que estivessem escondidas. A equipa foi batizada com um nome que corresponde à função de holofote jornalístico: Spotlight.

 

O editor Martin Baron – ele é conhecido por Marty – tinha chegado a Boston, ido de Miami, na véspera da entrada no Globe, e nas breves consultas prévias ouviu falar de um assunto que os poderes julgavam intocável na muito católica Boston: uns escondidos acordos extra-judiciais com as vítimas de abusos pedófilos praticados por um padre ao longo de três décadas. Na reunião com o grupo Spotlight, Marty propôs que a equipa tratasse de explorar esse caso. Alguém argumentou que isso seria entrar em terrenos proibidos numa cidade onde toda a gente se conhece – Boston passa por ser a maior das pequenas cidades da América – e onde a Igreja Católica é uma instituição toda poderosa.

 

Cada cidade americana tem uma arquidiocese forte e um jornal influente. A tradição ditava que uma instituição, como também é o Boston Globe, não beliscaria qualquer das outras, sobretudo a venerada Igreja Católica, encabeçada em Boston pelo cardeal Bernard Law. Mas Marty insistiu. Contou pormenores da experiência que tinha tido no Miami Herald, na condução da delicada investigação sobre o caso da batalha pela custódia de Elian Gonzalez, um “niño balsero” sobrevivente: ele tinha seis anos de idade quando a barcaça de alumínio em que viajava desde Cuba, juntamente com a mãe e outros dez imigrantes, naufragou já perto da costa dos Estados Unidos. Elián, que foi levado de Havana sem autorização do pai, foi o único sobrevivente, agarrado durante vários dias a um pneumático à deriva no Estreito da Flórida. Foi resgatado por dois pescadores de Miami, e seguiu-se uma batalha legal de sete meses, com inúmeras manipulações, sobre o destino da criança, um caso que chegou ao Congresso em Washington. Marty invocou pormenores desta investigação para incitar a que os repórteres da equipa Spotlight explorassem o caso da pedofilia em volta do altar em Boston.

 

A pesquisa, árdua, determinada, paciente, fora do foco dos holofotes, começou naquele dia 2 de junho de 2001, o ano do 11 de setembro. A equipa de repórteres da unidade Spotlight na redacção do Boston Globe começou a analisar milhares de páginas nos arquivos, a cruzar informação e a preparar e colocar perguntas. Poucas semanas depois, a equipa Spotlight já tinha testemunhos que furavam o muro de silêncio comprometido de vítimas sexualmente abusadas e que apontavam nomes de malditos pederastas.

 

A investigação recolheu testemunhos que reforçavam a convicção, mas faltava a prova de que o topo da arquidiocese encobria o sistema. Ao fim de cinco meses de investigação, a equipa Spotlight tinha matéria de sobra para revelar abusos cometidos dentro da igreja. Havia então certezas sobre a pederastia de treze padres e mais 65 sob suspeita, mas faltavam provas firmes de que o arcebispo sabia de tudo e encobria. Daí que o editor da equipa Spotlight tenha travado a publicação até que a investigação reunisse provas irrefutáveis sobre o encobrimento. A pesquisa continuou, persistente. Por fim teve acesso a cartas de denúncia remetidas ao longo de anos ao cardeal de Boston por familiares de crianças abusadas. Era a prova procurada.

 

Assim, finalmente, em 6 de janeiro de 2002 o Boston Globe abriu as explosivas revelações, com a notícia a que todos se esquivavam, de que a igreja de Boston, envolvendo três cardeais e vários bispos, encobriu os abusos sexuais de crianças por padres, ao longo de 34 anos. A partir desta primeira notícia as revelações sucederam-se em catadupa.  Ao longo desse ano de 2002 o Boston Globe publicou cerca de 600 histórias nos quais mostrou o que aconteceu ao longo de três décadas de encobrimento generalizado.

 

Com base num longo trabalho de escavação jornalística, com análise de documentos, dezenas de entrevistas e confrontos com advogados, hierarquia da igreja e influentes locais, com o decisivo contributo do testemunho de vítimas, de um advogado valente e de um sacerdote marginalizado, a equipa Spotlight demonstrou a prática recorrente de abusos sexuais por parte de 70 padres. Também revelou como as coisas decorriam quando as denúncias das famílias de rapazes abusados (o perfil era quase sempre o mesmo, famílias pobres, pais ausentes) chegavam ao cardeal Law: a arquidiocese de Boston comprava o silêncio dos queixosos e afastava o sacerdote da paróquia, com o pretexto de baixa médica.  

 

Em Setembro desse ano de 2002 o cardeal Law resignou e deixou Boston, recolheu à reserva no Vaticano. Em abril de 2003, esta série de reportagens da equipa Spotlight do Boston Globe foi distinguida com o mais prestigiado prémio americano de jornalismo, o Pulitzer, na categoria Serviço Público. A partir de então foram documentados e denunciados casos de abusos de sacerdotes da Igreja Católica em 105 cidades americanas. Os males do sistema ficaram postos a nu.

 

Há várias lições no conjunto destas histórias: uma, a de que, neste caso, terá sido decisiva a liderança de alguém de fora (Marty Baron, nascido e criado na Flórida, longe de Boston)  para ousar confrontar os poderes fortes da cidade, e fazer o jornalismo mergulhar na investigação da história que não ousavam destapar. Outra lição fundamental, a da paciência ao serviço do rigor: a editoria do Boston Globe teve a inteligência – e o instinto - de persistir na investigação cara de um caso que implicou colocar cinco jornalistas a não fazer outra coisa ao longo de seis meses e sem publicar uma linha que fosse ao longo desses seis meses. Poderia ter cedido à tentação de noticiar suspeitas avulsas mas ainda sem enquadramento verificado, como tantas vezes acontece em Portugal. Prevaleceu a persistência na pesquisa e a intransigência no rigor, a par do dever ético e moral. É um guia prático para o ofício de jornalista. É um triunfo do trabalho do jornalismo e dos direitos civis.

 

Em 2015, esta história protagonizada pela equipa Spotlight do Boston Globe passou a filme, realizado por Tom McCarthy, e agora nos ecrãs. O filme é a reprodução, com a secura da realidade, sem romanticismos nem outros exageros, de uma investigação em busca da verdade dos factos. Todos seguimos a épica cinematográfica de Hollywood, com filmes como O Quarto Poder (1952), Os Homens do Presidente (1976) ou Boa Noite e Boa Sorte (2005). Em Spotlight, não há heróis. O que se celebra é a glória do esforço persistente no trabalho quotidiano de procura da verdade dos factos. Na noite dos Óscares, no próximo dia 28, Marty Baron vai provavelmente estar na plateia do Dolby Kodak Theatre, no Hollywood Boulevard, em Los Angeles, perto da equipa que fez o filme Spotlight para celebrarem esta vitória do sentido do dever. Desde o final de 2012, Marty já não está no Boston Globe.

 

Em 2 de janeiro de 2013 Marty Baron assumiu a liderança editorial do Washington Post, o terceiro maior diário dos EUA – a seguir ao New York Times e ao Wall Street Journal. Fez aposta na edição digital do jornal nesse ano comprado por Jeff Bezos, patrão da Amazon, à mítica família Graham de patrões tradicionais de imprensa. Em outubro passado, o Washington Post passou ao primeiro lugar das visitas online a jornais nos EUA. No Boston Globe, a equipa Spotlight continua a ser cultivada, renovada. São boas notícias.

 

Também a ter em conta

 

A escolha presidencial nos Estados Unidos arrancou no Iowa com várias indicações: nos democratas, Hillary aparece vulnerável, está longe de ter a eleição garantida; nos republicanos, Trump é mesmo uma figura passageira, Ted Cruz impôs-se com o fervor do voto evangélico e da direita cristã mas há que contar com Marco Rubio.

 

Em Espanha, seis semanas depois das eleições subsiste a incerteza: o socialista Sanchez vai conseguir formar governo (numa solução "à portuguesa") ou o rei opta por novas eleições?

 

Passa a faltar-nos José António Salvador. Recomendava os bons vinhos e contava boas histórias.

 

O alerta geral contra o Zika marca as primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO Jornais: esta e esta.E também nesta.

publicado às 09:38

"People Have the Power". E temos um problema Le Pen para tratar

Por: Francisco Sena Santos

 

Marine Le Pen está lançada para daqui a 16 meses ser eleita presidente da República francesa? Este cenário perturbador pelo veneno xenófobo e pelo retrocesso civilizacional populista e autoritário que representa não é o mais provável, mas pode ainda impor-se como realidade e, a ser assim, dar um safanão fatal ao que resta do ideal solidário e multicultural da União Europeia.

 

 

O eleitorado francês, exasperado com os dirigentes políticos do costume, gente - de Sarkozy a Hollande, passando por vários outros - que lhe cobra sempre mais impostos mas é impotente para resolver problemas essenciais da vida, está puxado para as direitas e dividido em três fatias cujo peso é semelhante: as esquerdas (o PS de Hollande e diversos pequenos partidos), a direita (os republicanos de Sarkozy cuja liderança também é disputada por Juppé e Fillon) e a extrema-direita (a Frente Nacional do clã Le Pen). Aliás, até o mapa territorial da França também está dividido em três equivalentes faixas verticais, tal como na bandeira: a parte atlântica ocidental, de Hendaia e Bordéus a Rennes e Brest é socialista, o meio vota na direita tradicional e a França do lado leste, de Lille e Calais, a norte, Marselha e Nice, no sul mediterrânico, virou-se para a Frente Nacional (FN).

 

Muita esquerda francesa vê a FN como um partido fascista. Jean Marie Le Pen, fundador, em 1972, da FN tinha no centro do seu programa a ideologia fascista e a nostalgia da França colonial. Chegou a 22% dos votos na eleição presidencial de 2002, quando a esquerda se sentiu obrigada a votar Chirac para barrar o risco de Le Pen na presidência da República.

 

A FN evoluiu como partido comandado por um clã familiar e já mete três gerações Le Pen: para além de Jean Marie, Marine que é a filha, e Marion, a neta de Jean Marie e sobrinha de Marine. Ambas cultivam o extremismo de direita com rosto feminino, mas corrigiram o rumo traçado pelo velho Le Pen: a ideologia com etiqueta de fascista evoluiu para a opção ultranacionalista com discurso ferozmente anti-sistema. Marine, em 2011, fez-se eleger para suceder ao pai na liderança da FN. Apontou para a conquista do poder com um projeto social e uma conceção identitária que tinha desaparecido das elites políticas francesas. Para tornar clara a distanciação das ideias mais odiosas do pai abriu-lhe guerra e expulsou-o da FN por causa de declarações anti-semitas.

 

A liderança de Marine Le Pen explora a incapacidade das elites políticas para evitar a desagregação social e económica que mina a sociedade francesa. Cultiva a angústia de uma nação que se julgava farol do mundo e que agora sente ter deixado de iluminar. Denuncia com impacto a exclusão que cresce nas periferias urbanas e as reformas sucessivamente falhadas. Coloca-se como a porta-voz dos desprotegidos pelo sistema e é assim que capta muito voto operário. Também muitos eleitores com menos de 35 anos, poucos estudos e nenhum emprego. Atrai para o seu discurso os que estão perdedores com a globalização. Usa a crise financeira para fustigar a eurocracia e denunciar os malefícios do euro. Aproveita a crise dos refugiados para reclamar o fecho de fronteiras.

 

Tal como praticava o pai, Marine Le Pen usa os medos como carburante eleitoral da FN. A barbárie jiadista da noite de 13 de novembro foi para o clã Le Pen um bingo: serviu-lhe para inflamar o discurso de rejeição da Europa multicultural e estigmatização do “outro”, no caso os muçulmanos. Explora o “nós” contra os “outros” e reclama um Estado forte, protetor, com autoridade. Apresenta-se como a dirigente política que não trai o povo.

 

É com este discurso que a FN saiu das eleições deste domingo como o partido mais votado em seis das 13 grandes regiões que formam o território francês e em posição de força para garantir, com duas Le Pen, no próximo domingo o governo de pelo menos duas das regiões: a tia Marine no Norte-Pas de Calais-Picardia, região com tradição operária na França que faz fronteira com a Bélgica, e a sobrinha Marion (faz 26 anos depois de amanhã) a governar a Provença-Alpes-Côte d’ Azur, a França de Cannes e Saint-Tropez, Nice e Marselha, Arles e Orange.

 

Até aqui, a ausência de responsabilidades governativas reforçou consideravelmente a eficácia do discurso populista da FN. E agora? Para já, provavelmente, a prova da gestão do poder. Depois, a presidência da República, com eleição em abril de 2017, é a ambição seguinte para Marine Le Pen. Na eleição de 2012, Hollande (10 milhões de votos na primeira volta, 18 milhões na segunda) bateu Sarkozy por um milhão e 200 mil votos. No aquecimento para a eleição presidencial de 2017, este retornado Sarkozy não está a conseguir galvanizar a direita e parece indiscutível que não vai buscar um só voto às esquerdas, portanto parece condenado a voltar a perder. O socialista Hollande cresceu nas últimas semanas como homem de Estado, mesmo assim está muito longe de 50% do eleitorado francês – mas no dia decisivo poderá receber votos centristas caso a finalíssima seja, como é previsível, com a líder da Frente Nacional.

 

Marine Le Pen tem uma base de 30% do eleitorado e mostra habilidade para conquistar votos em todas as áreas do descontentamento com o sistema, o que a coloca no tal cenário de possibilidade de eleição. É nesta triangulação que Alain Juppé, um centrista com simpatias no centro-esquerda, talvez seja o adversário mais temido por Marine Le Pen. Porque o moderado, afável e experiente Juppé terá a adesão da direita tradicional e captará o voto útil da esquerda para evitar o cenário de Marine Le Pen, presidente da República francesa. O voto da França vai decidir daqui a 16 meses. A aspirante que se declara inspirada pela heroína Joana d’ Arc não é favorita mas convém não estarmos desprevenidos para a hipótese.

 

Também a ter em conta:

 

Os EUA também têm em campanha eleitoral uma agressiva versão americana de Le Pen a explorar os medos: o republicano Donald Trump quer fechar a porta dos Estados Unidos a toda imigração muçulmana.

 

Há já 95 anos, desde 1920, que o New York Times não usava a sua poderosa primeira página para, com evidência gráfica, através de um editorial, tomar posição sobre uma questão crucial. Fê-lo no passado sábado, depois de uma nova matança (San Bernardino), com o texto que tem por título “A epidemia das armas”, em que dá máxima expressão “à frustração e angústia” pela incapacidade dos EUA para enfrentar a praga das armas que qualquer pessoa pode ter e que matam com eficiência brutal. A necessária limitação de acesso é um muro que a melhor América continua a não conseguir derrubar.

 

A vitória eleitoral da oposição na Venezuela promete devolver os direitos civis aos que têm sido injustamente perseguidos por motivo político. O “chavismo” tem os dias contados?

 

People Have the Power cantado em uníssono, ontem à noite em Bercy. Os Eagles of Death Metal voltaram a um palco de Paris, três semanas depois da matança no Bataclan, agora ao lado dos U2. Com uma mensagem de futuro proclamada por Bono: “L’ amour, plus fort que la peur”.

 

Ele está sempre na primeira página do As e da Marca que todos os dias podemos encontrar no SAPO JORNAIS.

publicado às 09:07

E agora?

Por: Francisco Sena Santos

 

Tivemos a confirmação de que agora os terroristas matam também em Paris tal como fazem em Bagdad ou em Beirute. Já tinham atacado em Londres e em Copenhaga, como em Ankara ou em Tunes.

 

 

Os jihadistas que executaram, com máxima crueldade, demoradamente, a sangue frio, a carnificina no Bataclan e em outros cinco lugares na noite de barbárie em Paris, gritavam Allahu Akbar, literalmente Deus é Grande em árabe. São guerreiros kamikaze pela expansão de um califado que invoca abusivamente uma religião que nada tem de terrorista. Estes fanáticos que manipulam a religião como ideologia querem fazer vergar e submeter o mundo tolerante que é o nosso e que eles consideram de pecaminosos infiéis.

A motivação destes matadores é certamente a mesma dos que na véspera, em dois atentados, tinha causado a morte de 41 pessoas e ferimentos em mais de 200, em Beirute.

Também a dos assassinos que há dois sábados fizeram abater no Sinai egípcio um Airbus russo com 224 pessoas a bordo.

Ou a dos bombistas que há cinco sábados mataram 99 pessoas frente à gare ferroviária de Ankara.

É o mesmo terrorismo que em 26 de junho matou 38 turistas na praia de Sousse e que em 18 de março também levou 24 vidas no museu do Bardo em Tunes, estes dois ataques na Tunísia.

 

Estes são apenas alguns dos infames atentados que marcam este ano que começou com o ataque em 7 de janeiro ao Charlie-Hebdo. Aqui, o alvo eram os valores da França: a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Alvo específico: a liberdade de expressão, a liberdade de denunciar pelo riso quem cultiva a intolerância. Já tinha sido um ato de guerra que nos fez a quase todos proclamarmos que também somos Charlie.

 

Agora, a frente de guerra amplia o seu alvo: todos passamos a estar na linha de mira desta barbárie. Os massacrados nesta noite de novembro em Paris são sobretudo rapazes e raparigas, jovens que tinham procurado o prazer de uma noite a ouvir música numa célebre sala de espetáculos de Paris, são os também jovens que petiscavam na esplanada de uma pizaria e os não tão jovens clientes de um restaurante asiático na zona da République, uma praça parisiense muito associada a manifestações pela liberdade. Eles tinham saído na noite que parecia amena desta sexta-feira para viver, beber e cantar. De facto, não imaginavam que lhes tinham declarado guerra.

Os passageiros do avião russo abatido há duas semanas no Sinai eram, a maioria, cidadãos russos de São Petersburgo que tinham ido em férias em Charm Al-Cheikh, praia no mar Vermelho.

 

Há um ponto comum a estas duas matanças nas últimas duas semanas: tanto a França como a Rússia iniciaram no final de setembro raids de bombardeamento sobre abrigos e campos de treino, na Síria, dos terroristas que pretendem devastar o Ocidente. Estamos em guerra e o campo de batalha não é apenas nos terrenos do Médio Oriente onde, com fatal precipitação, as potências ocidentais patrocinaram os ditadores em funções. Obviamente, eles mereciam ser combatidos, mas era preciso assegurar que a alternativa não seria uma terra de outros gangues ainda mais nocivos.

Este jihadismo do auto-proclamado califado islâmico está a ocupar esse espaço e tem sabido catequisar e converter jovens europeus para a sua guerra santa contra o Satã ocidental. Ou seja, o inimigo nem precisou de cavalos de Tróia para se infiltrar dentro da Europa. O inimigo nesta guerra também já está dentro da Europa, com passaporte europeu. Quantos serão os jihadistas nascidos, crescidos e residentes em França, à espera de serem ativados para o combate e prontos para o sacrifício em nome do que consideram ser a vontade de um deus? Muitos deles são jovens de segundas e terceiras gerações, descendentes de imigrantes chegados no século passado de África e do Médio Oriente. Tornaram-se combatentes ao serviço da causa terrorista e estão dentro da casa europeia.

 

E agora? Esta é a pergunta que costumava colocar Paulo Cunha e Silva ao juntar gente de múltiplas origens e saberes a quem desafiava para construir pontes que fizessem avançar soluções. Os líderes das maiores potências mundiais reúnem-se em cimeira G-20 este domingo em Antalya, na Turquia, com uma agenda que vai da economia ao clima, mas passando muito pela crise dos refugiados (tantos, tantos em espera de desesperar, da Turquia aos Balcãs, passando pelas ilhas gregas) e a guerra contra o terrorismo. Vão ter de pensar nas duas frentes desta guerra: a que está na Síria e no Iraque e a que está a avançar na Europa. Sendo que, frente ao ódio, importa que triunfe a liberdade, o que implica unidade, clareza e democracia. Os valores da França, liberdade, igualdade e fraternidade são a referência. Os ataques em Paris são ataques à liberdade, ao nosso modo de vida, são ataques a todos nós. Têm por alvo a alma da nossa sociedade.  Apetece clamar Je Suis Français e colocarmo-nos mobilizados ao lado dos cidadãos de um país que nos habituámos a sentir terra de asilo.

publicado às 09:54

Há duas Merkel? E o que nos falta

Por: Francisco Sena Santos

 

Alguém dá conta por aí de algum dirigente que seja capaz de nos mobilizar para sonharmos, com bases consistentes, com um futuro comum exaltante? Alguém capaz de conduzir, com convicção, um pacto de confiança entre a liderança política e a cidadania?

 

 

Vivemos os últimos anos em torno de um tríptico: "crise, austeridade, sacrifício". Sabemos que estava muita coisa mal e que era preciso emendar. Mas as opções de austeridade adotadas como remédio só serviram para reforçar a desconfiança dos cidadãos nas instituições internacionais e nos dirigentes políticos em funções. Todos sentimos que os Estados fragilizados se tornaram reféns do sistema financeiro. A boa saúde de um país deixou de ser medida pela sua força criativa e pela robustez da sua justiça social e solidariedade. Passou a ser medida pelos indicadores da economia, o défice, a dívida, a balança comercial. Os números em vez de as pessoas. 

 

Estou entre os que rogaram pragas ao modo de austeridade que teve como locomotiva a chanceler Merkel. Mas há que reconhecer que, com a crise dos refugiados que tentam avançar a pé para dentro da Europa, Merkel mostrou ser líder com estatura. Proclamou "vamos cuidar deles", e a força principal da Alemanha, aparelho de estado e cidadãos, uniu-se para transformar o verbo em ação. A política alemã, nesta crise dos refugiados, está a funcionar como modelo de solidariedade, aliás, como nenhuma outra na Europa - alguns países, como a Hungria, com dirigentes de mediocridade moral, enfurecem-nos e envergonham-nos como europeus, perante imagens que relembram um passado abominável. Mas também é facto que a Alemanha tem a puxar por ela a prosperidade económica e a baixa demografia.

 

Habituámo-nos a olhar com desconfiança para os litígios, os ritos e as palavras vazias dos políticos. Nunca me passou pela cabeça que viesse um dia a pensar que Merkel também pode ser uma referência moral, uma líder capaz de impulsionar a generosidade e a solidariedade. Está a saber fazê-lo com esta tragédia dos refugiados. Lástima que tenha sido diferente com os povos submetidos à troika.

 

Voltemos ao princípio: onde é que está, em Portugal, um líder político capaz de nos desassossegar e, apesar das clivagens, mobilizar para uma  boa ambição comum com construção de territórios de futuro? Um líder, por exemplo, capaz de compreender que as artes podem contribuir para mudar o nosso olhar e a nossa maneira de estar. Precisamos dos frutos da imaginação.

 

Duas leituras que recomendo hoje sobre o desafio que a escolha de Corbyn para lider dos trabahistas britânicos representa para a Esquerda europeia. Vale a pena ler esta análise no The Guardian. E esta no El País.

 

Nota do SAPO24: este texto foi escrito no dia 11 de setembro, embora a publicação tenha sido feita a 15 de setembro.

publicado às 10:16

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2015
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D