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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Isto não é um país. É um laboratório económico e social

 

“Bandeiras”, “apostas”, “paixões” e “compromissos” é coisa que não nos tem faltado. Uns mais à direita, outros mais à esquerda. Todos a sucederem-se, muitas vezes revertendo os que vinham de trás. O que nunca tivemos foram políticas estáveis que permitam o investimento, o crescimento e a criação de emprego

 

 Como para quase tudo, os brasileiros também têm uma expressão feliz para o eterno fado dos mais desfavorecidos: “Pão de pobre cai sempre com a manteiga para baixo”. As crises podem afectar toda a gente. Mas os que estão económica e socialmente mais vulneráveis, precisamente pelo facto de o estarem, acabam sempre por sofrer um embate maior, venha ele de onde vier.

Com esta profunda crise que passámos não foi diferente e temos agora dados sistematizados que podemos analisar para lá do “achismo” e da reacção de facção ou de ocasião. A Fundação Francisco Manuel dos Santos divulgou a obra multimedia Portugal Desigual que vale a pena conhecer e que, entre outras, responde à pergunta “Quem perdeu mais com a crise?”. O período analisado é entre 2009 e 2014 e a conclusão é que a quebra efectiva de rendimentos foi maior (25% contra 12% na generalidade da população) no patamar mais baixo de rendimentos, até 3628 euros por ano.

Uma quebra que se deve essencialmente ao aumento do desemprego, já que este segmento não foi directamente afectado pelos cortes de salários ou pensões, como o estudo refere. E que não pode ser amortecida por prestações sociais reduzidas num Estado à beira da bancarrota.

Mas se não fosse assim seria certamente de outra forma, porque é a manteiga que dá sempre de caras com o chão sujo.

Agora foram os mais desqualificados e precários os primeiros a sofrer, através do desemprego. Mas há 30 anos, aquando do resgate de 1983-85, também tinham sido os mais pobres a sofrer com a perda de salário real, “comido” em grande parte por uma inflação que tinha chegado aos 30%. Sem poupanças, porque os rendimentos escassos fazem sobrar dias e não dinheiro no final do mês, com mais baixas qualificações e por isso menos ferramentas para encontrarem novos empregos, com vínculos laborais frágeis ou mesmo inexistentes, são sempre estes o elo mais fraco seja qual for o contexto. Já fomos resgatados com moeda própria e controlos de capitais e já fomos resgatados na zona euro e com menos instrumentos de política económica e orçamental à nossa disposição.

Eu acredito que a pobreza e as desigualdades são uma preocupação e prioridade para a generalidade dos políticos e dos partidos. Têm é caminhos muito diferentes para tentar chegar ao mesmo objectivo. Uns mais eficazes do que outros, certamente, no curto e longo prazos. E ninguém tem a “bala de prata”, a solução, a receita que tudo resolve.

Não tem sido, aliás, por falta de tentativas diversas que estamos a falhar. Já nacionalizámos e privatizámos, já regulámos e desregulámos. Já tivemos moeda que desvalorizávamos para ganhar competitividade e já tivemos moeda forte, emprestada da Alemanha. Já apostámos nas qualificações, já nos apaixonámos pela educação, já tivemos “choques” tecnológicos. Já criámos e multiplicámos prestações sociais. Já subimos impostos, todos e mais alguns, para pagar tudo e mais alguma coisa. Já atirámos com investimento público para a economia, um racional e necessário e outro delinqente, que nos deu auto-estradas onde não circulam carros, estádios de futebol onde não se joga à bola, aeroportos onde não aterram aviões. E já cortámos cegamente no investimento público. Já tentámos reduzir os impostos para as empresas e já recuámos na medida. Já tivemos leis laborais mais rígidas e menos rígidas. Já tivemos horários laborais mais longos e mais curtos. Já incentivámos o negócio bancário com bonificações de juros para a habitação e já tivemos que resgatar bancos com dinheiro dos contribuintes. Já apoiámos a construção e o imobiliário e já lamentámos o peso que o sector teve na economia. Já fizemos os livros brancos todos que há para fazer, já chamámos gurus internacionais para nos desenharem “clusters”, já tivemos os PIN - Projectos de Interesse Nacional. A lista, feita de memória, podia continuar. “Bandeiras”, “apostas”, “paixões” e “compromissos” é coisa que não nos tem faltado. Uns mais à direita, outros mais à esquerda. Todos a sucederem-se, muitas vezes revertendo os que vinham de trás.

O que nunca tivemos foram políticas estáveis que permitam o investimento, o crescimento e a criação de emprego. Que não mudem a cada ano, a cada ministro ou, com sorte, a cada legislatura. Que garantam um horizonte de estabilidade a pequenos e grandes empresários, a trabalhadores e pensionistas, a gestores públicos ou privados. Que dimensionem o Estado às capacidades da economia e que libertem o essencial dos seus recursos para as políticas sociais, a redistribuição de rendimentos e para as funções que só o Estado pode exercer.

Demoramos a aprender mas um dia lá chegaremos: a melhor maneira de proteger os que de facto precisam é o crescimento económico e o investimento permitido pela criação de riqueza. Só se distribui o que existe e não temos que ficar surpreendidos que a grande distribuição que ciclicamente fazemos é de pobreza e não da riqueza que não criamos.

Não sei quando nem como vai ser a próxima crise económica e social em Portugal. Mas uma coisa é certa: os mais desfavorecidos continuarão a ser os mais afectados e aqueles que mais dificilmente vão recuperar depois dela. Talvez seja então mais inteligente tentar evitar essa crise, não?

 

 

Outras leituras

  

  • O bom senso tardou mas acabou por chegar. Passos Coelho já não apresenta e credibiliza o livro que nunca teria sido escrito se a sensatez e a decência não estivessem tão mal distribuídas.
publicado às 13:44

A crise está a explodir. Alguém tem a audácia de um plano estimulante para reanimar a Europa?

Por: Francisco Sena Santos

 

Nos anos 80 e 90, até mesmo na viragem para este século XXI, a União Europeia era vivida como uma ideia visionária e um sentimento político que entusiasmava pela sua cultura que tem como valores primários a liberdade e a solidariedade.  A presidência europeia de Delors (1985/95) e a evolução do continente no tempo da queda dos muros eram a turbina para esse sentimento de esperança. Havia a ilusão de estar em construção uma união de povos assente na procura de coesão e progresso num longo e consolidado pós-guerra em que já ninguém pensava nas guerras, sonhava-se o futuro com a Europa de Schengen e de Erasmus sem fronteiras.

 

Mas começaram a aparecer desconfianças, que foram crescendo à medida que nos adentrávamos neste século. A crise financeira de 2007 marcou a viragem. Ficou instalada no poder uma geração de dirigentes que reduziu o estimulante processo de integração europeia à obstinada defesa do euro e dos interesses dos mercados financeiros. Onde antes florescia o sentimento europeísta passou a crescer a desilusão ou a fúria e o antieuropeísmo avança como ressentimento robusto.

 

Quando a ambição de caminhos imaginativos de progresso para a Europa foi derrubada nem sequer ficou a sensatez. A condução europeia, cada vez mais distante e burocrática, levou a que se instalasse um sentimento dominante de perda. Entrou um tempo de precariedade difusa, trágica. Os que mandam na Europa impuseram as receitas da austeridade, a classe média baixou drasticamente o seu poder de compra, os pobres ficaram mais desamparados, o número de pessoas excluídas aumentou. Quebraram-se os vínculos que tinham unido os europeus na ilusão de uma União em busca da coesão. Os dirigentes europeus foram incapazes de propor uma discussão estratégica plural, democrática, na procura de soluções. Imperou a política de Berlim e com ela Bruxelas, a executora, desligou-se das pessoas, dos cidadãos.

 

Com o assédio do temor de cada vez mais pobreza e insegurança, perdida a confiança nas lideranças tradicionais, um número sempre crescente de cidadãos foi-se agarrando ao que lhe ia aparecendo com promessas de mudança. Entrámos no tempo das mensagens negativas, a explorar as inseguranças. Os media também tratam de fazer negócio com a decomposição que se instala. É assim que os britânicos – deve dizer-se: os ingleses – votaram pelo rompimento com a União Europeia. É uma escolha que mobiliza mais populismos e mais xenofobia, da Holanda aos Balcãs, passando pela França e pelos países que querem escapar à ameaça da Rússia pos-soviética de Putin, Hungria, Polónia, Bulgária e os outros.

 

Uma questão essencial tem de ser esta: vai prevalecer a devastadora impotência e o contágio negativo da última década europeia ou vai ser possível, finalmente, um rasgo para que a Europa volte a poder propor futuro?

 

Lê-se e ouve-se de muitos dos políticos europeus que chegou o tempo para relançar o ideal europeu. Mas até parece que eles estão, tal como os sumidos dirigentes ingleses que ganharam o Brexit, sem saber como lidar com o que têm pela frente. Falam de reaproximação com os cidadãos, mas não se vislumbra qualquer ideia concreta para concretizarem as intenções.

 

Será que algum líder tem coragem e é capaz de ousar um golpe visionário de fantasia e inteligência que livre os europeus do assédio constante da crise, dos tecnicismos, dos medos, das exclusões, dos muros e que volte a estimular o ideal da União Europeia? Se alguém o conseguir, ainda bem que houve este sobressalto do Brexit para despertar esse rasgo que acabe com a traição em curso a um projeto político que nasceu como união de paz e concórdia. Vale lembrar sempre que a Europa se uniu para que não se repitam massacres gigantescos como os das Grandes Guerras da primeira metade do século XX. Por agora, o que se vê, é, como advertiu o Papa, uma Europa em risco de balcanização. Com o reino britânico desunido, dividido em duas metades, a sair da União Europeia, portanto a legitimar que Escócia e Irlanda do Norte avancem para a independência, com inevitável dominó na Catalunha, eventualmente no País Basco e em outras ambições soberanistas. A crise está a explodir à nossa frente. Aparecerá alguma liderança audaz, corajosa? Alguém capaz de voltar a fazer crescer o encanto com a Europa?

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

Do lado americano, notícias de sensatez do eleitorado: Donald Trump em queda livre nas sondagens. Os eleitores dos EUA estão a abrir os olhos para o risco do voto populista e um salto para o desconhecido?

 

Afinal Mariano Rajoy nem precisou de ir a penaltis, ganhou no prolongamento mas vai ter de fazer política para conseguir um acordo, não apenas de poder como também de estabilidade, para o novo governo de Espanha. O PSOE perde, mas resiste ao tsunami anunciado. Saem derrotados os novos movimentos (Podemos e Ciudadans) e as sondagens que deram grande fiasco até mesmo na noite das eleições.

 

A Islândia é um país com apenas 330 mil habitantes e uma escassa centena de futebolistas profissionais mas conseguiu eliminar do Euro16 os criadores do futebol. Antes já tinham posto fora a Holanda. Até onde vai este fabuloso destino islandês? A Espanha que entrou bicampeã  mas agora reconhece fim de ciclo e há jornais, como o Superdeporte, que chegam a ser cruéis com o selecionador que antes levou a Espanha ao triunfo. Seja como for, o futebol é para ser uma festa, ninguém ganha com azedumes. Já agora: a seleção portuguesa que seja capaz de ganhar mas, sobretudo, apetece que seja capaz de encantar com o jogo, como às vezes faz.

 

As primeiras páginas escolhidas hoje são as do futebol.

publicado às 07:30

Olhamos lá para fora e quase tudo parece turvo. Pode melhorar?

Por: Francisco Sena Santos

 

Ken Loach, a um mês de celebrar 80 anos, acaba de levar a Palma de Ouro do festival de Cannes. É premiado por fazer cinema político sobre a solidariedade que desejamos e sobre valores que cultivamos mas que não estamos a ter acarinhados na Europa. Olhamos em volta e tudo parece confuso, turvo. Da Áustria acaba de nos chegar mais uma sacudidela: é por um triz, por apenas 31 mil votos, meia casa em qualquer dos estádios das equipas que em Portugal ganham campeonatos de futebol, que não se consumou a primeira eleição na União Europeia, desde a Segunda Guerra Mundial, de um chefe de Estado que é xenófobo e que se declara contra os ideais de um modo de pensar europeu.

 

Quando pensamos em Europa que imagens é que aparecem na nossa cabeça? Certamente algo como um sistema de boas relações, lugar homogéneo de liberdade, com afinidades político-económico-culturais, onde a vida democrática comum e a prática de um modelo social de solidariedade são protegidas. Foi com estes ideais que foram lançadas ajudas generosas para regiões menos desenvolvidas na Europa mais pobre. Foi com esse altruísmo que nasceu o programa Erasmus para a livre circulação de estudantes. E Schengen para nos livrar das burocracias de fronteiras. Até a (percebemos agora que muito mal preparada) moeda comum. Nesta Europa até já deixámos de evocar o valor supremo de ser terra de paz, tão fora do nosso presente estão os sofrimentos das grandes guerras. Provavelmente, faz-nos falta essa memória como fio que liga o passado ao presente e que dá alicerce ao futuro. Na entrada neste século XXI sonhava-se com uma Europa de prosperidade que fosse muito mais do que a soma dos distintos interesses nacionais. O que temos hoje é o oposto a isso tudo, em vez de solidariedade e estímulo crescem o egoísmo e o ressentimento. E as ameaças. E a xenofobia como um veneno que alastra com feroz vontade de exclusão. A par do desemprego, das incertezas e do medo. É um tempo de desencanto com esta tão heterogénea Europa e de persistente ausência de respostas eficazes à crise.

 

A Áustria, embora partida ao meio, esquivou-se esta semana à eleição de um presidente originário de um partido com herança pós-nazi e totalmente contra os valores fundadores da Europa. Mas na Polónia já governa uma direita tão anti-europeísta quanto contra os estrangeiros do sul. Na Hungria e na Eslováquia avançam idênticos nacional-conservadorismos. Em todos estes países e em outros mais a liberdade está a ser condicionada. Crescem os populismos em todos os cinco países escandinavos. Tal como na Holanda e na Itália. Em França, daqui a um ano, talvez o moderado Juppé, um cavalheiro de salão, consiga, provavelmente também por poucos votos, travar a chegada de Marine Le Pen à presidência.

 

O discurso que se impõe na agenda política europeia e que ganha votos é o de revolta contra o sistema que governou a tempestade de arrazadora potência desta última década. Os males já vinham de antes, mas a crise económica que não passa, a prevalência da ideologia financeira e dos interesses económicos e a globalização mal governada fez desmoronar as traves que suportavam o sonho ou a ilusão europeia. As classes médias que antes se sentiam atraídas pelo ideal europeu, agora já não têm aquela vontade de Europa. Tantos britânicos querem deixá-la. Tantos europeus estão a preferir o seu país entrincheirado frente aos mandatos de Bruxelas. Estão furiosos deste presente e têm medo do futuro, pensam que se protegem ao levantar barreiras.

 

Talvez o referendo sobre o Brexit, daqui a um mês, possa ajudar a um relançamento cultural e político da Europa. Talvez a Alemanha e a França e os outros consigam perceber que é preciso mudar bruscamente de rumo para salvar a União Europeia tal como ela foi sonhada. Talvez ainda possamos sair deste purgatório e evitar o inferno.

 

Faz pensar: em toda a Europa, apenas Portugal e Espanha, porventura em remoto efeito de vacina de Salazar e Franco, permanecem impenetráveis pela vaga populista que avança por esta Europa. Mas metade da Áustria, embora sem ter ganho a presidência, ufana-se pela enorme votação por um sistema que também é o proclamado por Trump nos EUA, e que continua a conquistar apoios entre quem está farto do que tem sido isto tudo.

 

O realizador Ken Loach, no filme agora premiado em Cannes, conta o drama de um viúvo com saúde precária perante a revoltante burocracia do sistema britânico de segurança social, mas um homem que não deixa de ter forças para ser solidário com uma mãe a quem fecham as portas. No palco de Cannes, quando falou ao receber a Palma de Ouro, Ken Loach denunciou “as políticas neoliberais que atiraram milhões de pessoas para a pobreza, conduzindo-nos para a catástrofe”.

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

Ficam a nu as maroscas políticas brasileiras. Ao 10º dia, um ministro do novo governo interino no Brasil é obrigado a demitir-se após a revelação de uma gravação feita em março em que, para tentar safar-se, conspirava contra Dilma. A história está assim, assim e assim em primeiras páginas de hoje trazidas pelo SAPO JORNAIS.

 

O perigo do discurso único: preocupação no Brasil com a falta de diversidade de pensamento e ausência de contraditório nos principais media. A discussão conduzida, há já vai para um ano, por Alberto Dines. 

 

Continua a ser de alto risco fazer jornalismo na Colômbia. A correspondente do El Mundo, Salud Hernandez-Mora, está desaparecida. Suspeita-se de sequestro.

 

De “Lay Lady Lay” a “Shadows in the Night”: Bob Dylan celebra 75 anos e escolhe cantar Frank Sinatra. E segue pela estrada fora.

 

Qual é a estrela rock que os historiadores do futuro vão lembrar?

publicado às 08:41

Imigrantes ou migrantes, tanto faz. Há um muro à sua espera

Por: Alice Barcellos

 

Na sua maioria estão em fuga dos seus países de origem destroçados pela guerra – Síria e Afeganistão. Vêm à procura de asilo político e de um novo começo. Aspirações que têm pela frente vários muros a escalar.

 

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 Família síria chega à ilha de Kos, Grécia. Foto: AFP

 

A História ensina-nos sempre lições e mostra-nos como o tempo é algo tão relativo. No ano passado, assinalaram-se 25 anos da queda do Muro de Berlim. Fizeram-se reportagens, entrevistas sentidas, reconstituições da data; líderes políticos passaram mensagens de paz e solidariedade. Lembrar para que nunca mais volte a acontecer.

 

A verdade é que, nem um ano volvido da celebração desta data, a Europa está mais dividida do que nunca, e o pior é que alguns destes muros não são físicos, são barreiras invisíveis construídas por ideias e políticas – talvez as mais difíceis de derrubar.

 

O que são 25 anos na história recente da Europa e do Mundo? Quase nada ou muito tempo, dependendo da perspectiva que se tenha e da análise que se faça. É muito, se pensarmos em tudo o que mudou ao nível político, social e económico durante este um quarto de século. É pouco, quando constatamos que erros do passado continuam a repetir-se aqui tão perto. É tão pouco quando ainda tantos de nós têm vivas as memórias de uma Europa dividida.

 

Abafada pelas notícias da crise na Grécia, a Hungria foi anunciando ao mundo o sucesso da construção de um muro na fronteira com a Sérvia. O governo de Budapeste quer travar a entrada de imigrantes. Só este ano já foram mais de 78 mil pessoas a tentar entrar na Hungria pela fronteira com a Sérvia. Destas, poucas realmente conseguiram. O Governo só concedeu asilo a 240 pessoas durante este ano e tem recebido críticas por causa do repatriamento sistemático dos imigrantes ilegais.

 

Imigrantes ou migrantes, tanto faz, na sua maioria estão em fuga dos seus países de origem destroçados pela guerra – Síria e Afeganistão. Recorrem a esta porta de entrada na Europa para depois tentarem seguir viagem para outros países, como Alemanha ou Áustria. Vêm à procura de asilo político e de um novo começo. Aspirações que vão, a partir de agora, ter de “escalar” um muro de 175 quilómetros de comprimento e quatro metros de altura, que custou 21 milhões de euros.

 

A Hungria, que entrou para a União Europeia em 2004, tem sido criticada por outros parceiros, mas nada que tenha demovido o governo de Victor Órban de desistir da ideia de um muro como forma de combater o enorme fluxo migratório que está a atingir a Europa.

 

Por ironia do destino (ou não), no mesmo período em que o governo húngaro se congratulou ao mundo pela sua solução para travar a imigração, a UE erguia também um muro à volta da Grécia e das soluções apresentadas por Tsipras e Varoufakis, rodeado de números, memorandos e exigências. Nas ruas, o povo grego batia com a cara nas portas fechadas dos bancos. Mais um tijolo no muro invisível que vai dividindo a Europa.

 

Apesar da divisão de ideias e mentalidades, a Europa continua a ser o local de sonho e segurança para muita gente, principalmente para quem está numa situação miserável, a fugir de guerras e conflitos. Para quem já não tem mais nada a perder a não ser a própria vida. E qual tem sido a resposta da Europa a estas pessoas? Muros.

 

Antes da Hungria, já outro Estado-membro da UE tinha optado por esta solução. A Bulgária começou a construir, no ano passado, um muro de 32 quilómetros na sua fronteira com a Turquia e tem planos de alargá-lo por mais 82 quilómetros nos próximos tempos. A guerra civil na Síria, que assola o país desde 2011, já causou mais de 4 milhões de refugiados. Metade destes está na Turquia, que faz fronteira com a Síria e que se tornou o país com mais refugiados do mundo.

 

Mais recente é o muro em que se transformou Calais. Se antes a cidade portuária era um ponto de ligação entre França e Inglaterra, e continua a ser para quem tem um passaporte, agora é um limbo para milhares de imigrantes que tentam a sua sorte numa fronteira cada vez mais vigiada.

 

Em julho, o Reino Unido anunciou o financiamento de 9,9 milhões de euros para a construção de uma nova vedação em Coquelles, além de assegurar o reforço da segurança na entrada para o Canal da Mancha.

 

O discurso anti-imigração de David Cameron e companhia conseguiu desfigurar a realidade que se vive em Calais, fazendo daquela fronteira um “campo de batalha” contra a imigração ilegal, que conseguiu roubar a atenção dos media.

 

Mas contra factos não há argumentos: este ano chegaram a Calais entre a 2 a 5 mil pessoas, contra as 200 mil que chegaram a Itália e Grécia. Entre os países da UE mais procurados por imigrantes, Inglaterra é o que menos concede asilo: em 2014, o país recebeu quase 26 mil pedidos de asilo e concedeu 10.050. A Alemanha concedeu 97.275 e a França 68.500.

 

Erguem-se novos muros em Calais, vedações são reforçadas, há mais arame farpado e polícias, mas o Mediterrâneo continua a ser a principal rota para aqueles que procuram entrar na Europa. Rota para milhares, cemitério para outros tantos, o mar que, outrora, ligou países e culturas é, hoje, cenário de tragédias constantes.

 

Foi a partir dos botes sobrelotados de olhares perdidos e desesperados que começamos a ouvir os termos “migrantes” e “ilegais”. Mais um “mito” criado à volta de quem aqui chega que é, sobretudo, refugiado (62% dos que chegaram à Europa pelo Mediterrâneo fogem das guerras na Síria, no Afeganistão e Sudão). E, acima de tudo, são pessoas. São vidas arrebentadas por guerras e outros tantos horrores que vão sofrendo desde que resolvem fugir da morte quase certa nos seus países.

 

É este facto tão simples que tem passado ao lado, como um barquinho de papel numa piscina, dos nossos líderes políticos. É inconcebível virar as costas e fechar as portas a estas pessoas. Vai ser fácil acolhê-las e lidar com a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial? Não. Mas continuar a erguer muros e a fechar os olhos não pode ser a única e vergonhosa resposta que temos para dar.

 

Alice Barcellos é jornalista de profissão e poeta de coração. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1986, mas trocou a cidade Maravilhosa pela cidade Invicta há 15 anos. Adora contar estórias, quer seja em texto, fotografia ou vídeo. Quando não está a trabalhar no SAPO (e em outros projetos que vai participando), gosta de ter a cabeça voltada para o mar e para os livros, para os seus gatos e cadela ou jogar conversa fora com amigos.

publicado às 11:03

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