As duas versões do novo iPhone (o 7 e o 7 Plus) começam esta sexta-feira, 16 de Setembro, a serem entregues em Portugal aos clientes que efectuaram a sua pré-compra. A venda nas lojas está esgotada em todos os países, afirmou a Apple. Com o iPhone 7, a empresa eliminou a entrada para os auscultadores - a tecnologia mais antiga que ainda resistia nos smartphones.
Os dispositivos custam entre 770 euros (iPhone 7, com 32GB de memória interna) e os 1.130 euros, para o topo de gama iPhone 7 Plus, com 256GB. No entanto, quem os comprar dificilmente vai poder ouvir qualquer som com auscultadores. Só no final de Outubro os novos auscultadores sem fios AirPod devem chegar a Portugal e a outros países, acrescentando ao valor do dispositivo mais uns anunciados 180 euros. Claro que será possível ouvir o que se passa no ecrã, mas com os altifalantes incorporados no dispositivo.
Mais uma vez, a Apple não inova com o lançamento destes novos auscultadores sem fios e, mais uma vez também, isto pode marcar uma tendência no mercado dos smartphones - tal como já tinha feito quando eliminou o leitor de disquetes (com o iMac G3, em 1998) ou os leitores de CD/DVD no MacBook Air, em 2008, os teclados físicos nos telemóveis ou, este ano com o MacBook, quando adoptou a norma USB-C. A remoção da entrada no smartphone e o fim dos auscultadores com cabo vão ajudar a extinguir uma tecnologia com quase 140 anos - com críticas e apoiantes de ambos os lados.
Na semana passada, durante a apresentação dos iPhone 7 em São Francisco (EUA), o vice-presidente sénior da Apple, Phil Schiller, defendeu que a empresa não podia continuar a manter uma "velha" porta para apenas uma utilização, com a quantidade de tecnologia que precisava de incluir dentro do espaço limitado do iPhone.
O objectivo não era era inovador: a Motorola, com o Moto Droid Z, lançado em Junho passado nos EUA, e alguns fabricantes chineses (Oppo ou LeEcco), removeram a entrada do "jack" de 3,5mm dos auscultadores antes do anúncio da Apple. Mas esta já andava a preparar mudanças nos conectores de áudio e, no ano passado, até obteve uma patente, pedida em 2011, para um "jack" em forma de D deitado, com as mesmas capacidades de um de 3,5mm. O objectivo era o mesmo: ganhar mais espaço dentro do smartphone.
A necessidade de ter um dispositivo mais compacto e com uma menor espessura foi agora derrubado. Em paralelo, ao eliminar esta entrada, os fabricantes podem incluir uma maior bateria (mais 14% no 7 e 5% no 7 Plus), proporcionando uma maior vida útil.
Tecnologia com 140 anos
O "jack" é provavelmente a tecnologia mais antiga que ainda se pode encontrar num telemóvel - com a vantagem de não ser necessário pagar direitos pelo seu uso. Começou a ser usado no século XIX, alegadamente em 1878 na primeira estação telefónica comercial. O objectivo era permitir às operadoras humanas destas centrais telefónicas ligarem as chamadas do ponto de origem às de destino, inserindo os conectores nos endereços correctos.
Tanto as centrais civis como militares acompanharam a evolução tecnológica usando este interface que então media 6,35mm. Depois, foi dinamizado nos rádios portáteis nos anos 60 ou no Walkman da Sony nos anos 70 do século passado, já com a medida normalizada de 3,5mm e, mais tarde, com o "mini-jack" de 2,5mm.
Mas as centrais telefónicas, conhecidas por PBX (de Private Branch Exchange), ainda eram usadas em Portugal nos anos 80, quando se iniciou o seu processo de digitalização. E em 1987, os deputados continuavam a debater esse processo, quando as duas primeiras centrais digitais já deviam ter sido lançadas em Viseu e em Braga no ano anterior.
O que é o AirPod? E a Beats?
Cada AirPod tem um microfone imbutido, para as chamadas telefónicas e interacção com o assistente pessoal Siri. É ligado através de uma ligação Bluetooth - o que significa que também pode funcionar com outros smartphones ou dispositivos de som. Devido ao processador interno, ele consegue detectar e interagir com o iPhone mas também com o Apple Watch ou computadores Mac, desde que tenham software actualizado.
Os AirPods são activados apenas quando colocados nos ouvidos. Isto é garantido pelos sensores internos de infra-vermelhos, algo que permite também serem activados por comandos vocais, como os de gestão dos auscultadores falando para o Siri (embora se possa igualmente interagir no próprio iPhone). A tecnologia foi antecipada em 2014, quando a Apple apresentou uma outra patente relacionada com estas potencialidades.
A autonomia dos auscultadores é de cinco horas, segundo a Apple, mas apenas de duas em modo de conversação, acrescentada de mais 25 horas quando carregados na caixa que os acompanha. Em resumo, o utilizador do iPhone 7 terá de andar normalmente com o smartphone, os AirPods e a caixa de recarga. E terá de ter atenção ao modelo de negócio da Apple: não se sabe ainda o que ocorrerá se o utilizador perder apenas um dos AirPod. A empresa vai permitir a compra de apenas esse auscultador perdido ou roubado ... mas a que preço?
Outra questão apontada aos AirPod relaciona-se com a segurança infantil. Segundo um jornal australiano, o pequeno tamanho dos auscultadores passa a integrar a lista de produtos perigosos que, se engolidos, podem engasgar uma criança.
Para os adultos, o cenário é diferente. Segundo Jack Gold, analista da J. Gold Associates, o desaparecimento do conector no iPhone e a sua substituição pelos AirPods terá um impacto mínimo nas vendas, já que os clientes que se preocupam com este tipo de assunto não são em número suficiente para afectar os resultados da Apple. Bem pelo contrário, já que a ruptura nem sequer é dramática.
Em Julho passado, a analista de mercado NPD Group revelou como os modelos de auscultadores Bluetooth já contavam 54% nas vendas destes dispositivos, relativamente ao primeiro semestre deste ano. A líder nas vendas era a Beats, uma empresa que anunciou no mesmo dia do lançamento dos novos iPhone uma nova gama de auriculares e auscultadores sem fios, compatíveis com os novos smartphones. Sabe o que é a Beats? É uma empresa do produtor musical Jimmy Lovine e do artista Dr. Dre, adquirida em Agosto de 2014 por três mil milhões de dólares pela Apple (na que é considerada a sua maior aquisição).
Em resumo, a Apple pode ganhar em várias frentes (financeiramente falando) com o lançamento dos AirPods.
Outras sugestões de leitura:
O Conselho de Segurança Nuclear (CSN) espanhol revelou que a central nuclear Almaraz, junto à fronteira portuguesa, usa peças produzidas numa fábrica com irregularidades nos dossiês de controlo de qualidade. O CSN garantiu que não há motivo, ainda assim, para as retirar de funcionamento, mas a organização ambientalista Quercus não concorda alertando para a fragilidade da estrutura e perigo inerente.
Há uma quinta força da natureza? Esta é a pergunta que o El País lança a partir de uma investigação que está a ser realizada no Instituto para a Investigação Nuclear da Academia Húngara de Ciências. E, se estes cientistas estiverem certos, sim, há uma quinta força.
Quando as empresas encontram a forma mais eficaz de pagar menos impostos, os legalistas dizem que se trata apenas de planeamento fiscal. E para muitos, é quanto baste. Mas o caso Apple/Irlanda versus Comissão Europeia é bem mais que uma discussão legal. É política, é moral, é global e um iPhone não vale isto tudo. Nem muitos milhões deles.
No terceiro trimestre de 2016 (Abril-Junho), a Apple vendeu 40,4 milhões de iphones, o seu produto-estrela, e facturou 42,4 mil milhões de dólares. Os lucros do trimestre foram de 7,8 mil milhões de dólares. São números difíceis de dimensionar pela sua grandeza, mas ainda assim ligeiramente abaixo daqueles que a empresa registou no mesmo período de 2015. O que não é forçosamente uma má notícia porque estão acima do que, na realidade, os analistas esperavam – o que provocou aquela onda de comoção que os mercados traduzem em subida no valor das acções.
A Apple é uma empresa amada, admirada, odiada e cobiçada. É isto tudo, como são as grandes empresas, as grandes marcas e as pessoas de excepção. Ame-se ou odeie-se, é uma empresa sem problemas financeiros e, sobretudo, sem problemas de mercado à data de hoje. Quem é que não quer ter um iPhone, aqui ou na China?
E isto tudo leva-nos ao tema desta semana. Os 13 mil milhões de euros que a Comissão Europeia pediu à Apple que devolvesse por considerar que a Irlanda concedeu um apoio ilegal ao nível dos impostos à empresa americana. Para quem não assistiu à novela, fica um resumo rápido. A Irlanda é um dos paísesda União Europeia com regime fiscal mais atractivo para multinacionais. O IRC é de 12,5% versus 21% em Portugal, ou 25% em Espanha ou mesmo 29,7% na Alemanha.
Na Irlanda, a política fiscal low cost tem sido entendida como um motor de desenvolvimento do país e tem trazido frutos, sobretudo no investimento americano que gosta da vista, da língua e dos impostos a bom preço. Em 20 anos, a Irlanda teve um investimento directo americano de 277 mil milhões de dólares. Há 700 empresas americanas na Irlanda, que empregam no seu conjunto 130 mil pessoas.
A Apple é uma delas. Tem uma longa relação com a Irlanda, iniciada nos anos 80 por Steve Jobs. E beneficia de um estatuto especialíssimo no que respeita ao imposto sobre os lucros – aliás, cada vez mais especial. No início deste milénio, pagava entre 1% e 2% sobre os lucros. Há cerca de cinco anos, passou a pagar metade desse valor: 0,5%. E, em 2014, ano em que registou lucros recorde, obteve um novo desconto especial para 0,005%.O equivalente a 50 euros de imposto por cada milhão de euros de lucros.
Vamos recordar que a taxa de IRC na Irlanda, para ser competitiva e atrair investimento, já é de 12,5%. Uma das mais baixas da União Europeia.
A decisão da comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, de pedir a devolução dos 13 mil milhões de euros surge após dois anos de investigações e foi baseada, afirmou a própria, em factos. Factos que resultaram dos números apresentados pela Apple em audiências fiscais nos Estados Unidos, pátria-mãe da empresa onde a taxa de IRC é de 35%.
Avizinha-se uma longa batalha política e legal em torno deste tema. Para que um benefício fiscal possa ser considerado uma ajuda ilegal de Estado tem de cumprir com quatro critérios: tem de ser dado pelo Estado usando recursos próprios do Estado, tem de configurar uma vantagem, a vantagem tem de ser selectiva e não global, e tem de distorcer a concorrência. Face ao que se ouviu nesta semana, e considerando alguns precedentes, a procissão ainda nem saiu do adro.
O governo americano que agora veio em defesa da sua empresa-estrela teve, em 2013, dúvidas sobre se estaria ou não a ser driblado fiscalmente pela Apple. E, provavelmente, estava. Como? Através da Apple Sales International e da Apple Operations Europe, empresas com as quais a Apple regista as suas vendas na Europa e também parte dos lucros de propriedade intelectual, inclusive os facturados nos Estados Unidos (razão pela qual, em primeiro lugar, o senado americano se interessou pelo tema). As duas empresas protagonizam um acordo fiscal – dizer altamente favorável é dizer pouco – com a Irlanda, sem sustentação económica. Sim, a Apple emprega 6000 pessoas na Irlanda e planeia empregar mais 1000. Mas estas duas empresas são instrumentais – não têm escritórios nem empregados, apenas um número fiscal.
Na realidade, é mais sofisticado que isso.
Regressemos a 2013, e ao testemunho registado de Tim Cook, CEO da Apple, perante o senado americano num inquérito à política fiscal da empresa. Nesse processo, ficaram a saber-se várias coisas. Que a maior parte das operações da Apple eram geridas através da Apple Operations International, sediada na Irlanda, e que não tinham empregados. Segundo a Apple, essa decisão remontava a 1980 e tinham-se perdido todos os registos que pudessem ajudar a clarificar de que forma as vendas internacionais tinham sido canalizadas por essa via.
Entre 2009 e 2011, a mesma Apple Operations International que representou 30% dos lucros mundiais da Apple não pagou impostos de todo, em qualquer parte do mundo, dos Estados Unidos à Irlanda ou à China. Como? Parafraseando o Quartz, que aqui reproduz de forma detalhada os vários movimentos, de uma forma demoniacamente brilhante. Os Estados Unidos taxam uma empresa pela sua localização. A Irlanda taxa uma empresa com base na localização das pessoas que a gerem. Se a empresa está na Irlanda mas as pessoas estão nos Estados Unidos, não pode ser taxada em lado nenhum. Fiscalmente invisível. Ou demoniacamente brilhante, como se queira.
Por tudo isto é difícil ficar sensível à postura de dama ofendida assumida pela Apple. Tim Cook tentou divergir a discussão. Disse que não se tratava de saber se a Apple pagava ou não o valor justo em impostos, mas sim de saber quem cobrava esses impostos. Isto para poder argumentar que o acordo com a Irlanda é legal, transparente e que os irlandeses estão satisfeitíssimos com o mesmo.
Se calhar estão. O ministro das Finanças irlandês, Michael Noonan, já se mostrou bastante aborrecido com este contratempo que a Comissão Europeia levantou. Não se mostrou nada interessado em recuperar 13 mil milhões de euros, o equivalente a 5% do PIB da Irlanda, o suficiente para, por exemplo, baixar a sua dívida de 94% para 85% do PIB. Na sua perspectiva – e de muitos outros – trata-se de uma ingerência da UE na política fiscal de um país.
Michael O’Leary, o patrão da Ryanair, foi mais longe, até porque não é ministro. Disse que a decisão da Comissão era bizarra e que a Irlanda devia simplesmente mandar a UE “fuck off”. Assim mesmo.
E, na realidade, Estado e empresários até podem pensar assim. E, na realidade, os números até podem estar do seu lado (ainda que não seja uma evidência). Mas imaginemos que os 13 mil milhões de poupança fiscal à Apple representam mais para a Irlanda do que para a empresa: que valem 10% ou 50% a mais na criação de riqueza? Imaginemos que, feitas as contas, compensa beneficiar largamente uma empresa multinacional em nome do impacto na criação de riqueza e de emprego que essa medida traz ao país. É uma opção que um Estado tem direito de avaliar e de decidir no seu melhor interesse e dos seus cidadãos (mesmo que, no caso da Apple, os 102 mil milhões de dólares das operações no estrangeiro estejam bem guardados em bancos americanos, nomeadamente via o braço financeiro da multinacional com sede no Nevada).
Mas, para que esta opção seja transparente deve ter números que a ilustrem – de forma cristalina. Números que inclusive poderiam ou poderão fazer repensar a forma como a Europa no seu conjunto olha para a taxação de empresas e de pessoas.
E para ser transparente deve também abrir a discussão a outros fóruns. Por exemplo, as startups, a nova esperança da economia europeia e mundial de onde se espera que nasçam as futuras Apples, Googles e Facebooks. Não deveriam usufruir de um regime fiscal altamente competitivo a pensar nos impactos futuros da inovação na criação de emprego e na melhoria global da vida nas nossas sociedades?
Sendo transparente e aberta a outros actores, esta opção política não pode descurar o impacto social. Quanto dos valores generosamente subtraídos à factura fiscal das multinacionais sediadas na Irlanda, no Luxemburgo, na Holanda ou noutros países com regimes competitivos resultou em melhoria de condições sociais, no sistema de saúde, nos apoios aos mais carenciados?
Estas são questões que os Estados devem responder em nome da liberdade – que devem ter – para de forma transparente atrair investimento que possa gerar riqueza e emprego.
Mas tudo isto em nada melhora o que a Apple e outros gigantes tecnológicos são hoje. Empresas sem as quais não imaginamos viver, presentes na nossa vida em qualquer parte do mundo, com uma riqueza que o comum dos mortais não consegue imaginar, mas sem uma ideiaefectiva de comunidade ou de sociedade. Estão em toda a parte, facturam em qualquer lado, mas não pertencem a sítio algum. Têm fundações, apadrinham causas, mas num dos mais elementares actos de cidadania – o de pagar impostos – não são mais que vulgares artistas da contabilidade que dançam a balada da Floribela.
Tenham um bom fim de semana
Outras sugestões:
Da moral e da lei. Numa semana marcada pela destituição de Dilma Roussef, vale a pena ler este retrato do Brasil feito por Paulo Cardoso de Almeida.
Da matemática. Perceber o fascínio da matemática é em grande parte perceber o desafio que representa. É disso que nos fala este artigo do El País.
Quem precisa de filósofos que pensem se à nossa volta se multiplicam “pensadores”e “opinantes”, que oferecem a sua sabedoria a um ritmo vertiginoso? Como serão os líderes e decisores do amanhã que estão a crescer com o telemóvel debaixo da almofada? Das grandes empresas, como a Google, às universidades, como Harvard, há notícias animadoras: a filosofia está de volta, bem como as humanidades em geral depois de anos em que tudo o que contava era tecnologia e matemática. Temos mesmo de voltar a aprender a pensar na era da técnica.
Na década de 80 do século passado, a poderosa AT&T sofria uma enorme crise de identidade que poderia ter dado cabo da sua reputação e levado o seu fundador, Alexander Graham Bell, o inventor do telégrafo falante, vulgo, telefone, a dar muitas voltas na tumba. Como seria de esperar, e perante as dúvidas sobre o seu futuro, a empresa voltar-se-ia para os consultores de gestão – espécime em franca expansão à época – na tentativa de obter a resposta que poderia ditar o seu futuro: entrar ou não entrar no mercado emergente dos telefones celulares.
Utilizando os habituais modelos preditivos matemáticos, os consultores chegariam à conclusão que os telefones móveis serviriam apenas um nicho de mercado e não um em que valesse a pena investir tempo e recursos. Assim, e tal como tinha acontecido com a Digital Equipment Corporation nos anos 60 que, erradamente, tinha também previsto que nunca existiria uma forte procura por computadores pessoais, a AT&T faria um enorme erro de cálculo no que respeita a uma das mais importantes inovações tecnológicas e comerciais dos nossos tempos.
Ao confiar exclusivamente na gloriosa exatidão das ciências matemáticas – indispensáveis, sem dúvida, para a construção de um telefone – a gigantesca empresa de telecomunicações esquecer-se-ia do mais fundamental: o que significaria realmente ter um telefone móvel e por que motivo alguém daria dinheiro para o adquirir.
Esta história é contada por Ryan Seltzer, ex-consultor de gestão, que deixou o negócio da consultoria num banco em Boston (antes trabalhara na Casa Branca) - para fundar uma empresa de filosofia – a Strategy of Mind – que ajuda agora muitas outras congéneres a responder e a resolver alguns dos mais complexos desafios de gestão, nomeadamente aqueles que começam com a mais básica das questões: o “como”.
Serve esta introdução para falar da importância da filosofia – ou, mais especificamente, da sua aparente inutilidade – nos tempos que correm, muito graças à crescente obsessão pelas ciências exatas – nomeadamente as que cabem no famoso acrónimo STEM – para ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas ou “aquilo que está a dar”, mas não só.
Sim, é certo que a relevância social das denominadas ciências humanas – sim, pasme-se, também são ciências – deambula perdida nas ruas da amargura, que o seu lugar institucional é mais do que desvalorizado e a sua função pedagógica crescentemente posta em causa. Sobre esta crise que paira sobre todas as áreas do saber que não prestam vassalagem à exatidão, escreve Manuel J. do Carmo Ferreira, Professor Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa (aposentado),na revista Gaudium Sciendi, da Universidade Católica Portuguesa: “irrelevância como saber, ineficácia como intervenção, desfasamento em relação aos avanços em outras áreas do conhecimento, são os traços maiores de uma prolongada crise de legitimação das Humanidades, a que se vem juntar a insegurança dos que as cultivam quanto à natureza e títulos de afirmação do seu campo disciplinar”.
Mas se a prosa sobre a crise das humanidades daria pano para muitas mangas, centremo-nos apenas na Filosofia, cujo lugar na sociedade contemporânea sofre de uma enorme ambiguidade: se, por um lado, existe um desinvestimento claro no seu ensino e aplicação – quem quer trocar um filho proficiente em tecnologia por um que se perca nessa coisa que não serve para nada chamada filosofia? – por outro, e em particular no mundo dos negócios, a filosofia parece estar a transformar-se num mantra repetido por muitos no sentido de que pode ajudar ao tão almejado sucesso, aquela palavrinha que todos usamos sem nunca pensarmos no seu verdadeiro significado.
Apesar de, na maioria das vezes, não aparecer em estado “puro”, mas antes transvestida em modas que acabam por ser efémeras, um tonzinho filosófico fica sempre bem, principalmente na poderosa indústria da liderança, que à falta de novas ideias, vai embarcando na onda do coaching, seguida pela vaga do mindfulness – que vai de vento em popa, a propósito – e de outras que tais, “perfeitas” para se lidar com a também chamada era da complexidade e nela triunfar, é claro.
Ora, se é complexo, é filosófico e mesmo que se atropelem definições, conceitos e práticas, se juntem alhos com bugalhos, retirados de receitas milenares chinesas, com pozinhos pós-modernos de inteligência emocional, temperados ainda - e porque as especiarias, seja qual for a sua origem, aguçam o espírito - com umas técnicas de relaxação indianas – a filosofia parece estar, em muitos casos, a ser usada como uma espécie de cozinha de fusão. E que vende, a propósito.
Mas e por outro lado, esta antiga senhora faz lembrar também aquelas tias velhas e chatas que somos obrigados a convidar para as grandes celebrações: tem um lugar à mesa, mas ninguém lhe dá a devida atenção ou, pior ainda, colocamo-la no lugar mais afastado do centro, para que não sejamos contagiados com o cheiro a bafio que dela emana.
Existe ainda uma terceira opção: a tia é velha e chata, mas também é rica e, enquanto herdeiros, podemos sempre descobrir um camafeu, feio, mas valioso, guardado num velho baú que, devidamente vestido com novas roupagens, poderá valer uma boa maquia num qualquer novo mercado zen, devidamente comercializado por um bom leadership coach e ser tema de workshops moderníssimos que tão bem ficam nos nossos currículos.
Tudo isto é mais plausível de acontecer do que manifestarmos a convicção de que o mundo não precisa apenas de tecnologias, algoritmos, folhas de excel, estatísticas e afins, mas também de pessoas que saibam pensar de forma crítica, que façam as perguntas certas, que questionem o que não parece passível de ser questionado e que arrisquem em novas teorias e formas de compreender esta época que, tal como todas as outras, não deixa de ter “food for thought”, muito antes pelo contrário.
Basta pensarmos em três ou quatro questões bem “modernas” e podemos logo começar pela que dá o mote a este texto. Têm as humanidades um lugar legítimo num mundo em que a ciência e a tecnologia parecem reinar? Será que a inteligência artificial irá comprometer a nossa moralidade? E se a neurociência vier a colocar em causa o nosso livre arbítrio? Deverão as evidências das alterações climáticas alterar a forma como vivemos? Habituar-nos-emos a viver em clima de medo face ao fundamentalismo crescente? Será possível que o extremismo de direita, em franco crescimento na Europa, possa dar origem a um novo holocausto? Deixaremos de raciocinar num mundo em que existem apps que dizem o que devemos comer, o que devemos vestir, quantas horas devemos dormir e por aí adiante?
Convencermo-nos desta aparente lógica da batata não é, de todo, fácil. Para que serve a epistemologia, a ética ou a filosofia moral, a filosofia política ou a ontologia, senão como palavrões que nem merece a pena googlar? E qual a importância de termos tempo para pensar e questionar, quando vivemos, em continuum, rodeados de tecnologias que nos satisfazem os desejos mais imediatos, nos dão o poder do conhecimento total, que nunca nos deixam sozinhos com os nossos botões e que não nos permitem ter tempos de ociosidade, a pré-condição que iria dar origem aos primeiros pensamentos filosóficos? E, mais ainda: se a filosofia, enquanto disciplina ou prática, deveria responder às inúmeras novas e complexas questões que se colocam à sociedade contemporânea, não foi o seu lugar usurpado pelos incontáveis “opinantes”, “comentadores” e “cronistas”, em conjunto com os milhares de milhões de pessoas que passam a vida a dissecar a nossa realidade e a emitir juízos sobre ela? Serve a filosofia para alguma coisa no século XXI?
Em muitas nações ditas desenvolvidas a ideia vigente é que não se deve apostar ou investir nesta que já foi considerada como “o saber mais abrangente”. Mas também existem alguns ventos contrários que pretendem desencalhar este velho “amor pelo saber”. E que estão a empurrar, ainda que lentamente, o universo académico, por um lado, e o da liderança, empresarial mas não só, por outro.
Para quê usar a cabeça se temos computadores?
Em 2014, e já no rescaldo da crise financeira de 2008, o presidente da Irlanda, Michael Higgins, lançou a “Iniciativa de Ética” com o objetivo de desenvolver, a nível nacional, um debate sobre os principais valores que deveriam reger a sociedade irlandesa na altura. A ideia, várias vezes repetida em discursos presidenciais, era a de que se o povo realmente prezava a democracia, deveria evoluir para uma cidadania de pensamento independente e ativo, sendo que recuperar a importância do ensino da filosofia nas escolas constituiria um dos mais preciosos meios para atingir esse fim. Para Higgins e numa interpretação mais ou menos livre das suas ideias, a filosofia seria o mais importante antídoto contra o pensamento de grupo, encarneirado, e o melhor ingrediente para colocar um fim no enjoativo consenso que há muito estava a limitar o livre pensamento.
Um ano antes, e logo ali ao lado, o Reino Unido iniciaria um estudo comparado, em 48 escolas do 1º ciclo, com a duração de um ano, no qual 1500 crianças entre os 6 e os 10 anos receberiam aulas de filosofia e outras 1500 não. O estudo, conduzido pela Education Endowment Foundation (EEF), uma organização sem fins lucrativos que visa estreitar o fosso entre os rendimentos familiares (baixos) e o aproveitamento escolar, pretendia testar a eficácia das premissas filosóficas através de um “ensaio clínico aleatório”, exatamente como os que são feitos com os fármacos com potencial de comercialização. Assim, 22 escolas funcionaram como grupo de controlo, enquanto as restantes 26 passaram a ter uma aula de filosofia por semana com a duração de quarenta minutos, no que é denominado como P4C (Philosophy for Children) No total, mais de 3 mil miúdos estiveram envolvidos na experiência e os resultados foram bem além do esperado.
O programa, da responsabilidade da Society for the Advancement of Philosofical Enquiry and Refletion (SAPERE), não tem como objetivo concentrar-se no estudo de textos de Platão ou Kant mas, através da leitura de histórias, poemas ou pequenas notícias da imprensa, ou ainda através da visualização de pequenos filmes, estimular as discussões sobre matérias “potencialmente”filosóficas. O objetivo é ajudar as crianças a raciocinar, a formular e a fazer questões, envolvê-las em debates construtivos e apoiá-las no desenvolvimento de argumentos.
O “material” pode ser tão díspar quanto a leitura de uma história sobre um miúdo que queria manter uma baleia de estimação na sua banheira ou simplesmente lançar-se uma pergunta, em particular no grupo dos mais velhos (entre os 8 e os 10 anos) que tenha o tal potencial filosófico: “por que motivo os tenistas homens recebem maiores patrocínios do que as suas congéneres femininas?”, “é legítimo privar alguém da sua liberdade?” ou “se pudesses, mandarias acabar com o livre pensamento?”, entre outras inúmeras possibilidades, não esquecendo as mais “óbvias” como “O que é ser humano?”, “se tivesses outro nome, serias uma pessoa diferente?”, “qual a diferença entre dizer uma mentira ou manter um segredo?”, “temos de estar tristes às vezes para podermos estar felizes noutras?”, entre uma panóplia alargada de outras tantas.
Os resultados? Não só bons, como inesperados. O mais surpreendente foi o facto de todos os miúdos que participaram nesta iniciação filosófica terem melhorado o seu aproveitamento escolar na matemática e na leitura, tendo em conta que o objetivo inicial nada tinha a ver com melhorias na literacia ou na aritmética. Em média, estes progressos corresponderam ao equivalente a dois meses extra de ensino e foram as crianças provenientes dos agregados mais pobres as que um passo maior deram na sua performance: as suas competências de leitura “avançaram” quatro meses, as de matemática três e as de escrita dois.
Também e no geral, todas as crianças participantes demonstraram uma maior confiança para falar em público, melhoraram as suas competências de saber escutar os outros (pares e professores), demonstraram uma paciência muito mais significativa face aos colegas e apresentaram uma melhoria generalizada na sua autoestima. Novas formas de pensamento e raciocínio lógico, em conjunto com uma melhoria significativa nas suas formas de expressão, ordenação de ideias e capacidade de argumentação foram também claramente atingidas.
Adicionalmente, estes efeitos benéficos da filosofia duraram dois anos, com o grupo intervencionado a continuar a ter melhores resultados muito tempo depois de as aulas terem terminado, daí que a avaliação final tenha sido apenas publicada em Junho de 2015. O programa foi entretanto adotado por inúmeras escolas em todo Reino Unido, sendo que existem atualmente mais de 3 mil professores formados em P4C e 60 mil crianças a usufruírem deste tipo de experiência. A metodologia utilizada pela SAPERE foi desenvolvida há 35 anos pelo professor norte-americano Matthew Lippman, em New Jersey, e é utilizada, em formatos similares, em mais de 60 países.
No fundo, e no que aos mais novos diz respeito e a não ser que haja um cataclismo que desligue a internet, filosofar será cada vez mais difícil. Os alertas multiplicam-se e não é preciso ser-se tecnofóbico para perceber que não é fácil pensar, imaginar ou questionar quando temos o mundo inteiro literalmente na mão e ao nosso dispor ininterruptamente. Quem imagina um adolescente a trocar likes, tweets, instagrams e similares por uma meia hora de silêncio ou de interiorização? Ou o ciberespaço por um espaço físico para pensar? Ou até um chat por uma conversa numa mesa de café, expressando, por exemplo, a tristeza que sente sem se limitar a utilizar uma mera “carinha” triste?
Salvo honrosas exceções, a verdade é que cada menos se troca a cuidadosa e morosa gestão do reflexo que se quer partilhar com o mundo, por momentos de autorreflexão. Sabido também é que esta inexistência de espaço e de tempo para se pensar não afeta, como sabemos, só as novas gerações. Em passo mais do que acelerado, tudo o que acontece no mundo é vertiginosamente comentado, opinado, e, é claro, partilhado por cerca de 3,5 mil milhões de pessoas – ou 40% da população mundial que tem acesso à internet. E, destes, um ou dois mil milhões consideram-se, certamente, como filósofos. Se opinam e comentam, logo existem. E assim, para que raio servem os filósofos?
Obsoleta e inútil, a quem interessa a filosofia?
Apesar de, em muitos casos, a filosofia parecer ter sido arrumada numa gaveta poucas vezes aberta, em 2010, o The New York Times resolveu tirá-la do armário académico onde vivia encafuada e partilhou-a com o resto do mundo: apesar de classificada como uma mera coluna de opinião, o espaço The Stone – definido como um fórum para filósofos contemporâneos e outros pensadores, tem vindo a atrair milhões de leitores interessados em questões tão contemporâneas como intemporais.
Tópicos universais como os mistérios da consciência ou da moralidade, são misturados com questões da atualidade tão díspares quanto a ética na utilização de drones, o controle de armas, as desigualdades de género, a crise dos refugiados, ou seja, com as questões sociais, culturais ou políticas do nosso tempo, naquilo que parece ser uma receita de sucesso que, afinal, até “dá likes” e partilhas.
E foi tão grande o êxito deste “espaço para pensadores” que a coluna semanal deu origem ao livro, publicado em janeiro deste ano, The Stone Reader: Modern Philosophy in 133 Arguments , o qual, de acordo com os seus editores, coloca uma significativa parte do total do discurso da filosofia moderna ao dispor dos leitores. O livro é dividido em quatro grandes secções – Filosofia, Ciência, Religião e Moralidade, e Sociedade e a sua introdução começa da seguinte forma: “O que é um filósofo? E, mais importante do que isso, quem é que realmente se importa com isso?”.
Num tom bem-humorado, Peter Capatano, editor do NYTimes e responsável pela edição dos ensaios publicados na The Stone, explica que a primeira pergunta - o que é um filósofo? – foi, exatamente, o tema do ensaio de lançamento da dita coluna em 2010. E qual não foi o seu espanto, e dos ensaístas que para ela iriam contribuir na altura, quando se aperceberam que o artigo tinha sido o mais lido de todos na edição online do jornal nesse dia.
Nesta mesma introdução, Capatano não se esquece de sublinhar a ideia de que a filosofia é considerada como supérflua e obsoleta por um conjunto substancial de pessoas, numa espécie de movimento “anti-intelectuais” que vigora nos quatro cantos do mundo, e muito em particular nos Estados Unidos. Mas rejeita liminarmente a ideia – dando como exemplo o sucesso da coluna em causa – de que a filosofia seja inútil, não tendo medo de responder à segunda questão formulada: “há muita gente que se importa, sem dúvida”, escreve. E é esta “muita gente” que poderá ajudar a ressuscitar o valor que a disciplina teve ao longo de grande parte da história da Humanidade.
De Harvard aos “cursos que obrigam a pensar” para CEOs
Essa ressurreição está também a ganhar raízes nos templos do saber da atualidade. Vejamos o exemplo da mais americana das universidades, onde os alunos chegam com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em racionalidades inabaláveis, mas onde uma cadeira denominada Teoria Política e Ética Chinesa Clássica reúne o maior número de alunos inscritos, só suplantada pelas de “Princípios de Economia” e “Introdução às Ciências Computacionais” (aqui tinha mesmo de ser, mas mesmo assim não é nada mau ocupar o 3ª lugar do pódio).
Sim, estamos a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi ministrada), procuram resolutamente a sua aula. A disciplina – que tem como base a relevância dos textos clássicos chineses para a atualidade – deu origem ao livro The Path: What Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life, lançado no passado mês de Abril e já comprado por editoras em 25 países, incluindo a própria China, onde vai ser publicado ainda este ano.
O segredo de Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido como” O Livro do Caminho e da Virtude” (uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões similares – mas “modernas” – que seguramente devem ter dado cabo da cabeça dos eruditos chineses há vários séculos.
Mas não só. De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas próprias vidas, os ensinamentos apreendidos, sendo que os que predominam são, na verdade, ideias simples que não perdem, de todo, atualidade. De acordo com as palavras do próprio Puett, e numa entrevista que deu, em 2013, à revista The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos – quando começou a dar aulas – os alunos da atualidade sentem-se “esmagados” por um caminho específico que têm de percorrer no sentido de objetivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que “estão a dar”).
O que Puett observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso escolar, e até as suas atividades extracurriculares, de acordo com planos e objetivos de carreira predefinidos e “demasiado” programados. Assim, são muitos os estudantes que juram que ao perceberem que o coração e a mente, maioritariamente separados na visão do mundo ocidental, estão profundamente relacionados entre si e que não podem ser encarados isoladamente – uma das principais “lições” que Puett tenta transmitir nas suas aulas – contribuiu mesmo para mudar as suas vidas, existindo até alguns que – sim, parece loucura, mas é verdade – que trocaram as tais ciências exatas e o que está a dar por cursos em áreas das obsoletas humanidades. Será está a prova da famosa citação que é atribuída a Confúcio e que reza “escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”?
Harvard não é a única universidade que está a descobrir as delícias da filosofia aplicada a outras áreas do conhecimento. Outras famosas universidades estão a ir pelo mesmo caminho e o mesmo acontece, em particular, com as escolas de negócios. E é aqui que entra, mais uma vez, o fator negócio, mas um que pelo menos ajuda a desenvolver neurónios e a transformar a gestão em mais do que uma obsessão pelos resultados que figuram nos seus relatórios trimestrais. Retomando a história que deu início a este texto, o fundador da empresa de filosofia Strategy of Mind, Ryan Seltzer, assegura que são cada vez mais as empresas que estão a (re)conhecer a prosperidade de outras suas congéneres que estão a apostar em doses similares de “matemática e filosofia”. Claro que o ex-consultor poderia estar apenas a vender os seus serviços, mas abundam os exemplos de várias organizações que comprovam a sua teoria (e o seu modelo de negócio).
Damon Horowitz é um dos casos mais clássicos quando se fala destas estranhas decisões em que executivos bem-sucedidos e, muitas vezes, provenientes exatamente de empresas de tecnologia, decidem experimentar os caminhos incertos da filosofia. E a verdade é que o reconhecido empreendedor resolveu abandonar o seu principescamente pago lugar no mundo tecnológico para tirar um doutoramento em filosofia (a sua formação académica anterior incluía uma um mestrado tirado no MIT Media Lab e estudos em ciências da computação em Stanford, onde agora dá aulas de… filosofia).
O atual diretor de engenharia e filósofo in-house (este cargo não é inventado, existe mesmo) da Google proferiu uma interessante talk em Stanford, em 2011, intitulada “Por que motivo deve trocar o seu emprego na área da tecnologia e matricular-se num doutoramento em Humanidades”, a qual explora o valor das humanidades – no geral, e da filosofia no particular – num mundo que está continuamente a ser inundado por novas tecnologias. O seu caso está longe de ser único e, em particular, nas grandes empresas em que a tecnologia e a inovação constituem os principais ativos.
O que pode ser facilmente explicado por Fareed Zakaria, um colunista do The Washington Post e autor de In Defense of a Liberal Education. Como escreve, “uma educação alargada ajuda a estimular o pensamento crítico e a criatividade e a exposição a uma variabilidade de áreas produz não só boas sinergias, como uma útil ‘fertilização cruzada’”. Afirmando que tanto a ciência como a tecnologia constituem componentes cruciais no mundo empresarial, o jornalista confere, contudo, exatamente o mesmo valor ao Inglês e à Filosofia, e recorda que num dos inesquecíveis discursos de Steve Jobs, o fundador da empresa da maçã explicava que “está no ADN da Apple o facto de a tecnologia nunca ser suficiente – mas, ao invés, ser o seu casamento com as artes liberais e com as humanidades que produz os resultados que fazem cantar os nossos corações”.
No mesmo livro, Zakaria defende ainda que a inovação não é, de todo, uma mera questão técnica, “mas antes a forma de compreender como funcionam as pessoas e a sociedade, o que precisam e o que desejam”, algo que, na verdade, esteve também sempre presente na Apple, cujo enorme sucesso em muito se deveu, entre várias outras coisas, à brilhante antecipação dos desejos dos seus clientes.
Mark Zuckerberg é outro exemplo de como a tecnologia precisa, indiscutivelmente, do saber produzido pelas ciências não exatas. O fundador do Facebook foi, também, um estudante clássico das artes liberais e simultaneamente um apaixonado pelos computadores. A antiguidade grega sempre foi um dos seus principais interesses e a psicologia a área que escolheu para se licenciar. E não é preciso ser-se muito inteligentes para perceber o quão ligadas estão as inovações do Facebook ao campo da psicologia. E é o próprio Zuckerberg que afirma que o Facebook “tem tanto de tecnologia como tem de psicologia e sociologia”.
Zakaria cita também um outro estudo sobre o futuro do trabalho, desenvolvido por dois académicos de Oxford e que concluiu que para os trabalhadores evitarem a “computorização” dos seus empregos, terão de adquirir, cada vez mais, competências sociais e criativas”. Para o autor, o que este exemplo significa verdadeiramente é que, e sem retirar valor às ciências exatas e ao inevitável trabalho com as máquinas (que é, sem dúvida, o futuro do trabalho), as mais valiosas competências serão aquelas “unicamente humanas” ou as que os computadores nunca conseguirão imitar (pelo menos assim se espera).
Mas e de volta à filosofia e ao valor do “tempo para pensar”, um artigo publicado na revista The Economist ajuda a melhorar a perspetiva no que a esta necessidade no mundo dos negócios diz respeito. Intitulado Philosopher kings: Business leaders would benefit from studying great writers, defende a criação de “retiros para pensar” em substituição das inúmeras modas a que os CEOs vão aderindo, sempre com o objetivo de melhorar as suas capacidades de gestão e liderança (desde as “provas” em ambientes hostis, aos passeios em plena natureza e já contando com os cursos de mindfulness, que o artigo refere como “bons para relaxar, mas maus porque esvaziam a mente”).
No mesmo artigo fica expressa a ideia de que é surpreendente o número de CEOs bem-sucedidos que estudaram filosofia, de que é exemplo Reid Hoffman, um dos fundadores do LinkedIn, que optou também por tirar uma pós-graduação em filosofia em Oxford ou o já falado Horowitz, mas também de como Bill Gates, enquanto geria a Microsoft, tinha por hábito isolar-se uma semana no campo para “meditar sobre um assunto importante” ou de como Jack Welch, enquanto CEO da General Electric, reservava religiosamente uma hora do seu dia para pensar, sem recurso a qualquer tipo de distração.
Adicionalmente, Peter Thiel, um reconhecido investidor de Silicon Valley apostou recentemente também em conferências para as quais são convidados pensadores de renome numa tentativa de “melhorar o mundo” e David Brendel, filósofo e psiquiatra, é um dos “gurus” mais procurados por estes executivos de topo para prestar aconselhamento sobre liderança, para além de escrever assiduamente na Harvard Business Review sobre como a filosofia pode ajudar a se ser não só um melhor gestor, como um melhor líder. Curioso – ou não – é também o facto de Brendel ser igualmente um dos co-fundadores da Strategy of Mind acima mencionada.
Como afirma também o filósofo in-house da Google, “os líderes do pensamento da nossa indústria não são aqueles que subiram, passo a passo, mas de forma monótona, a escada da carreira, mas os que correram riscos e desenvolverem perspetivas únicas”.
Ou seja, aqueles que se deram ao trabalho de pensar, questionar e criar.
Segurança nacional ou privacidade do cidadão? É a pergunta que se impõe na disputa que opõe a Apple ao FBI. O debate que está a decorrer nos Estados Unidos pode afectar os utilizadores de telemóveis (e, por extensão, de qualquer equipamento ligado à rede) em todo o mundo. Sim, isto tem a ver consigo e vai querer saber porquê.
A questão do acesso do Estado aos dados pessoais do cidadão – através dos organismos policiais, fiscalizadores e de contra-espionagem - tem sido discutida desde que a Internet se popularizou. Contudo, quando Edward Snowden revelou publicamente a magnitude da intromissão do governo norte-americano nas comunicações, a discussão deixou de ser académica, ou técnica, e passou para a esfera judicial.
Que o governo chinês espie os seus cidadãos com um exército de inspectores, é um facto histórico; que o governo norte-coreano não o faça simplesmente porque ninguém na Coreia do Norte tem Internet, é sabido; que certas ditaduras tentem atabalhoadamente fazê-lo, não surpreende; agora que nos países ocidentais, onde o cidadão é protegido por uma série de garantias, possa acontecer, é inaceitável.
Acontece à socapa? Provavelmente. Mas, mesmo assim, é muito diferente do que ser legal e aceite. E, se ocorre nos Estados Unidos, onde é escrito praticamente todo o software usado nos computadores, pode acontecer em qualquer país. No caso dos telemóveis, que é onde se concentra esta guerra judicial, basta lembrar que os dois sistemas operacionais usados planetariamente são o IOS da Apple e o Android da Google, empresas sediadas na Califórnia.
Tudo mudou em 2013, com as revelações de Snowden. Anteriormente, as empresas de comunicações, ou de equipamento de comunicações, cooperavam com as autoridades quando os tribunais assim o mandavam. Mas Snowden provou que as agências de segurança nacional espiolhavam não só os utentes, mas também as próprias empresas. Daí que a Apple tenha criado um sistema operacional que é impossível de descodificar, mesmo pela própria Apple. O software para fazê-lo simplesmente não existe. E há a tese de que o software tem a protecção de direitos de autor como qualquer outro texto. Escrevê-lo por ordem judicial, na opinião de alguns especialistas, seria o mesmo que condicionar um autor na sua liberdade de expressão.
Qual é a password?
Tecnicamente, não se trata de decifrar a encriptação, mas sim de descobrir a palavra-passe. O sistema IOS está feito de maneira que ao fim de dez tentativas com palavras-passe erradas, todos os dados da memória do smartphone são apagados. O caso específico refere-se ao iPhone utilizado por um dos terroristas que mataram 14 pessoas em San Bernardino, na Califórnia. O FBI quer que a Apple escreva um programa capaz de ultrapassar a segurança do aparelho. Apenas isso.
A Apple tem vários argumentos para não o fazer. Primeiro, não quer piratear (hack) a sua própria tecnologia. Segundo, se o fizer está a colocar em risco a privacidade de todos os utilizadores; uma vez criado, não se sabe onde o programa irá parar. O FBI e outros departamentos de segurança do governo ficam em roda livre para fazê-lo quando quiserem. Mais ainda, os governos de outros países podem exigir o mesmo, e excluir a empresa dos seus países se não o fizer – a China vem logo à cabeça.
O FBI diz que a Apple está a exagerar, uma vez que lhe pede que a própria empresa desbloqueie apenas um telemóvel e não todos os que fabricou. E que se trata de um caso de segurança nacional, para descobrir os cúmplices dos dois terroristas, antes que cometam mais atentados.
As opiniões dividem-se. Bill Gates começou por apoiar Tim Cook, o presidente da Apple, mas depois voltou atrás e acha que o FBI tem razão. Não que a opinião dele valha mais do que institucionalmente, uma vez que a Microsoft tem muito pouca penetração no mercado de smartphones. Mas Sundar Pichai, o director da Google, dona do Android, que compete com o IOS pelo domínio do mundo (sobretudo através da Samsung), apoia a Apple, e esse apoio tem muito peso. Mark Zuckerberg também acha que Tim Cook tem razão. E o Facebook na última contagem (ontem?), tinha mil e seiscentos milhões de utilizadores.
Zuckerberg aliás, tem tido muitos problemas com vários governos por questões de privacidade. O último caso foi, recentemente, com a Índia, onde as autoridades queriam proibir o Facebook, alegando que partilhava indevidamente informações privadas – mas na realidade o que preocupa o governo indiano, como todos os governos, é a possibilidade das redes sociais difundirem informações quase instantaneamente, sem controle.
Os cidadãos, a acreditar numa sondagem do Pew Research Center, estão a favor do Governo. 51% acham que a Apple devia ceder e só 38% acham que não devia. Mas os cidadãos, apesar dos mais interessados, serão os últimos a decidir, nesta disputa de gigantes, que certamente irá enriquecer grandes escritórios de advocacia.
Amigos, precisam-se!
A 16 de Fevereiro, um juiz federal decretou que a Apple tinha de fazer o que o FBI pedia até sábado, 26. Mas sábado passou e a empresa não o fez. Aliás, fez: pediu a dispensa do juiz, pois considera que a decisão viola os direitos da Primeira e Quinta emendas da Constituição. Se viola ou não, outro tribunal o decidirá. Entretanto, o decreto do juiz baseou-se numa lei de 1789, há muito esquecida, e que se aplicava a correio em papel.
Nesta terça, dia 1 de Março, a Comissão para Assuntos Judiciários da Câmara de Representantes debruça-se sobre o assunto. O director do FBI e o principal advogado da Apple são testemunhas. O assunto interessa a todas as empresas do biosistema das comunicações, que seguem atentamente o processo. Pierre Louette, ex-director da Orange francesa, diz que há muito tempo que estes problemas se levantam, mas que agora terá finalmente de se decidir alguma coisa, e “as empresas de comunicações vão precisar de ter muitos amigos”.
Amigos são sempre úteis, mas o que a Apple agora precisa é de advogados. E dos bons. Quanto aos utilizadores de todo o mundo, que já são espiolhados a torto e a direito, no fundo a preocupação é mais familiar do que civil. Quer dizer, que a Autoridade Tributária investigue pela calada, não há nada a fazer; agora, se lá em casa tiverem acesso aos dados do telemóvel, isso é que é o diabo...
Sim, você já navegou nas nuvens. Numa, ou em mais do que uma, várias ao mesmo tempo. Não é um imperativo, ou resultado da sua vontade; é uma situação incontornável – não há nada que possa fazer para o evitar.
Não nos estamos a referir às belas nuvens que se apreciam das janelas do avião, quando vamos daqui para paragens mais macias. Nem à expressão “estar nas nuvens” que nos acontece quando não prestamos atenção à áspera realidade. Nem sequer àquele filme com o George Clooney em que ele ganha a vida a despedir pessoas.
Não. Estamos a referir-nos à “nuvem”, “the cloud”, essa abstracção informática que toda e qualquer pessoa sentada à frente dum computador utiliza, mesmo que não saiba. Chama-se “nuvem” não porque seja fofa e redondinha, mas porque esconde coisas. Como em “nevoeiro”.
Estranho, não é? Mas em informática há muitas coisas estranhas. Que não sabemos o que são, mas que precisamos de saber para que servem, porque nos servimos delas. O que não precisamos de saber, por exemplo, é que o termo é usado pelos maluquinhos dos computadores – os geeks – desde 1977, ainda a Internet não existia, tal como a conhecemos hoje.
Mas chega de conversa. Imagine uma biblioteca cheia de livros, folhetos, memórias descritivas, arquivos disto e daquilo. Quais livros? Todos. E que contem, além desses livros, folhetos, etc., os seus documentos, fotografias e tudo o mais que você produziu ou passou pela sua mão. Uma biblioteca gigantesca com tudo catalogado e que tem uma secção só com os seus papéis. Você vai à biblioteca e consulta a sua papelada, ou dá uma olhadela na papelada comum. Alguns documentos estão em estantes abertas, acessíveis a toda a gente, outros ficam em armários fechados e só podem ser vistos pelos seus proprietários, ou por quem os seus proprietários querem que veja. Isso é a nuvem.
Agora imagine que você tem dois computadores, um de secretária e outro portátil, ou tem um computador e um smartphone, ou um tablet. Como faria antigamente (“antigamente” quer dizer há dez anos) para partilhar a sua papelada entre esses vários aparelhos? Fazia uma cópia em disco, ou numa pen (isso já menos “antigamente”) e depois lia essa cópia no outro aparelho. Tinha de estar sempre a fazer cópias dum lado para o outro.
Nas grandes empresas, com centenas, milhares de computadores, era mais complicado, mas acabava por ser mais simples: havia um computador com grande capacidade que guardava os arquivos de todos os PCs e distribuía a informação. Foi assim que a nuvem começou a funcionar, como uma rede uns tantos computadores.
Isso era antigamente. Só as grandes empresas tinham as suas nuvens privadas. Mas as médias empresas também tinham arquivos para guardar e não podiam ou queriam investir em equipamento e instalações. Assim, pela ordem natural do empreendedorismo, houve quem se lembrasse de alugar espaço. Para quê investir a construir um grande armazém para o “arquivo morto”, se o podemos alugar?
À escala mundial, há grandes alugadores que talvez nunca tenha ouvido falar, como a Oracle ou a Centrilogic. E alguns que talvez utilize sem se aperceber, como a Google ou a PT. (Se está a ler isto, é porque acedeu à nuvem da PT.) Outros ainda que ninguém imagina que estão nesse negócio, como a Amazon ou a AT&T.
As próprias marcas de computadores também têm as suas nuvens, para que os utilizadores possam fazer a tal partilha entre os seus portáteis e smartphones. A Apple tem o iCloud, a Microsoft o OneDrive. Essas, você também usa sem saber. Ou pode inscrever-se e navegar em nuvens de terceiros, como a Dropbox ou a Evernote.
O negócio de alugar “espaço digital” é gigantesco. Não estamos a exagerar. As nuvens no mundo real são edifícios de dimensões piramidais (como as pirâmides do Egipto). Construídos em regiões remotas, porque ninguém precisa de lá ir, normalmente perto de rios, para a água arrefecer os equipamentos.
Gostaria de ver um desses edifícios? Não precisa de ir muito longe; na Covilhã fica um dos maiores do mundo. Na Covilhã, aqui tão perto.
Mas então, se não se paga para usar as nuvens, como é que o negócio é tão fabuloso? Agora já pode perceber porquê: as pessoas não pagam porque usam muito pouco espaço; as empresas, que precisam de muita armazenagem, e em duplicado (para ter cópias de segurança) pagam milhões de dólares, de euros, libras ou yuans pelo serviço. E os serviços públicos também. Imagine o espaço que a simpática Autoridade Tributária precisa para guardar as continhas de dez milhões de contribuintes! E, como se prevê que as necessidades de armazenamento cresçam exponencialmente nos próximos anos, a competição é enorme. Parece que a Amazon está a querer competir com a Oracle e a AT&T e portanto a baixar os preços.
Pois é, as nuvens do século XXI já não são redondas e cheias de anjinhos. A não ser que você os tenha no seu arquivo...