Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

O Portugal de “mexam esse traseiro” e o Portugal de “o meu irmão bateu-me primeiro”

 Por: Rute Sousa Vasco

Na semana que hoje termina, duas entrevistas merecem uma leitura atenta. Ambas falam de Portugal e dos portugueses, ambas trazem uma visão do que somos não encapsulada no que fica bem a toda a gente dizer que somos. Os entrevistados são de áreas políticas bastante diferentes e têm uma visão do mundo substancialmente distinta, mas ambas as entrevistas nos remetem para um país de pessoas pouco exigentes e de verdades feitas, o que na realidade é capaz de ser uma e a mesma coisa.

 

 

Os entrevistados são, respectivamente, Nuno Garoupa, professor universitário e ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, ao SAPO24, e José Soeiro, deputado do Bloco de Esquerda e autor do livro “A Falácia do Empreendedorismo”, ao Jornal I, e os entrevistadores, pela mesma ordem, a Isabel Tavares e o Nuno Ramos de Almeida. A qualidade das duplas também se traduz na qualidade da conversa.

 

Sobre a exigência

 

Diz Nuno Garoupa: “Podemos fazer leis mais estreitas em relação aos períodos de nojo, por exemplo, mas se as pessoas quiserem dar a volta à lei continuam a fazê-lo. O problema é que a sociedade portuguesa não é muito exigente. Não vale a pena falar em nomes populares, mas há várias pessoas que publicamente se fazem facilitadores e continuam aí sem qualquer problema social, já nem digo legal ou de outra natureza, em vez de ficarem afastadas durante anos.”.

 

Os facilitadores são uma profissão altamente promissora em Portugal. E não são apenas os facilitadores-negociadores, aqueles que sabem coisas, que têm uma agenda de números de telefone valiosa e sobretudo pessoas que os atendem quando ligam. Há todo um outro escalão que vive em modo agenda de almoços, jantares e eventos a que não podem faltar, que não se esquece do telefonema sempre cortês a dar os parabéns, à direita e à esquerda, que está sempre ansioso de proximidade por qualquer lugarzito que cheire vagamente a poder. Este segundo escalão tem, por sua vez, amigos que deles não se esquecem porque sabem bem o quanto facilitam naquelas situações em que são precisas vozes para fazer o coro do aplauso ou da defesa da honra pública. Nice guys.

 

Sobre as verdades feitas

 

Diz José Soeiro ao Jornal I: “…começámos a frequentar cursos de criação do próprio emprego, cursos de empreendedorismo e para desempregados. Fomos, nomeadamente, a cursos da Associação Nacional de Jovens Empresários, num desses fóruns do empreendedorismo. Nós vamos para uma sessão que tinha como tema “Conquistar Emprego em Tempos de Crise – Estratégias para o Sucesso”, em que o formador, no final da sessão, revela a fórmula do sucesso, que era o MET ao quadrado, e pergunta às pessoas o que significava essa sigla. Umas dizem motivação, emprego, trabalhadores, tenacidade... Ninguém acertava, e ele revelou no fim que era “mexam esse traseiro ao quadrado”. Por um lado, é caricato e quase ridículo, mas é verdade que estas sessões existem e são financiadas pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional e são apresentadas a milhares de desempregados como uma saída para o problema do desemprego.”

 

Para muitos, o empreendedorismo é simplesmente a pílula do dia seguinte para todos os que ficaram ou nunca encontraram sequer um emprego. Já assisti pessoalmente a dezenas de discursos iguais, com as mesmas palavras “curativas” – aquelas que, depois de ouvidas, transformam para sempre a vida de quem as escuta e fazem nascer o "homem novo". Há várias premissas na bula desta pílula magnífica: 1) Todas as pessoas têm ideias e já agora boas ideias de negócio 2) Todas as pessoas são capazes de executar ideias de negócio 3) Se há pessoas que não têm ideias ou capacidade de execução para serem empreendedoras, têm de ser treinadas, admoestadas, corrigidas. MET ao quadrado – mexe esse traseiro, pois então.

 

Esta verdade feita de que somos todos empreendedores, porque essa é a maneira certa de viver nos dias de hoje, provoca danos a vários níveis. Em primeiro lugar, aos elos mais fracos – aos que não são, não têm qualquer aspiração ou capacidade para ser, mas, por se encontrarem em situação de desemprego, procuram uma solução, qualquer solução. Muitos destes já foram medicados com a pílula e muitos já sofreram efeitos secundários perversos – como, por exemplo, ficarem ainda em pior situação sendo patrão do que na condição de desempregado.

 

Em segundo lugar, esta verdade universal prejudica também quem efectivamente tem ideias e capacidade de execução, quem efectivamente é empreendedor – e sim, felizmente, temos hoje um número crescente de pessoas que, por opção e pelas competências que detêm, querem ser donas do seu próprio projecto, seja ele um negócio ou outra coisa qualquer. São óptimas notícias num país avesso ao risco e ao fracasso. Mas é péssimo quando este grupo é confundido, o que não acontece poucas vezes, com a tribo de wanabees que gastam o léxico do empreendedorismo, não perdem romaria a conferências e afins e a única ideia que efectivamente têm em mente é que é preciso saber aproveitar a “onda” do empreendedorismo. Têm bico amarelo como um pato, têm penas como um pato e andam como um pato. Logo, devem ser um pato. Neste caso, um empreendedor.

 

A presunção de que uns e outros são a mesma coisa é apenas intoxicação – e em alguns casos veneno.

 

Facilitadores e ‘empreendedores-wanabee’ são faces diferentes de uma mesma moeda. O Portugal pouco exigente consigo próprio de que fala Nuno Garoupa. O Portugal em que os amigos e conhecidos dão um jeitinho a quem não for muito incómodo e souber estar no sítio certo. O Portugal em que não se fazem juízos críticos, porque nunca se sabe quando nos calhará a nós. Nuno Garoupa refere-se a este modus operandi como a infantilidade de o meu irmão bateu-me primeiro: “Quando se colocou a discussão de Maria Luís Albuquerque ir para a Arrow Global, um dos argumentos do PSD e da direita mediática foi que havia o caso de Maria de Belém na Espírito Santo Saúde e de Manuela Ferreira Leite no Santander. Ou seja, o argumento não foi se pode ou não e por que motivo, mas sim é aceitável porque outro já fez. Isto é um argumento de recreio (…) Provavelmente, Maria Luís estava errada, como esteve Maria de Belém, como esteve Manuela Ferreira Leite e esta dinâmica reflecte alguma falta de maturidade da nossa sociedade nestes assuntos”.

 

Estes tiques nacionais que teimam em não desaparecer são uma espécie de nuvem por cima das nossas cabeças, mesmo que invisível, mesmo nos dias de sol. Ajudam certamente a explicar que, de acordo com o Índice Vida Melhor que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) divulga de dois em dois anos, Portugal seja o país mais insatisfeito com a vida que leva. Lê-se no Público: “Como é a vida em Portugal em 2016? Os rendimentos estão abaixo do nível médio da OCDE. A insegurança no mercado de trabalho é grande. A taxa de desemprego de longa duração atinge os 8,3%. Desde 2009, há cada vez mais pessoas a trabalhar longas horas por rotina.”

 

Isso faz de nós insatisfeitos, mas não exigentes. À excepção de facilitadores e empreendedores-wanabee. Eles andam por aí e dão-se bem com o nosso clima.

 

Tenham um bom fim de semana.

 

 

Outras sugestões de leitura

 

Sobre a exigência ou falta dela e as verdades assim-assim, temos mais um capítulo da novela Banif. Afinal não havia pressa, diz a Comissão Europeia, e as férias na neve não tiveram qualquer impacto na pressão para a decisão sobre o futuro do banco. A decisão foi das autoridades portuguesas, diz a Comissão. De certeza que a história não fica por aqui – stay tuned.

 

A Comissão Parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto realizou esta semana, no dia 1 de junho, uma Audição Parlamentar sobre “Os Novos Desafios da Comunicação Social”. Não tenho link para partilhar, mas estive presente e esta foi e é não apenas uma iniciativa que dá sentido ao espírito que uma Assembleia da República deve ter, como foi organizada tendo como primeira premissa efectivamente ouvir e não discursar. O Parlamento é um dos locais por onde deve passar a discussão sobre o futuro dos media e o impacto no tipo de democracia em que queremos viver e esta iniciativa só pode ser de saudar.

 

E fecho com uma ideia que primeiro se estranha e depois se entranha. O ‘culpado’ é Elon Musk, o senhor Tesla, o senhor SpaceX, o grande senhor da inovação nos dias de hoje. É provável, disse ele, que todos nós, humanos, não sejamos mais do que personagens de uma espécie de videojogo criado por uma civilização mais avançada. Ouçam-no e decidam se querem ou não entrar nesta discussão.

publicado às 13:43

Vamos já almoçar?

Por: António Costa

 Manuel Caldeira Cabral é um crente. Em quê? Crente nas promessas dos empresários e gestores da restauração, nas juras de redução dos preços junto dos consumidores e na contratação se o Governo descer o IVA do setor de 23% para 13%. E se tal não suceder? “Ficava preocupado”, diz o ministro da Economia. Pode começar já.

 

A decisão de aumentar o IVA da restauração da taxa intermédia para a taxa máxima resultou, sabemos, de uma imposição da troika e da necessidade de garantir receita fiscal, sobretudo num setor onde a fuga ao fisco era enorme. Era - é hoje menor por causa dos novo mecanismos de controlo e fiscalização como o E-fatura. Mas resultou também num incentivo, à força, para mudança de investimento dos não transacionáveis para os bens transacionáveis, isto é, para a exportação. Porque deixou de existir um benefício artificial, pago por todos nós, os contribuintes. O auto-emprego, o empreendedorismo, foi feito durante anos à custa da abertura de cafés e restaurantes em cada canto. Em 2016, teremos em Lisboa o WebSummit e não é por mero acaso.

 

A receita, claro, aumentou muito, o emprego diminuiu, sim, mas também surgiram nos últimos quatro anos alguns dos projetos e iniciativas mais criativas e inovadoras do setor. Novas cadeias de restauração, que concorrem com marcas internacionais, como o H3 ou a Padaria Portuguesa, e restaurantes de nível internacional, como os do chef Avillez. O setor é hoje mais cumpridor das suas obrigações fiscais, é sobretudo mais sofisticado, com novos modelos de negócio.

 

Portanto, a promessa do PS e que o ministro da Economia diz agora querer cumprir – sim, já sei, este governo cumpre – serve apenas para satisfazer uma corporação que deu muitos votos, a da restauração. Mas a promessa do Governo, na verdade, vai mais longe, e convém sublinhá-la. O governo vai descer o IVA na restauração e a restauração vai descer os preços e vai contratar.

 

Um ponto prévio. Caldeira Cabral mostrou, nesta entrevista ao jornal Público de domingo, que é mesmo um ministro independente. Construtivo em relação ao que o anterior governo fez, sem a preocupação de reverter, nem que seja na linguagem. E com uma visão acertada da função. Dito isto, é ministro, tem compromissos, ou melhor, tem de cumprir os compromissos do partido ao qual aceitou juntar-se. É o preço a pagar, mesmo que não concorde com eles. E será provavelmente o caso.

 

Caldeira Cabral acredita que o setor vai baixar os preços, e é por isso que vai descer o IVA. Sabe, o ministro, que nunca isso sucedeu quando o IVA baixou? Sabe, claro, que as descidas do IVA são sempre, nos setores de bens não transacionáveis, uma transferência de riqueza entre contribuintes e servem basicamente para aumentar as margens dos empresários do setor.

 

Depois, surge sempre o emprego, a outra razão para descer o IVA. Como o setor perdeu milhares nos últimos anos, só pode ter sido por causa do IVA, certo? Errado. Os preços não aumentaram, como mostram os dados da inflação, por isso, a quebra do consumo deveu-se à quebra de rendimento dos portugueses em geral. Agora, com o IVA à taxa intermédia, os preços não vão baixar, talvez aumente o consumo por causa da aumento do rendimento dos portugueses, via salários da função pública e redução da sobretaxa. Como não resultam da produtividade, veremos os resultados a prazo, nomeadamente na frente externa, mas, no curto prazo, poderá ter até efeitos positivos.

 

Agora, o que quer o Governo? Com todo o respeito pelos empregados da restauração, não é aí que Portugal precisa de mais emprego, não é nas profissões menos qualificadas, como é o caso. Os que caíram no desemprego têm de ter formação profissional, muita, para uma integração profissional, sim, mas noutros setores, mais necessários e com outro valor acrescentado para a economia.

 

É melhor deixar as declarações de ‘preocupação’ para trás, sobretudo porque, depois, não faz sentido deixar cair ameaças ao setor porque tem a tutela do consumidor e da concorrência. É melhor começar já a preocupar-se com as explicações que terá de dar, depois, aos portugueses por falhar uma promessa.

 

 

ESCOLHAS

 

Finalmente, entramos na última semana das presidenciais e, se os votos ajudarem, na próxima segunda-feira, estará escolhido o sucessor de Cavaco Silva. Como se antecipava, o que não foi esclarecido na pré-campanha e nos debates não seria clarificado nas arruadas e comícios, que servem mais para mobilizar votantes do que para informar eleitores. Os dados estão lançados, Marcelo Rebelo de Sousa, aposto, ganhará à primeira volta. Não pelo que fez no último mês, pelo que construiu nos últimos 20 anos. E também pode agradecer a António Costa que, ao permitir que o PS não apoiasse ninguém à primeira volta, está a criar um caldo interno difícil de gerir. Veremos se as divisões violentas dos últimos dias, entre apoiantes de Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém, até entre ministros, não vão para além das presidenciais. Qualquer que seja a sua decisão, vote.

 

E, para terminar, sabe quantos turistas usaram a plataforma Airbnb em 2015 para se instalarem em Portugal? Cerca de um milhão, o dobro de 2014. A Airbnb é uma plataforma digital que só em Portugal tem registadas mais de 34 mil casas de todos os tipos. Os números são dados pelo diretor-geral ibérico da empresa, Arnaldo Muñoz, em entrevista ao jornal Público, que pode ler aqui.

publicado às 10:57

O ano do entusiasmo com a Web Summit de Lisboa

Por: Francisco Sena Santos

 

O vocabulário, ampliado com novas palavras que refletem as novas realidades, dá-nos uma medida da imensa aceleração que está a caracterizar esta primeira década e meia do século XXI. As redes sociais, nascidas com o novo milénio, tal como todo o sistema de comunicação, a economia, a alimentação ou até os modos de vida, engendraram um vocabulário inédito, expressões, anglicismos, acrónimos, que definem muitos dos recursos do nosso dia a dia.

 

Em 2000 ninguém sabia que estava para aparecer uma enciclopédia universal multilingue (funciona agora em 291 idiomas) e de acesso gratuito e instantâneo chamada Wikipédia. Ainda ninguém falava de Twitter ou de hashtag. Selfie, post, chat, emoji ou bitcoin são outros dos novos termos que passaram a ser banais. Tal como o prefixo E (e-book, e-commerce) ou acrónimos como COP21, LGBT, YOLO ou LOL. A quinoa alimenta a virtude dos alimentos sem glúten neste tempo de suplementos energéticos. E quem imaginaria que os Oxford Dictionaries escolheriam GIF (Graphic Interchange Format), palavra que irrompe como verbo para significar o intercâmbio de imagens em ficheiros na web.

 

Não podemos imaginar que novos termos vai introduzir 2016. Alguns poderão ser palavras-chave num grande acontecimento global que este ano se instala em Lisboa, com mais de 40 mil participantes, entre 7 e 10 de novembro: Web Summit 2016. É a grande cimeira da web e das startup. Há quem lhe chame o “Forum de Davos dos geeks”. É uma maratona onde são mostradas as novas tendências do empreendedorismo com base na web e onde milhares de startup vão mostrar as suas inovações.

 

Quando em setembro passado Paddy Cosgrove, o fundador, em 2011, da Web Summit, anunciou a transferência do evento de Dublin (onde se realizou nos últimos cinco anos) para Lisboa, assumiu um duplo elogio a Portugal: à alta qualidade do acolhimento em Lisboa e à boa nova aventura que está a ser o empreendedorismo inovador de tantos portugueses. Os bons exemplos são múltiplos: da Unbabel que revoluciona os processos de tradução à Uniplaces, plataforma que ajuda os estudantes Erasmus a encontrarem alojamento, passando pela premiada Codacy, a empresa que Jaime Jorge fundou com o nome de Qamine e que desenvolveu um serviço destinado a empresas para rever automaticamente e encontrar falhas em códigos informáticos ou a Talkdesk, de Cristina Fonseca e Tiago Paiva, que permite criar um call-center em cinco minutos.. E há, com origem em Portugal, vários outros unicórnios, jargão utilizado para referir startup avaliadas em mais de um milhão de dólares. Há muito empreendedorismo português a conseguir resultados estimulantes na expansão internacional e a Web Summit, em novembro, vai ser uma grande montra global com alto potencial para gerar novos financiamentos.

 

UMA LINHA VERMELHA DESGRAÇADAMENTE ULTRAPASSADA

 

A Web Summit em Lisboa é uma boa expectativa para 2016. Mas este novo ano começou logo ao segundo dia com uma notícia que rompe as piores previsões: a Arábia Saudita, com um conceito de “justiça” semelhante ao da organização que se apresenta como Estado Islâmico (EI), depois de no ano passado ter executado mais de 158 pessoas, agora, no primeiro sábado do ano, voltou às execuções em massa, com o enforcamento ou fuzilamento de 47 homens que o regime saudita considera terroristas. Entre esses 47 executados está o clérigo Nimr al-Nimr, um pregador pacifista, líder religioso da comunidade xiita da Arábia Saudita – é uma minoria, representa cerca de dez por cento dos 18 milhões de naturais da Arábia Saudita. A população xiita concentra-se na região oriental, a mais rica do território saudita por ser a grande mina do petróleo. Nimr al-Nimr destacou-se ao liderar, em 2011, o segmento saudita da chamada “primavera árabe”. É decapitado por ter liderado um protesto democrático.

 

Esta execução é uma bomba contra o processo de estabilização que está a ser tentado no Médio Oriente e rebenta com a coligação regional oficialmente em campo contra o EI. Está desencadeada a rutura, simultaneamente religiosa e política, entre as duas principais confissões muçulmanas, entre sunitas e xiitas, e entre as potências confessionais rivais, Arábia Saudita e Irão, máximas zeladoras da ortodoxia de cada uma dessas comunidades. Estamos não apenas perante o mais recente capítulo da guerra secular entre sunitas e xiitas (a cisão vem do tempo da sucessão ao profeta Maomé no ano 632 D.C.) mas também perante um efeito da revolução energética desencadeada pelos avanços tecnológicos dos EUA e que fez tombar o preço do petróleo. A petro-monarquia saudita parece não estar capaz de conter o seu desespero e tenta assim, através de mensagens como esta, mostrar-se poderosa.

 

Junta-se a este inquietante cenário uma lástima ocidental: é uma desgraça que a Europa e o conjunto do mundo democrático, que sempre tem cultivado uma aliança acrítica com as monarquias do Golfo, continue estrábico frente à feroz e medieval ditadura saudita que oprime a oposição e os direitos humanos.

 

Com esta provocação saudita a procura da paz que se quer conquistar fica pior que antes. A área de conflito e guerra no Médio Oriente corre o risco de ficar ampliada.  Bem alerta o Washington Post para este risco de cenário de catástrofe. The Independent chega a perguntar se a estratégia saudita não passará por fazer destroçar o acordo nuclear conseguido com o Irão.

 

Por entre tudo isto, o Ocidente, que se fica pelos protestos de circunstância perante o desdém saudita, não só perde espaço de manobra para a pacificação, como perde mais no estatuto que reivindica de consciência humanista global.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA

 

Uma primeira página escolhida hoje no SAPO JORNAIS: o Charlie Hebdo, com a imagem de um deus assassino armado com uma kalachnikov, denuncia “os fanáticos embrutecidos pelo Corão” e puxa para título “um ano depois, o assassino continua em fuga”. O jornal está vivo mas os assassinos continuam por aí. Lá dentro desta edição há textos de Isabelle Adjani, Juliette Binoche, Charlotte Gaingsbourg, Elizabeth Badinter, Ibrahim Maalouf e Taslima Nasreen. Tiragem: um milhão de exemplares. Riss, atual diretor do Charlie, clama que em 7 de janeiro do ano passado, com 60 disparos em três minutos, a eternidade caiu-lhes em cima. E continuam a ousar rir também do religioso, claro.

 

Obama, a um ano do final do mandato presidencial, reabre o combate pelo controlo da venda de armas de fogo nos EUA. Precisa de dar a volta ao Congresso para levar a melhor nesta luta impossível contra o flagelo da violência nos Estados Unidos.

 

Espanha e a Catalunha estão em impasse governamental após as duas eleições. O líder socialista basco já avisou que o espetáculo dado pelos barões do PSOE é lamentável: valem mais os interesses pessoais ou o interesse nacional? Mais explicações aqui. 

 

Capicua, “voz de todos nós”Aqui.

 

publicado às 07:14

Isto é empreendedorismo. Bem-vindos ao mundo do Tom Sawyer

Por: Rute Sousa Vasco

tom sawyer 2

De todas as cenas imperdíveis nas Aventuras de Tom Sawyer, uma é a master piece da psicologia invertida. Aquela em que Tom Sawyer é colocado de castigo pela tia Polly e obrigado a pintar o muro da casa. Rodeado de garotos de 11, 12 anos, o herói de Mark Twain não se deixa intimidar nem enfraquecer. Pelo contrário. “Já viram bem a oportunidade? Quantos miúdos da nossa idade não dariam tudo pela possibilidade de pintar um muro inteiro?”. O episódio acaba com toda a tribo a pintar o muro e este excerto devia ser elevado à categoria de encíclica na missa do empreendedorismo, entre outras coisas.

 

Os empreendedores – melhor, os startupers – da 2ª década do século XXI são muito diferentes daqueles que faziam uma nova empresa nas décadas anteriores, sobretudo os dos anos 90 e 80. Poderíamos especular que resulta dos ensinamentos anteriores, da experiência, de learning lessons, mas, na realidade, não é bem assim. Sobretudo, porque a maior parte destes startupers é demasiado novo para ter sequer memória da aventura yuppie dos anos 80 e mesmo da febre dotcom/nova economia dos anos 90.

 

Este artigo resulta de uma conversa numa noite de verão. Falava-se sobre a moda de ter uma startup. E de como, para muitos jovens empreendedores, mais do que ter um negócio e encontrar um caminho de realização, lançar uma startup é, também, uma forma de vida, um sentimento de pertença a uma comunidade e até um prolongamento da doce liberdade da adolescência quando tudo é ao mesmo tempo possível e impossível. Muitos podem ser contagiados pelo efeito ‘moda’, mas, na realidade, esse é um problema menor. O tempo passará e como todas as coreografias que não passaram disso mesmo, se esse for o caso, será substituída por outra coisa qualquer. Interessa mais o que fica, a mudança profunda. E uma das mudanças profundas destes anos em que o capitalismo mostrou as suas maiores forças e as suas terríveis fraquezas, é que nunca foi tão barato financiar novas ideias e colocar novas empresas no mercado.

 

O modo de vida de um verdadeiro empreendedor / startuper não é muito diferente de um miúdo de 18 ou 20 anos acabado de chegar à universidade. É verdade que alguns têm mesmo 18 ou 20 anos, mas vamos deter o nosso olhar sobre os mais maduros. Terão entre 25 e 35 anos, muitos com um doutoramento em áreas de grande complexidade e talvez já com uma ou duas experiências prévias em startups que não conseguiram ter sucesso. Mas eles continuam. Recusam entrar no pipeline das grandes empresas, fato e gravata, secretária, gabinete, carro de serviço. Vivem em apartamentos de renda dividida, comem hamburguers, adiam famílias o mais que podem. (a família, sendo uma escolha, traz o vínculo a uma prisão económica de que querem escapar).

 

Estes miúdos já são gente crescida. Não são caloiros, não são estagiários. Trabalham, por decisão própria, mais horas do que algum patrão lhes poderia algum dia exigir (e obter). Menos de 12 horas é para meninos. Fins de semana, feriados, férias … há quem não domine exactamente o conceito. Desde que saíram de casa dos pais que não conhecem outras companhias de aviação que não as low cost e outros hóteis que não os hostels ou os apartamentos arrendados a dividir por quatro, cinco, seis. Nada disso os perturba. Vivem num regime de escravatura moderna, mas são felizes. São escravos do tempo que não têm, das horas sem fim a desenvolver produtos, do compromisso multi-funções que os torna CEOs, programadores, cientistas, marketeers, helpdesks, moço de entregas, motorista. O que for preciso. São felizes.

 

Para alguns, um dia as coisas correm bem. O que é correr bem? É conseguir um investimento. É poder dizer à tribo de startupers ‘nós levantámos um milhão’. Levantaram de onde? Do banco? Não, de um ou de vários investidores que, vencidos pitchs, roadshows, prototipagens e alguma sorte ‘social’ decidiram investir naquela ideia, naquele projecto, naquela equipa.

 

Com um milhão, a vida muda, certo? Errado. Na maior parte dos casos não muda quase nada. Continuam a viver no mesmo apartamento arrendado, a comer os mesmos hamburgers e pizzas, a viajar nas mesmas low cost e a não ter o mesmo ordenado. Leram bem. A maioria destes startupers não tem ordenado atribuído, muitos vivem meses a fio sem qualquer tipo de rendimento, fazendo esticar a corda de poupanças, pequenos prémios de incentivo e afins. Quando o ‘big money’ chega, há euforia pela validação e pelo oxigénio, mas é uma euforia cautelosa. O dinheiro não é para gastar. Não vão a correr para um escritório maior e não vão contratar gente por aí além. Se calhar nem vão contratar. O dinheiro é para durar. O dinheiro é para garantir que conseguem perdurar no tempo. Mesmo que a startup não dispare. Mesmo que não haja a ‘tracção’ necessária.

 

O importante é não parar. O importante é continuar na corrida. Uma espécie de maratona, garantidamente uma prova de resistência em que o prémio que faz correr se chama liberdade. ‘Something mine’. Ser dono de mim próprio. É esse o bichinho. É essa a diferença. Porque as empresas grandes também caem (caramba, até os bancos caem). Mas sobretudo porque as empresas grandes se assomam como prisões onde todo e qualquer acto de liberdade, criatividade e irreverência será suprimido no instante em que se cruzar a porta de entrada. Pode ser percepção, mas esta percepção está a mudar uma geração. Os filhos dos yuppies não querem ser cavalheiros e senhoras de fato, gravata e vestido bem comportado. Não querem entrar às 9, sair 12 horas depois e ambicionar ao lugar do chefe, aos favores do chefe, ao aumento que poderá ser atribuído se-fizer-tudo-bem. Adiam os quatro filhos, o cão e a casa de praia para mais tarde. Têm tempo.

 

Os filhos dos yuppies querem ser cool, querem poder ir trabalhar de chinelo e calções e sobretudo querem ser livres. Alguns querem tão desesperadamente ser livres que estão dispostos a escravizar os ditos melhores anos da sua vida em busca do santo graal que os levará a essa liberdade. Outros farão ‘isto’ vida fora, se nada lhes interromper o caminho: mais que dinheiro, estatuto, qualidade de vida, querem um propósito. Querem mudar o mundo e, já se sabe, hoje é nas empresas que se muda o mundo.

 

Na plateia, em filas VIP, os donos do dinheiro assistem de forma privilegiada ao que se passa neste palco. Têm tantos actores, tantas narrativas diferentes, tantos efeitos especiais possíveis. Só têm de escolher, em função do seu perfil de investimento, da sua ganância ou generosidade e, também para alguns, do seu propósito. Mas nunca foi tão barato comprar ideias e criar novas empresas. Sem ter responsabilidade sobre equipas, salários, valores futuros. Vivendo para o presente e para um futuro a não mais que três anos. E podendo diversificar apostas em quantos actores e narrativas a carteira entender acomodar.

 

O mundo anda hoje mais rápido do que nunca e os startupers são a sua grande alavanca. Não param de crescer e não param de correr. Empregar cinco doutorados numa área de ponta não custaria a um investidor menos de meio milhão por ano. Trabalhariam certamente muito e bem, mas ainda assim menos e pior do que para eles próprios. O mesmo meio milhão é sinónimo de ‘levantar dinheiro’ para dois ou três anos, sem outros encargos. Se a ideia vencer, o investidor tem tudo a ganhar; se perder, não perde mais do que investiu.

 

No conceito americano, uma startup é uma empresa de rápido crescimento. Uma boa ideia, um negócio a crescer rápido e para vender rápido. Uma startup à portuguesa é outra coisa. Uma boa ideia, mas em muitos casos, também um longo calvário. Até que alguém acredite no projecto, até que todo o dinheiro gasto mostre evidências que vai ser um bom negócio. Quem fala com empreendedores regularmente, ouve demasiadas vezes a mesma história. Os investidores à procura de dinheiro rápido e fácil, os bancos à procura de dinheiro seguro e os incentivos que consomem horas e horas, muitas vezes em exercícios de pura especulação.

 

Ainda assim, cá fora, são invejados. Pelas grandes empresas, subitamente menos sexy. E por todos os que também decidem abrir um qualquer negócio e que em vez de terem uma empresa dizem que também têm uma startup. Uns e outros preocupam-se com a liturgia. Tentam fazer parte da religião, copiam-lhes os tiques, perseguem-lhes o estilo.

Nunca leram as aventuras de Tom Sawyer. E só por isso não sabem que para fazer de pintar o muro uma experiência, é preciso acreditar – ou fazer acreditar – que pintar o muro é ‘a’ experiência.

 

Rute Sousa Vasco é jornalista e directora de conteúdos do SAPO. Escreveu dois livros, "A sorte dá muito trabalho" e "Banco bom, banco mau". Gosta de política, de discussões acaloradas sobre por onde vai o mundo e de conhecer novas ideias. É também sócia de uma  empresa que acredita no poder das boas histórias, justamente chamada True Stories. Costumam dizer-lhe que foi empreendedora antes de tempo e por isso aprendeu mais cedo que ser patrão é mais trabalho e menos conhaque. É mãe do Miguel e da Margarida, os seus interesses maiores na vida. Entre os outros contam-se alguns prazeres da cozinha, escrever, ler e pensar.

publicado às 10:28

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2015
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D