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Impostos: Você é concorrente. Venha daí jogar

Por: Rute Sousa Vasco

 

Não sou fã de concursos, nunca acreditei na sorte ao jogo e talvez por isso não senti qualquer emoção forte quando, a 6 de fevereiro de 2014, o Governo de Passos Coelho aprovou a criação de um sorteio chamado “Fatura da Sorte” com a finalidade de “valorizar e premiar a cidadania fiscal dos contribuintes”.

 

Mais tarde, nesse mesmo dia, o então ministro da Presidência, Luís Marques Guedes, anunciou que o sorteio fiscal iria ser televisionado e iria ter como prémio um automóvel.

 

Nesta altura, além do meu descrédito no jogo, recordo ter ficado um bocadinho mais amarrotada no meu orgulho enquanto cidadã de um Estado que gere a sua cidadania fiscal na base do jogo, da sorte e da televisão.

 

A verdade é que quem sabe, sabe. Um prémio que passa por juntar cupões por cada dez euros de facturas pedidas e que, no final, promete um carro de topo de gama tocou fundo aos portugueses. É a versão sorte aos impostos no campeonato da sorte ao jogo. E o afã com que, a partir dessa data, vi os cidadãos-contribuintes em cafés, mercearias, cabeleireiros – esses grandes evasores fiscais, com dinheiro nas mais conceituadas off-shores – a solicitar uma factura por aquelas transação de 0,60 cêntimos provou-me que não percebo nada dessa alavanca que move o sentimento de cidadania do povo. Afinal todos queremos ser excêntricos e custa tão pouco, basta uma factura e quem sabe até vou de carrinho dali a uns dias.

 

Parece que não é uma atitude lá muito europeia, mas também, caramba, se não devemos ser carneiros da Europa para umas coisas, também podemos manter as nossas idiossinacrasias noutras. Segundo um estudo da consultora PricewaterhouseCoopers (PwC), divulgado em Abril de 2014, na zona euro apenas a Eslováquia contava também com um sorteio fiscal para estimular a cidadania, atribuindo prémios em dinheiro e automóveis. E com resultados motivadores para os cofres do Estado: nos dois primeiros meses da lotaria, a Eslováquia tinha arrecadado receitas adicionais de IVA na ordem dos 130 milhões. Fora da zona euro, outros países como o Brasil, a Argentina, a Colômbia, Porto Rico ou Taiwan adoptaram soluções idênticas à “Fatura da Sorte” de Portugal.

 

Por cá, segundo dados do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, citado pelo DN em dezembro do ano passado, a coisa também correu bem. Entre 2013 e 2014, o número de faturas comunicadas ao fisco aumentou 12,3% (passando de 4,28 mil milhões para 4,80 mil milhões) e as faturas com NIF (as relevantes para o sorteio) subiram 36,3 %, ultrapassando 635 milhões.

 

No princípio, a Quercus ainda disse que não era uma medida lá muito sustentável sortear carros de alta cilindrada. E o secretário-geral da Deco criticou um sorteio que considerou uma “versão pimba” do Ministério das Finanças, ou, nas palavras do bastonário da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC), uma “visão folclórica” pouco dignificante do acto tributário.

 

Quase 100 carros sorteados depois, os factos ficaram à vista: os portugueses são concorrentes ao grande jogo dos impostos e gostam.

 

Até que esta semana aconteceram duas coisas.

 

O portal E-Fatura onde se validam as facturas registadas soluçou por vários dias e bloqueou na recta final do prazo para validação das facturas de 2015. Depois de umas respostas engasgadas e de muita indignação, o Governo anunciou que prolongava o prazo até dia 22 de fevereiro. E, na mesma semana, foi confirmada a substituição dos carros de topo de gama por certificados de aforro. O valor é o mesmo, o aparato é que não.

 

Destas duas ocorrências, ligadas entre si no espírito de cidadania fiscal, há algumas coisas que dão que pensar.

 

A primeira é que os incentivos começam por definir o tipo de políticos que temos mas, no fim do dia, retratam sempre o povo que estes mesmos políticos servem. E explicam muito da perpetuação de tantos vícios e dogmas da governação em Portugal.

 

A segunda é que quando aceitamos ser contribuintes-jogadores, não podemos mudar as regras quando a consola encrava. É aguentar, como dizia alguém, até voltar a jogar.

 

Para mim, que não gosto de sorteios e não acredito em jogos de sorte e azar, resume-se assim: nem jogadores, nem soldados à força do grande exército fiscal. Basta ir ver o Bruno Nogueira e a Manuela Azevedo no espectáculo “Deixem o Pimba em paz” para perceber que o pimba pode ter muita pinta, ser digno e encher salas. A cidadania também.

 

Tenham um bom fim de semana.

 

Sugestões de leitura

 

Agora que estamos oficialmente em contagem decrescente para os Óscares, o Netflix teima em não nos dar sossego. Este Love é mais uma razão para ficar em casa.

 

É um artigo longo do escritor e ex-ministro da Cultura espanhol, César Antonio Molina, mas vale a leitura. É sobre a esperança.

publicado às 11:04

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