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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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A matemática acaba onde começa a filosofia

Por: Helena Oliveira

 

Quem precisa de filósofos que pensem se à nossa volta se multiplicam “pensadores”e “opinantes”, que oferecem a sua sabedoria a um ritmo vertiginoso? Como serão os líderes e decisores do amanhã que estão a crescer com o telemóvel debaixo da almofada? Das grandes empresas, como a Google, às universidades, como Harvard, há notícias animadoras: a filosofia está de volta, bem como as humanidades em geral depois de anos em que tudo o que contava era tecnologia e matemática. Temos mesmo de voltar a aprender a pensar na era da técnica.

 

 

Na década de 80 do século passado, a poderosa AT&T sofria uma enorme crise de identidade que poderia ter dado cabo da sua reputação e levado o seu fundador, Alexander Graham Bell, o inventor do telégrafo falante, vulgo, telefone, a dar muitas voltas na tumba. Como seria de esperar, e perante as dúvidas sobre o seu futuro, a empresa voltar-se-ia para os consultores de gestão – espécime em franca expansão à época – na tentativa de obter a resposta que poderia ditar o seu futuro: entrar ou não entrar no mercado emergente dos telefones celulares.

 

Utilizando os habituais modelos preditivos matemáticos, os consultores chegariam à conclusão que os telefones móveis serviriam apenas um nicho de mercado e não um em que valesse a pena investir tempo e recursos. Assim, e tal como tinha acontecido com a Digital Equipment Corporation nos anos 60 que, erradamente, tinha também previsto que nunca existiria uma forte procura por computadores pessoais, a AT&T faria um enorme erro de cálculo no que respeita a uma das mais importantes inovações tecnológicas e comerciais dos nossos tempos.

 

Ao confiar exclusivamente na gloriosa exatidão das ciências matemáticas – indispensáveis, sem dúvida, para a construção de um telefone – a gigantesca empresa de telecomunicações esquecer-se-ia do mais fundamental: o que significaria realmente ter um telefone móvel e por que motivo alguém daria dinheiro para o adquirir.

 

Esta história é contada por Ryan Seltzer, ex-consultor de gestão, que deixou o negócio da consultoria num banco em Boston (antes trabalhara na Casa Branca) - para fundar uma empresa de filosofia – a Strategy of Mind – que ajuda agora muitas outras congéneres a responder e a resolver alguns dos mais complexos desafios de gestão, nomeadamente aqueles que começam com a mais básica das questões: o “como”.

 

Serve esta introdução para falar da importância da filosofia – ou, mais especificamente, da sua aparente inutilidade – nos tempos que correm, muito graças à crescente obsessão pelas ciências exatas – nomeadamente as que cabem no famoso acrónimo STEM – para ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas ou “aquilo que está a dar”, mas não só.

 

Sim, é certo que a relevância social das denominadas ciências humanas – sim, pasme-se, também são ciências – deambula perdida nas ruas da amargura, que o seu lugar institucional é mais do que desvalorizado e a sua função pedagógica crescentemente posta em causa. Sobre esta crise que paira sobre todas as áreas do saber que não prestam vassalagem à exatidão, escreve Manuel J. do Carmo Ferreira, Professor Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa (aposentado),na revista Gaudium Sciendi, da Universidade Católica Portuguesa: “irrelevância como saber, ineficácia como intervenção, desfasamento em relação aos avanços em outras áreas do conhecimento, são os traços maiores de uma prolongada crise de legitimação das Humanidades, a que se vem juntar a insegurança dos que as cultivam quanto à natureza e títulos de afirmação do seu campo disciplinar”.

 

Mas se a prosa sobre a crise das humanidades daria pano para muitas mangas, centremo-nos apenas na Filosofia, cujo lugar na sociedade contemporânea sofre de uma enorme ambiguidade: se, por um lado, existe um desinvestimento claro no seu ensino e aplicação – quem quer trocar um filho proficiente em tecnologia por um que se perca nessa coisa que não serve para nada chamada filosofia? – por outro, e em particular no mundo dos negócios, a filosofia parece estar a transformar-se num mantra repetido por muitos no sentido de que pode ajudar ao tão almejado sucesso, aquela palavrinha que todos usamos sem nunca pensarmos no seu verdadeiro significado.

 

Apesar de, na maioria das vezes, não aparecer em estado “puro”, mas antes transvestida em modas que acabam por ser efémeras, um tonzinho filosófico fica sempre bem, principalmente na poderosa indústria da liderança, que à falta de novas ideias, vai embarcando na onda do coaching, seguida pela vaga do mindfulness – que vai de vento em popa, a propósito – e de outras que tais, “perfeitas” para se lidar com a também chamada era da complexidade e nela triunfar, é claro.

 

Ora, se é complexo, é filosófico e mesmo que se atropelem definições, conceitos e práticas, se juntem alhos com bugalhos, retirados de receitas milenares chinesas, com pozinhos pós-modernos de inteligência emocional, temperados ainda - e porque as especiarias, seja qual for a sua origem, aguçam o espírito - com umas técnicas de relaxação indianas – a filosofia parece estar, em muitos casos, a ser usada como uma espécie de cozinha de fusão. E que vende, a propósito.

 

Mas e por outro lado, esta antiga senhora faz lembrar também aquelas tias velhas e chatas que somos obrigados a convidar para as grandes celebrações: tem um lugar à mesa, mas ninguém lhe dá a devida atenção ou, pior ainda, colocamo-la no lugar mais afastado do centro, para que não sejamos contagiados com o cheiro a bafio que dela emana.

 

Existe ainda uma terceira opção: a tia é velha e chata, mas também é rica e, enquanto herdeiros, podemos sempre descobrir um camafeu, feio, mas valioso, guardado num velho baú que, devidamente vestido com novas roupagens, poderá valer uma boa maquia num qualquer novo mercado zen, devidamente comercializado por um bom leadership coach e ser tema de workshops moderníssimos que tão bem ficam nos nossos currículos.

 

Tudo isto é mais plausível de acontecer do que manifestarmos a convicção de que o mundo não precisa apenas de tecnologias, algoritmos, folhas de excel, estatísticas e afins, mas também de pessoas que saibam pensar de forma crítica, que façam as perguntas certas, que questionem o que não parece passível de ser questionado e que arrisquem em novas teorias e formas de compreender esta época que, tal como todas as outras, não deixa de ter “food for thought”, muito antes pelo contrário.

 

Basta pensarmos em três ou quatro questões bem “modernas” e podemos logo começar pela que dá o mote a este texto. Têm as humanidades um lugar legítimo num mundo em que a ciência e a tecnologia parecem reinar? Será que a inteligência artificial irá comprometer a nossa moralidade? E se a neurociência vier a colocar em causa o nosso livre arbítrio? Deverão as evidências das alterações climáticas alterar a forma como vivemos? Habituar-nos-emos a viver em clima de medo face ao fundamentalismo crescente? Será possível que o extremismo de direita, em franco crescimento na Europa, possa dar origem a um novo holocausto? Deixaremos de raciocinar num mundo em que existem apps que dizem o que devemos comer, o que devemos vestir, quantas horas devemos dormir e por aí adiante?

 

Convencermo-nos desta aparente lógica da batata não é, de todo, fácil. Para que serve a epistemologia, a ética ou a filosofia moral, a filosofia política ou a ontologia, senão como palavrões que nem merece a pena googlar? E qual a importância de termos tempo para pensar e questionar, quando vivemos, em continuum, rodeados de tecnologias que nos satisfazem os desejos mais imediatos, nos dão o poder do conhecimento total, que nunca nos deixam sozinhos com os nossos botões e que não nos permitem ter tempos de ociosidade, a pré-condição que iria dar origem aos primeiros pensamentos filosóficos? E, mais ainda: se a filosofia, enquanto disciplina ou prática, deveria responder às inúmeras novas e complexas questões que se colocam à sociedade contemporânea, não foi o seu lugar usurpado pelos incontáveis “opinantes”, “comentadores” e “cronistas”, em conjunto com os milhares de milhões de pessoas que passam a vida a dissecar a nossa realidade e a emitir juízos sobre ela? Serve a filosofia para alguma coisa no século XXI?

 

Em muitas nações ditas desenvolvidas a ideia vigente é que não se deve apostar ou investir nesta que já foi considerada como “o saber mais abrangente”. Mas também existem alguns ventos contrários que pretendem desencalhar este velho “amor pelo saber”. E que estão a empurrar, ainda que lentamente, o universo académico, por um lado, e o da liderança, empresarial mas não só, por outro.

 

Para quê usar a cabeça se temos computadores?

 

 

Em 2014, e já no rescaldo da crise financeira de 2008, o presidente da Irlanda, Michael Higgins, lançou a “Iniciativa de Ética” com o objetivo de desenvolver, a nível nacional, um debate sobre os principais valores que deveriam reger a sociedade irlandesa na altura. A ideia, várias vezes repetida em discursos presidenciais, era a de que se o povo realmente prezava a democracia, deveria evoluir para uma cidadania de pensamento independente e ativo, sendo que recuperar a importância do ensino da filosofia nas escolas constituiria um dos mais preciosos meios para atingir esse fim. Para Higgins e numa interpretação mais ou menos livre das suas ideias, a filosofia seria o mais importante antídoto contra o pensamento de grupo, encarneirado, e o melhor ingrediente para colocar um fim no enjoativo consenso que há muito estava a limitar o livre pensamento.

 

Um ano antes, e logo ali ao lado, o Reino Unido iniciaria um estudo comparado, em 48 escolas do 1º ciclo, com a duração de um ano, no qual 1500 crianças entre os 6 e os 10 anos receberiam aulas de filosofia e outras 1500 não. O estudo, conduzido pela Education Endowment Foundation (EEF), uma organização sem fins lucrativos que visa estreitar o fosso entre os rendimentos familiares (baixos) e o aproveitamento escolar, pretendia testar a eficácia das premissas filosóficas através de um “ensaio clínico aleatório”, exatamente como os que são feitos com os fármacos com potencial de comercialização. Assim, 22 escolas funcionaram como grupo de controlo, enquanto as restantes 26 passaram a ter uma aula de filosofia por semana com a duração de quarenta minutos, no que é denominado como P4C (Philosophy for Children) No total, mais de 3 mil miúdos estiveram envolvidos na experiência e os resultados foram bem além do esperado.

 

O programa, da responsabilidade da Society for the Advancement of Philosofical Enquiry and Refletion (SAPERE), não tem como objetivo concentrar-se no estudo de textos de Platão ou Kant mas, através da leitura de histórias, poemas ou pequenas notícias da imprensa, ou ainda através da visualização de pequenos filmes, estimular as discussões sobre matérias “potencialmente”filosóficas. O objetivo é ajudar as crianças a raciocinar, a formular e a fazer questões, envolvê-las em debates construtivos e apoiá-las no desenvolvimento de argumentos.

 

O “material” pode ser tão díspar quanto a leitura de uma história sobre um miúdo que queria manter uma baleia de estimação na sua banheira ou simplesmente lançar-se uma pergunta, em particular no grupo dos mais velhos (entre os 8 e os 10 anos) que tenha o tal potencial filosófico: “por que motivo os tenistas homens recebem maiores patrocínios do que as suas congéneres femininas?”, “é legítimo privar alguém da sua liberdade?” ou “se pudesses, mandarias acabar com o livre pensamento?”, entre outras inúmeras possibilidades, não esquecendo as mais “óbvias” como “O que é ser humano?”, “se tivesses outro nome, serias uma pessoa diferente?”, “qual a diferença entre dizer uma mentira ou manter um segredo?”, “temos de estar tristes às vezes para podermos estar felizes noutras?”, entre uma panóplia alargada de outras tantas.

 

Os resultados? Não só bons, como inesperados. O mais surpreendente foi o facto de todos os miúdos que participaram nesta iniciação filosófica terem melhorado o seu aproveitamento escolar na matemática e na leitura, tendo em conta que o objetivo inicial nada tinha a ver com melhorias na literacia ou na aritmética. Em média, estes progressos corresponderam ao equivalente a dois meses extra de ensino e foram as crianças provenientes dos agregados mais pobres as que um passo maior deram na sua performance: as suas competências de leitura “avançaram” quatro meses, as de matemática três e as de escrita dois.

 

Também e no geral, todas as crianças participantes demonstraram uma maior confiança para falar em público, melhoraram as suas competências de saber escutar os outros (pares e professores), demonstraram uma paciência muito mais significativa face aos colegas e apresentaram uma melhoria generalizada na sua autoestima. Novas formas de pensamento e raciocínio lógico, em conjunto com uma melhoria significativa nas suas formas de expressão, ordenação de ideias e capacidade de argumentação foram também claramente atingidas.

 

Adicionalmente, estes efeitos benéficos da filosofia duraram dois anos, com o grupo intervencionado a continuar a ter melhores resultados muito tempo depois de as aulas terem terminado, daí que a avaliação final tenha sido apenas publicada em Junho de 2015. O programa foi entretanto adotado por inúmeras escolas em todo Reino Unido, sendo que existem atualmente mais de 3 mil professores formados em P4C e 60 mil crianças a usufruírem deste tipo de experiência. A metodologia utilizada pela SAPERE foi desenvolvida há 35 anos pelo professor norte-americano Matthew Lippman, em New Jersey, e é utilizada, em formatos similares, em mais de 60 países.

 

No fundo, e no que aos mais novos diz respeito e a não ser que haja um cataclismo que desligue a internet, filosofar será cada vez mais difícil. Os alertas multiplicam-se e não é preciso ser-se tecnofóbico para perceber que não é fácil pensar, imaginar ou questionar quando temos o mundo inteiro literalmente na mão e ao nosso dispor ininterruptamente. Quem imagina um adolescente a trocar likes, tweets, instagrams e similares por uma meia hora de silêncio ou de interiorização? Ou o ciberespaço por um espaço físico para pensar? Ou até um chat por uma conversa numa mesa de café, expressando, por exemplo, a tristeza que sente sem se limitar a utilizar uma mera “carinha” triste?

 

Salvo honrosas exceções, a verdade é que cada menos se troca a cuidadosa e morosa gestão do reflexo que se quer partilhar com o mundo, por momentos de autorreflexão. Sabido também é que esta inexistência de espaço e de tempo para se pensar não afeta, como sabemos, só as novas gerações. Em passo mais do que acelerado, tudo o que acontece no mundo é vertiginosamente comentado, opinado, e, é claro, partilhado por cerca de 3,5 mil milhões de pessoas – ou 40% da população mundial que tem acesso à internet. E, destes, um ou dois mil milhões consideram-se, certamente, como filósofos. Se opinam e comentam, logo existem. E assim, para que raio servem os filósofos?

 

Obsoleta e inútil, a quem interessa a filosofia?

 

 

Apesar de, em muitos casos, a filosofia parecer ter sido arrumada numa gaveta poucas vezes aberta, em 2010, o The New York Times resolveu tirá-la do armário académico onde vivia encafuada e partilhou-a com o resto do mundo: apesar de classificada como uma mera coluna de opinião, o espaço The Stone – definido como um fórum para filósofos contemporâneos e outros pensadores, tem vindo a atrair milhões de leitores interessados em questões tão contemporâneas como intemporais.

 

Tópicos universais como os mistérios da consciência ou da moralidade, são misturados com questões da atualidade tão díspares quanto a ética na utilização de drones, o controle de armas, as desigualdades de género, a crise dos refugiados, ou seja, com as questões sociais, culturais ou políticas do nosso tempo, naquilo que parece ser uma receita de sucesso que, afinal, até “dá likes” e partilhas.

 

E foi tão grande o êxito deste “espaço para pensadores” que a coluna semanal deu origem ao livro, publicado em janeiro deste ano, The Stone Reader: Modern Philosophy in 133 Arguments , o qual, de acordo com os seus editores, coloca uma significativa parte do total do discurso da filosofia moderna ao dispor dos leitores. O livro é dividido em quatro grandes secções – Filosofia, Ciência, Religião e Moralidade, e Sociedade e a sua introdução começa da seguinte forma: “O que é um filósofo? E, mais importante do que isso, quem é que realmente se importa com isso?”.

 

Num tom bem-humorado, Peter Capatano, editor do NYTimes e responsável pela edição dos ensaios publicados na The Stone, explica que a primeira pergunta - o que é um filósofo? – foi, exatamente, o tema do ensaio de lançamento da dita coluna em 2010. E qual não foi o seu espanto, e dos ensaístas que para ela iriam contribuir na altura, quando se aperceberam que o artigo tinha sido o mais lido de todos na edição online do jornal nesse dia.

 

Nesta mesma introdução, Capatano não se esquece de sublinhar a ideia de que a filosofia é considerada como supérflua e obsoleta por um conjunto substancial de pessoas, numa espécie de movimento “anti-intelectuais” que vigora nos quatro cantos do mundo, e muito em particular nos Estados Unidos. Mas rejeita liminarmente a ideia – dando como exemplo o sucesso da coluna em causa – de que a filosofia seja inútil, não tendo medo de responder à segunda questão formulada: “há muita gente que se importa, sem dúvida”, escreve. E é esta “muita gente” que poderá ajudar a ressuscitar o valor que a disciplina teve ao longo de grande parte da história da Humanidade.

 

De Harvard aos “cursos que obrigam a pensar” para CEOs

 

 

Essa ressurreição está também a ganhar raízes nos templos do saber da atualidade. Vejamos o exemplo da mais americana das universidades, onde os alunos chegam com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em racionalidades inabaláveis, mas onde uma cadeira denominada Teoria Política e Ética Chinesa Clássica reúne o maior número de alunos inscritos, só suplantada pelas de “Princípios de Economia” e “Introdução às Ciências Computacionais” (aqui tinha mesmo de ser, mas mesmo assim não é nada mau ocupar o 3ª lugar do pódio).

 

Sim, estamos a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi ministrada), procuram resolutamente a sua aula. A disciplina – que tem como base a relevância dos textos clássicos chineses para a atualidade – deu origem ao livro The Path: What Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life, lançado no passado mês de Abril e já comprado por editoras em 25 países, incluindo a própria China, onde vai ser publicado ainda este ano.

 

O segredo de Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido como” O Livro do Caminho e da Virtude” (uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões similares – mas “modernas” – que seguramente devem ter dado cabo da cabeça dos eruditos chineses há vários séculos.

 

Mas não só. De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas próprias vidas, os ensinamentos apreendidos, sendo que os que predominam são, na verdade, ideias simples que não perdem, de todo, atualidade. De acordo com as palavras do próprio Puett, e numa entrevista que deu, em 2013, à revista The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos – quando começou a dar aulas – os alunos da atualidade sentem-se “esmagados” por um caminho específico que têm de percorrer no sentido de objetivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que “estão a dar”).

 

O que Puett observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso escolar, e até as suas atividades extracurriculares, de acordo com planos e objetivos de carreira predefinidos e “demasiado” programados. Assim, são muitos os estudantes que juram que ao perceberem que o coração e a mente, maioritariamente separados na visão do mundo ocidental, estão profundamente relacionados entre si e que não podem ser encarados isoladamente – uma das principais “lições” que Puett tenta transmitir nas suas aulas – contribuiu mesmo para mudar as suas vidas, existindo até alguns que – sim, parece loucura, mas é verdade – que trocaram as tais ciências exatas e o que está a dar por cursos em áreas das obsoletas humanidades. Será está a prova da famosa citação que é atribuída a Confúcio e que reza “escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”?

 

Harvard não é a única universidade que está a descobrir as delícias da filosofia aplicada a outras áreas do conhecimento. Outras famosas universidades estão a ir pelo mesmo caminho e o mesmo acontece, em particular, com as escolas de negócios. E é aqui que entra, mais uma vez, o fator negócio, mas um que pelo menos ajuda a desenvolver neurónios e a transformar a gestão em mais do que uma obsessão pelos resultados que figuram nos seus relatórios trimestrais. Retomando a história que deu início a este texto, o fundador da empresa de filosofia Strategy of Mind, Ryan Seltzer, assegura que são cada vez mais as empresas que estão a (re)conhecer a prosperidade de outras suas congéneres que estão a apostar em doses similares de “matemática e filosofia”. Claro que o ex-consultor poderia estar apenas a vender os seus serviços, mas abundam os exemplos de várias organizações que comprovam a sua teoria (e o seu modelo de negócio).

 

Damon Horowitz é um dos casos mais clássicos quando se fala destas estranhas decisões em que executivos bem-sucedidos e, muitas vezes, provenientes exatamente de empresas de tecnologia, decidem experimentar os caminhos incertos da filosofia. E a verdade é que o reconhecido empreendedor resolveu abandonar o seu principescamente pago lugar no mundo tecnológico para tirar um doutoramento em filosofia (a sua formação académica anterior incluía uma um mestrado tirado no MIT Media Lab e estudos em ciências da computação em Stanford, onde agora dá aulas de… filosofia).

 

O atual diretor de engenharia e filósofo in-house (este cargo não é inventado, existe mesmo) da Google proferiu uma interessante talk em Stanford, em 2011, intitulada “Por que motivo deve trocar o seu emprego na área da tecnologia e matricular-se num doutoramento em Humanidades”, a qual explora o valor das humanidades – no geral, e da filosofia no particular – num mundo que está continuamente a ser inundado por novas tecnologias. O seu caso está longe de ser único e, em particular, nas grandes empresas em que a tecnologia e a inovação constituem os principais ativos.

 

O que pode ser facilmente explicado por Fareed Zakaria, um colunista do The Washington Post e autor de In Defense of a Liberal Education. Como escreve, “uma educação alargada ajuda a estimular o pensamento crítico e a criatividade e a exposição a uma variabilidade de áreas produz não só boas sinergias, como uma útil ‘fertilização cruzada’”. Afirmando que tanto a ciência como a tecnologia constituem componentes cruciais no mundo empresarial, o jornalista confere, contudo, exatamente o mesmo valor ao Inglês e à Filosofia, e recorda que num dos inesquecíveis discursos de Steve Jobs, o fundador da empresa da maçã explicava que “está no ADN da Apple o facto de a tecnologia nunca ser suficiente – mas, ao invés, ser o seu casamento com as artes liberais e com as humanidades que produz os resultados que fazem cantar os nossos corações”.

 

No mesmo livro, Zakaria defende ainda que a inovação não é, de todo, uma mera questão técnica, “mas antes a forma de compreender como funcionam as pessoas e a sociedade, o que precisam e o que desejam”, algo que, na verdade, esteve também sempre presente na Apple, cujo enorme sucesso em muito se deveu, entre várias outras coisas, à brilhante antecipação dos desejos dos seus clientes.

 

 

Mark Zuckerberg é outro exemplo de como a tecnologia precisa, indiscutivelmente, do saber produzido pelas ciências não exatas. O fundador do Facebook foi, também, um estudante clássico das artes liberais e simultaneamente um apaixonado pelos computadores. A antiguidade grega sempre foi um dos seus principais interesses e a psicologia a área que escolheu para se licenciar. E não é preciso ser-se muito inteligentes para perceber o quão ligadas estão as inovações do Facebook ao campo da psicologia. E é o próprio Zuckerberg que afirma que o Facebook “tem tanto de tecnologia como tem de psicologia e sociologia”.

 

Zakaria cita também um outro estudo sobre o futuro do trabalho, desenvolvido por dois académicos de Oxford e que concluiu que para os trabalhadores evitarem a “computorização” dos seus empregos, terão de adquirir, cada vez mais, competências sociais e criativas”. Para o autor, o que este exemplo significa verdadeiramente é que, e sem retirar valor às ciências exatas e ao inevitável trabalho com as máquinas (que é, sem dúvida, o futuro do trabalho), as mais valiosas competências serão aquelas “unicamente humanas” ou as que os computadores nunca conseguirão imitar (pelo menos assim se espera).

 

Mas e de volta à filosofia e ao valor do “tempo para pensar”, um artigo publicado na revista The Economist ajuda a melhorar a perspetiva no que a esta necessidade no mundo dos negócios diz respeito. Intitulado Philosopher kings: Business leaders would benefit from studying great writers, defende a criação de “retiros para pensar” em substituição das inúmeras modas a que os CEOs vão aderindo, sempre com o objetivo de melhorar as suas capacidades de gestão e liderança (desde as “provas” em ambientes hostis, aos passeios em plena natureza e já contando com os cursos de mindfulness, que o artigo refere como “bons para relaxar, mas maus porque esvaziam a mente”).

 

No mesmo artigo fica expressa a ideia de que é surpreendente o número de CEOs bem-sucedidos que estudaram filosofia, de que é exemplo Reid Hoffman, um dos fundadores do LinkedIn, que optou também por tirar uma pós-graduação em filosofia em Oxford ou o já falado Horowitz, mas também de como Bill Gates, enquanto geria a Microsoft, tinha por hábito isolar-se uma semana no campo para “meditar sobre um assunto importante” ou de como Jack Welch, enquanto CEO da General Electric, reservava religiosamente uma hora do seu dia para pensar, sem recurso a qualquer tipo de distração.

 

Adicionalmente, Peter Thiel, um reconhecido investidor de Silicon Valley apostou recentemente também em conferências para as quais são convidados pensadores de renome numa tentativa de “melhorar o mundo” e David Brendel, filósofo e psiquiatra, é um dos “gurus” mais procurados por estes executivos de topo para prestar aconselhamento sobre liderança, para além de escrever assiduamente na Harvard Business Review sobre como a filosofia pode ajudar a se ser não só um melhor gestor, como um melhor líder. Curioso – ou não – é também o facto de Brendel ser igualmente um dos co-fundadores da Strategy of Mind acima mencionada.

 

Como afirma também o filósofo in-house da Google, “os líderes do pensamento da nossa indústria não são aqueles que subiram, passo a passo, mas de forma monótona, a escada da carreira, mas os que correram riscos e desenvolverem perspetivas únicas”.

 

Ou seja, aqueles que se deram ao trabalho de pensar, questionar e criar.

 

 

 

publicado às 13:38

Leicester é uma lição. Sobre egos a mais e a menos

 

Por: Rute Sousa Vasco 

 

O futebol é feito de mitos e de heróis, não necessariamente por esta ordem. Também é verdade noutros desportos, seja no SuperBowl, na fórmula 1 ou no ténis, mas a popularidade do futebol faz com que o poder de uma boa história seja elevado à máxima potência. E na grande história dos mitos e heróis do futebol, o Leicester é, perdoem a informalidade, um capítulo do caraças. Tem todos os ingredientes: um não-herói (a equipa), um falhado (Ranieri) e todo o favoritismo dos grandes (Chelsea, Manchester United, Manchester City, Arsenal).

 

 

E como se tudo isto não fosse suficiente, ainda conseguiu provocar um dos maiores rombos de sempre nas casas de apostas. Há dez meses era canja para as casas de apostas propor 5000 contra 1 na possibilidade de o Leicester ser campeão e, já agora, do seu treinador, Claudio Ranieri ser dos primeiros a ser despedidos na Liga inglesa. O Leicester foi campeão, Ranieri é agora o “Thinkerman” e tudo isto custou cerca de 15 milhões de dólares às casas de apostas. (só para efeitos comparativos, é de registar que as apostas nas possibilidades do Leicester ser campeão ombreavam, a significativa distância, com as apostas sobre a possibilidade de Bono, vocalista dos U2, ser o próximo Papa ou Kim Kardashian tornar-se presidente dos Estados Unidos, em que se pagava, respectivamente, 1000/1 e 2000/1).

 

O milagre, como lhe chamaram muitos, teve o seu desfecho na 2ª feira, no preciso minuto em que terminou o jogo entre o Chelsea e o Tottenham. Um empate que retirou ao Tottenham a hipótese que ainda lhe restava de adiar o título do Leicester mais uma jornada. Mas isto são os factos. O que realmente torna esta história elegível daqui para a frente como case study para livros sobre superação e liderança, documentários apaixonados para os amantes de futebol e palestras de motivação é, como sempre será, a matéria humana.

 

Muito se escreveu nas últimas semanas sobre Claudio Ranieri. Depois da vitória, multiplicaram-se as referências. No Twitter, vimos inclusive o treinador do Leicester como “The Godfather” ilustrado com a emblemática frase: “Great men are not born great, they grow great - Don Claudio Ranieri”.

Ranieri foi, até ao passado fim de semana, o homem que nunca tinha sido campeão nacional, apesar de ter estado na liderança de tantas e boas equipas. Leicester não era sequer a primeira equipa inglesa que treinava e com a anterior as casas de apostas tinham certamente demonstrado maior confiança, já que era o reputado Chelsea. Mas Ranieri falhou esses campeonatos todos. Com o Chelsea, como com o Atlético de Madrid, como com a Juventus, como com o Monaco e mais alguns. Chegou ao Leicester depois de ter sido despedido de selecionador da Grécia na sequência do não apuramento dos gregos para o Euro2016.

 

O que aconteceu então em Leicester e que torna a história ainda mais extraodinária? A forma mais convincente como o vi explicado foi no artigo escrito pelo Pedro Candeias, no Expresso de sábado passado, dois dias antes de Ranieri se tornar campeão. Intitulado “O homem a quem aconteceu não sei o quê”, o artigo citava Stan Collymore, ex-jogador e agora comentador, que falava sobre o “problema de Ranieri” até chegar ao Leicester: “Ele era ótimo com os miúdos, mas não tinha jeito para os egos.”

 

Não é nada difícil passar este exemplo do balneário para as empresas ou para qualquer ambiente que exija liderança de equipas. E é muito tentador, sobretudo neste clima de excitação em torno de um tomba-gigantes, fazer apenas o elogio dos second-best, dos jogadores anónimos em qualquer equipa, versus as rock stars ou, se quisermos, os tipos verdadeiramente extraordinários (que não são, forçosamente, nas organizações os que assumem a pose de rock star).

Mas, apesar da enorme simpatia que esta história me desperta, tenho as maiores reservas que as suas lições de liderança sejam lineares como parecem. Pelo contrário, tendo a achar que a história-de-encantar do Leicester encerra, na realidade, verdades aparentemente opostas, mas só aparentemente.

 

É verdade que num ambiente de baixas expectativas, sem confronto com egos poderosos, o desafio da superação é bem mais convincente. Tudo a favor (coisa que as casas de apostas não perceberam). Se quisermos, essa é também uma das razões porque tantas pessoas hoje preferem sair de grandes empresas e iniciar o seu próprio negócio ou projecto profissional, sem confrontos diários com os egos corporativos ou as hierarquias à moda antiga que ainda subsistem. É uma boa razão para quem sai e uma má razão para quem fica.

Mas, liderar uma equipa de underdogs – de não-favoritos - por si só não faz de Ranieri um líder carismático, como agora provavelmente muitos verão, mesmo que dê imenso jeito para colorir ainda mais uma história que é, efectivamente, arrebatadora. No fim do dia, ganha-se e perde-se por causa das pessoas. E é óbvio que um grande jogador que não tem sentido de equipa, serve de pouco ou nada e provavelmente até prejudica. É igualmente verdade que qualquer pessoa prefere não ter de lidar com egos gigantescos, ainda por cima quando alguns são só mesmo ego e nada mais. É um desafio para treinadores como para CEOs, como para um chefe-cirurgião ou um professor na sala de aula. Líder, que é uma palavra de que não gosto especialmente, é alguém capaz de unir várias pessoas em torno de um objetivo comum. E um líder que só se consegue afirmar se não tiver de conviver e liderar outros tão bons ou melhores que ele dificilmente será grande.

 

Gosto muito da filosofia – foi assim que ele lhe chamou – de Ranieri no que respeita a não se intimidar com rock stars. ("All the time I said to my players I don't care about the name on the badge or the name of the opponents”.] É um excelente princípio para enfrentar adversários. E pode ser uma excelente maneira de lidar com as “estrelas” de qualquer balneário. Mas, nesta semana,Ranieri também repetiu e insistiu que não quer ‘big names’ no Leicester. E isso já me desencanta porque no futebol como em qualquer outra coisa faz falta e dá um gozo enorme ver os Cristianos Ronaldos que por aí andam.

 

Nas empresas portuguesas, a quem é apontado sistematicamente um défice de gestão, o caso Ranieri podia ser um bom pretexto para discutir como se motivam pessoas, sejam elas underdogs, rock stars ou simplesmente medianas. E como se faz com que todas juntas resultem efectivamente numa equipa. Se conseguíssemos mais vezes que isto acontecesse, provavelmente a vida das empresas corria melhor. Provavelmente, a vida do país corria melhor. Mas, suspeito, que tal como provavelmente aconteceu a Ranieri, muitas vezes não se ganham campeonatos apenas por problemas de egos. De quem lidera, sobretudo.

 

Não termino sem a lição mais óbvia que o caso Ranieri poderá deixar e que provavelmente mais falta faz a quem por ela procura. Ranieri foi o homem que nunca foi campeão com grandes equipas e que acabou campeão à frente de uma equipa pequena. Nunca saberemos se não aconteceu mais cedo por falta de capacidade ou mera infelicidade, mas sabemos que chegou o dia em que, com as pessoas certas e no momento certo, a vitória lhe sorriu. E isso, seja como for, será sempre uma inspiração para todas as vezes que se tenta e se falha.

 

Tenham um bom fim de semana!

 

Outras sugestões:

 

O Netflix estreou ontem a sua primeira produção europeia. "Marseille", conta com Gérard Depardieu e Benoît Magimel e não quer ser o novo "House of Cards", mas sim outra coisa. Vamos ver o quê.

 

 

E Marselha foi sempre uma terra de segundas oportunidades, escreve a BBC ao contar esta história de uma sinagoga que está a ser vendida a uma organização muçulmana que aí pretende fazer uma mesquita. Vale a pena ler.

 

 

Este artigo teve uma 2ª edição às 14h30 para inserir link do The Telegraph com informação mais detalhada sobre as apostas referentes às possibilidades de o Leicester ganhar o campeonato inglês.

publicado às 11:48

António Costa, árbitro ou jogador?

Por: António Costa

 

António Costa meteu as mãos na massa. Leia-se: o primeiro-ministro é um dos participantes ativos na nova configuração do sistema bancário nacional, no futuro do Novo Banco, do BPI e do Millennium bcp, o que nos faz recordar outros tempos, não tão distantes, em que a intervenção do Governo na ‘coisa privada’ deu péssimos resultados. Porquê? Porque está a fazê-lo da pior forma.

 

A discussão já é inevitável - estamos ou não a caminho da ‘espanholização’ da banca portuguesa? Portugal é ou não mais uma província espanhola aos olhos do BCE, que manda no Banco de Portugal? E o que é que isso impacta na economia e nas empresas portuguesas?

 

A resposta à primeira pergunta é afirmativa. A banca portuguesa corre o risco de ficar dividida entre o banco público, a CGA, e bancos comerciais controlados por Espanha. Há o terceiro setor, onde podem encaixar o Montepio e a Caixa Agrícola, e uma espécie de banco, o IFD, mas não têm o mesmo peso nem capacidade para financiar as empresas e a economia em geral. Além disso, as novas regras de supervisão europeia, a própria união bancária, são um incentivo à criação de grandes grupos na Europa, e o BCE prefere, claro, falar e acompanhar meia dúzia de grupos a partir de Madrid para toda a Península Ibérica.

 

Portugal, é preciso dizer, beneficia muito de ter bancos como o Santander, e precisa de instituições com aquela solidez e fôlego financeiro. Sem ‘mas’. Pressionam a concorrência no crédito aos melhores clientes, sim, e até funcionam como fator de melhoria das contas das empresas, por causa de um regime de avaliação de risco mais exigente do que aquele que é realizado por outras instituições. Agora, também é preciso acrescentar que o Santander tem em Espanha – porque é o seu país – uma estratégia de risco mais próxima da que têm hoje em Portugal bancos como a CGA, o Millennium bcp ou até o Novo Banco.

 

Como é evidente, o problema de endividamento das empresas portuguesas não deve ser assacado à banca, apesar de tantos erros cometidos ao longo de anos, por boas e más razões. É o que é, e que o programa da troika não resolveu. Esta é uma das raízes do problema, o que faz com que tantas e tantas empresas não tenham acesso ao financiamento, menos ainda ao do Santander, para citar o caso mais óbvio. O problema é que a economia portuguesa é a que é, é esta, não é outra. E não vai mudar de um dia para o outro, nem com um choque de risco da banca espanhola.

 

É por isso desejável que haja concorrência entre acionistas que controlam a banca, é desejável que os diversos bancos, dentro do que deve ser uma política de concessão de crédito rigorosa – com base nos depósitos dos clientes que lhes confiam as suas poupanças – procurem mercados e segmentos diferentes. É o que sucede quando há acionistas que controlam as decisões a partir de Madrid ou a partir de Luanda ou de Pequim. E, desejavelmente, de outras capitais internacionais.

 

A questão de Espanha coloca-se, em primeiro lugar, porque não há capital português e isso não se resolverá com manifestos, por mais bondosos que eles sejam. Também não pode ser o Estado a substituir capital nacional privado, já agora; convém que os governos saibam o que querem fazer com a CGD, o que é difícil de perceber. Portanto, o que estamos aqui a discutir é se é desejável capital estrangeiro além do espanhol na banca portuguesa. É, e muito.

 

Qualquer cidadão perceberá que a autonomia de decisão de um presidente de um banco em Lisboa é diferente se responder a Madrid ou a Luanda, se responder a acionistas espanhóis ou a acionistas de outras paragens, europeias, africanas ou asiáticas. É isso que está em causa, e é isso que um Governo deve definir estrategicamente. Não mais do que isso. Porque, no final do dia, o que conta é o capital, ou é isso que deve contar, e a qualidade da gestão.

 

Quando António Costa abriu a porta a envolver-se diretamente na decisão do Caixabank de controlar o BPI a qualquer preço, ou melhor, sem pagar o devido preço, meteu-se onde não deveria. Ainda há poucas semanas, o Governo admitia legislar à medida dos desejos e necessidades de um acionista espanhol contra um acionista angolano. É esse pecado original, o alinhamento com uns contra os outros, que levou Costa à posição em que está hoje. Não só árbitro, mas jogador.

 

 

ESCOLHAS

 

O mundo não está perdido, apesar do que se lê, vê e ouve. Ainda. Um presidente americano aterra em Cuba ao fim de 88 anos. Barack Obama faz uma visita histórica de três dias com um alcance geopolítico que vai muito além de Cuba e do seu futuro. Com um slogan, o da esperança. Para passar de slogan a realidade, o sucessor de Obama vai ter um papel decisivo. O regime cubano tem mais de 50 anos, o embargo comercial dos EUA a Cuba continua em vigor e há uma parte dos americanos que ainda não está convencida da bondade dos líderes cubanos. Mas Obama fica para a história, que não será a mesma a partir de agora. Acompanhe aqui, no Sapo24, os pormenores desta ‘missão’.

 

E quando a igualdade do género está em tudo, na igualdade de oportunidades e na igualdade das remunerações, surge uma voz, masculina, a assumir uma posição divergente. Citado pela BBC, o número um do ténis mundial, Noval Djokovic, questiona a igualdade de ‘prize money’ nos circuitos masculino e feminino. Porquê? Porque os homens levam mais espetadores aos courts e geram mais publicidade. As reações não se vão fazer esperar mas, antes de respostas precipitadas e emotivas, fica a pergunta: quem ganha mais no mundo da moda, as mulheres ou os homens? Nestes casos, provavelmente, a questão não é de género, desde que homens e mulheres tenham as mesmas condições de partida para mostrarem as suas competências.

 

publicado às 11:10

Os políticos são todos iguais e as empresas são parolas e chico-espertas (algumas delas)

Por: Rute Sousa Vasco

 

Joaquim Pina Moura. Joaquim Ferreira do Amaral. Jorge Coelho. José Luís Arnaut. Mário Lino. Miguel Cadilhe. Manuel Pinho. Miguel Beleza. António Mexia. Luís Campos e Cunha. Sérgio Monteiro. E agora Maria Luís Albuquerque.

 

Vamos brincar às diferenças? Consegue encontrá-las neste lote de políticos que, depois de funções governamentais, assumiram cargos de liderança em empresas do sector privado? Ou em fundações. Ou em empresas tuteladas pelo Estado.

 

Vale a pena jogar este jogo por várias razões. A primeira porque, mais do que nunca, vale a pena gastar energias a debater a mítica frase “os políticos são todos iguais”. Se nada fizermos quanto a isso, podemos esperar na volta do correio mais Trumps, porque aquelas coisas não acontecem só na América.

 

A segunda porque, efectivamente, os casos não são todos iguais. Iniciei este artigo com uma pequena amostra de nomes mediáticos mas, até nesta amostra, existem diferentes níveis de competência e de desfaçatez – e isso faz diferença quando se analisam teias de interesse entre funções públicas e empregos privados.

 

A terceira razão é, provavelmente, a mais difícil de avaliar sem paixões da alma e decorre das outras duas. À vista desarmada parece tudo a mesma coisa – são todos políticos que depois de estarem no Governo foram convidados para lugares de referência, muito bem pagos, no sector privado ou em instituições na esfera de influência do Estado. Todo e qualquer argumento usado para dizer “ah não, mas neste caso é diferente” escorrega em terreno pantanoso. E até as tentativas de ‘normalização’ são um exercício penoso quando se juntam nomes e cargos.

 

Uma das ditas tentativas de normalização tem sido, por exemplo, legislar a favor do impedimento de ex-governantes assumirem funções em empresas que tutelaram durante um determinado período de tempo.

 

Em teoria, pode resolver. Na prática, vemos, por exemplo, que um ministro como Mário Lino, que ocupou a pasta das Obras Públicas, aceitou, depois da sua saída do governo socialista em 2011, o lugar de presidente do Conselho Fiscal das seguradoras do grupo Caixa Geral de Depósitos. Ora, Lino é um engenheiro civil que nunca teve qualquer experiência na banca. Teoricamente está tudo bem – a Caixa não é uma empresa que tutelasse, pelo menos directamente. Na prática, isto não desfaz as dúvidas sobre as razões de tal contratação.

 

O inverso também é verdade. Luís Campos e Cunha, por exemplo, saiu de ministro das Finanças para o Banif. Tem reconhecida competência na área, mas a banca é um sector na esfera das Finanças, o que deveria inibir tal contratação. Sendo que o seu mandato como ministro foi curto e sem especial impacto ou ligação ao Banif.

 

Há ainda quem fale do tempo de nojo que permitiria sanar qualquer dúvida. À partida faria sentido, mas basta recordar a contratação do ex-ministro Joaquim Ferreira do Amaral para presidente da Lusoponte, dez anos depois de ter sido o ministro que assinou a concessão da Ponte Vasco da Gama à mesma empresa, para percebermos que o tempo não traz nenhum manto diáfano de pureza.

 

E chegamos agora ao dito caso Maria Luís Albuquerque, a ex-ministra das Finanças de Pedro Passos Coelho, actual deputada eleita pelo PSD e ontem anunciada como administradora não-executiva de uma empresa especializada em gestão de crédito com clientes como o Banif, o Millennium BCP e o Montepio. Bancos tutelados por Maria Luís Albuquerque até há três meses, quando era ministra das Finanças.

 

A julgar pelas palavras da ex-ministra e actual deputada – que afirmou não ver qualquer incompatibilidade ou impedimento legal – é perfeitamente pacífico, no seu entender, sentar-se à mesa do comité de risco e auditoria do seu novo empregador aos dias ímpares, e na bancada do hemiciclo, aos dias pares. Tão pacífico e compatível como será nuns dias colaborar em decisões para que uma empresa saque a qualquer custo os créditos que comprou aos endividados e aflitos (é isso que empresas como os novos patrões de Maria Albuquerque fazem) e noutros assumir a defesa dos portugueses, nomeadamente batalhando enquanto deputada para que sejam defendidos de empresas de rapina à mercê da qual todas as economias têm andado a reboque (isto talvez não esteja inscrito no programa do PSD, se bem que no novo caminho da social-democracia deveria estar).

 

Estou certa, embora já não recorde os termos em que outros como Maria Luís Albuquerque terão jurado que nada, mas nada mesmo, tem a ver. Quando Manuel Pinho foi convidado para dar aulas na School of International and Public Affairs (SIPA) da Universidade Columbia, muitos jornais deram apenas conta do facto. Mas também houve quem se lembrasse que esta foi a mesma universidade que recebeu da EDP cerca de 3 milhões de euros. EDP, que foi a empresa com a qual Manuel Pinho fez a cruzada das energias renováveis durante o seu mandato. Pode ser uma coincidência. Pode. Os processos de intenção são maliciosos. Sempre ou quase sempre.

 

Qual é então a solução? Há alguma hipótese de voltarmos a acreditar na política e nos políticos? Ou tudo isto é uma batalha perdida?

 

Os comentários nos jornais online podem ser um espaço pouco recomendável, mas são um belíssimo termómetro da nação. Uma consulta a três ou quatro sites, com linhas editoriais distintas e com comunidades de leitores também diferenciadas, confirma o senso comum. Há quem ache que isto é só inveja e que assim não conseguimos ter os melhores na política. Há quem ache que é uma vergonha (e aqui esgrime-se a gritaria se é mais vergonha da direita ou da esquerda). E há quem timidamente tente falar de ética e bom senso.

 

Podemos – e devemos – legislar limitações legais adicionais ao exercício de cargos, públicos ou privados, em empresas na esfera de ex-governantes ou actuais deputados. Podemos – e devemos – discutir os ordenados dos políticos. Podemos – e devemos – batalhar por novas ferramentas de transparência entre a política e as empresas.

 

Mas, se calhar, também podemos tentar vencer noutra frente. Muitas destas contratações são perigosas e letais. Decorrem de jogos de interesses e de influências que nada de bom podem trazer ao país. Compram informações privilegiadas, agendas de contactos, acessos privilegiados a determinados centros de poder.

 

Mas são, muitas vezes também, actos de parolismo e chico-espertismo de empresas que não se importam de pagar milhares de euros por mês a um ex-governante para dizer que têm um ministro ou um deputado no conselho de administração.

 

O ridículo mata, sabem? E mata mais depressa esses vícios parolos se, tanto no sector privado, como no público, tivermos cada vez mais profissionais pagos pelo que sabem e pelo que fazem. E na política, políticos que percebem que, ao aceitar essas funções, deixam de ser pessoas como as outras.

 

Outras sugestões

 

O El País conseguiu afirmar-se como uma das marcas mundiais de jornalismo. É obra, só por si, mas mais do que de passado, é de futuro que o jornal fala. E é por isso que vale a pena ler a carta que o director do jornal, Antonio Caño, publicou ontem.

 

E porque o futuro acontece rápido, aqui está uma boa história sobre a rede que os teenagers não dispensam e os pais não percebem (basta dizer que uma das recentes inovações é uma ferramenta que transforma uma selfie normal e desinteressante numa selfie a vomitar um arco-íris... giro, hem?)

 

Tenham um bom fim de semana.

publicado às 11:12

O Regresso do Capitão Jack, ou Como Despedir Pessoas no Mundo Encantado das Empresas Tecnológicas

Por: Rute Sousa Vasco

 

Esta foi, sem dúvida, uma semana em que o Twitter e o seu co-fundador, Jack Dorsey, estiveram nas bocas do mundo. É o terceiro regresso de Dorsey à companhia que fundou e ao serviço que inventou, e volta na mesma semana em que lança em Bolsa a sua segunda empresa, a Square, uma startup de pagamentos móveis. E acontece poucos dias depois de o Twitter ter lançado um novo produto – “Moments” – encarado por muitos analistas como a reinvenção dos jornais.

 

É a semana em que tudo isto aconteceu, mas a razão pela qual trago Dorsey até estas linhas, é outra. O Twitter é, desde a sua fundação, uma marca querida de influenciadores. Numa visão mais cáustica, é também uma marca querida da carneirada que não quer fazer parte da carneirada, usando uma expressão da eterna Mafalda criada pelo Quino. O Twitter cresceu significativamente desde o seu lançamento e entrou em Bolsa há dois anos em clima de grande excitação. Clima esse que durou pouco, porque nem os utilizadores cresceram ao ritmo que os investidores esperavam, nem o Twitter mostrou ter pernas para a sua concorrência mais tradicional, aka Facebook, ou mais modernaça, aka Snapchat. Os investidores, como se sabe, são uma mulher caprichosa e volátil e deram sinais de desinteressse, o que, no mercado tecnológico, onde sempre há um new kid on the block, pode ser fatal.

 

O regresso do fundador ao Twitter foi bem recebido. A Bolsa, as Mecas da tecnologia e os seus arautos gostam de comebacks. Ainda por cima, Dorsey é jovem, tem estilo e há qualquer coisa nele que leva as pessoas a pensar em Steve Jobs (provavelmente a coisa mais parecida é mesmo os dois terem sido despedidos das empresas que fundaram). Se a vida empresarial correr tão bem a Dorsey como a Jobs, é altura de colocar trocos a valer no Twitter.

 

Dorsey regressou com um new look – a indústria tecnológica partilha também alguns tiques da indústria de celebridades. O culto de imagem é um deles e, acreditem, aquela coisa da imagem aparentemente descuidada dá bastante trabalho. O de novo CEO do Twitter apareceu sem barba, cabelo aparado, um homem crescido nos seus 38 anos anos de maturidade. A imprensa reparou – e a twittosfera também, claro.

 

Dorsey regressou ao mesmo tempo que o Twitter lança um novo produto, “Moments”, uma proposta de agregação das histórias que marcam o dia concebida para conquistar novos utilizadores, nomeadamente aqueles que acham o Twitter pouco ou nada útil ou que simplesmente não percebem como funciona (alerta à navegação: se o “Moments” funcionar e se com isso o Twitter se tornar mais mainstream, vai perder alguns fanboys e vai possivelmente ter mais publicidade, de que precisa para poder continuar a pagar contas e a crescer; nada disto significa que ficará um pior serviço, mas, mais uma vez, como na música ou no cinema, se muitos gostarem pode significar que uns poucos terão de se desinteressar e ir à procura de qualquer outra coisa que os faça sentir especiais e únicos).

 

Aconteceram todas estas coisas em poucos dias e ainda mais uma. Jack Dorsey não perdeu muito tempo a reorganizar a empresa que ajudou a fundar. Na terça-feira, dia 13 de outubro, enviou um email a todos os trabalhadores da empresa informando que iriam ser despedidas cerca de 300 pessoas. 336, para ser mais exacta, 8% de toda a equipa. “Tomámos uma decisão extremanente difícil: planeamos abrir mão de 336 pessoas que estão na empresa. Fazemo-lo com o maior respeito por cada uma delas. O Twitter fará tudo ao seu alcance para apoiar cada uma destas pessoas, propondo-lhes pacotes de saída generosos e ajudando-as a encontrar um novo emprego”.

 

Este é um email que merece vários comentários. Pela forma e pelo conteúdo. Pela forma, o site Quartz fez provavelmente o comentário mais assertivo que podia ser feito. Dorsey começa a sua comunicação por dizer: “emails como este estão geralmente encriptados no discurso corporativo e por isso vou dizer-vos directamente o que há para dizer”. É um bom princípio, não apenas para o patrão do Twitter, mas para todos os que gerem pessoas. Imaginam o quão fartas estão da conversa corportativa e das palavras que não querem dizer coisa nenhuma ou que apenas dissimulam o que querem realmente dizer?! Cortem com isso.

 

Mas a verdade é que não é fácil dizer, assim do pé para a mão, que se vão mandar embora 336 pessoas, algumas delas provavelmente em lugares chave da engenharia e da gestão. Dorsey tentou, mas não se pode dizer que tenha conseguido em toda a linha. O Quartz deu-lhe uma ajuda e editou o email para o tornar ainda mais directo e claro. “Tomámos uma decisão extremanente difícil: vamos despedir 336 pessoas em toda a empresa (…) Essas pessoas não têm culpa de nada. Nós é que as contratámos e não devíamos ter feito. O Twitter vai dar-lhes indemnizações decentes e ajudá-las a encontrar um novo emprego”.

 

A outra parte tem a ver com o conteúdo da decisão. Não é fácil despedir pessoas. É ainda menos fácil quando algumas dessas pessoas foram contratadas por quem as despede e algumas, naturalmente, se tornaram mais que colegas. Mas é muito mais difícil – e errado – deixar que um conjunto maior de pessoas perca o rumo e, no limite, possa perder o emprego porque quem decide não foi capaz de tomar decisões. Não há formas fáceis de fazer mudanças, sobretudo quando visam corrigir uma rota de perdas. Geralmente implicam cortes e menores níveis de conforto, pessoal e no negócio. O facto de quem decide assumir os erros passados não torna o momento menos penoso. O Twitter falhou em vários momentos – na gestão dos produtos, nas pessoas que escolheu, na estratégia que adoptou. Reconhecer isso não torna a vida mais fácil a quem se vai embora (e nem a quem fica). Mas tornar a vida corporativa mais honesta – mais humana – pode ser um passo pequeno para um homem ou uma empresa, mas é sem dúvida um passo necessário para todos os humanos que trabalham, têm colegas, chefes, patrões, clientes e cada vez mais procuram na sua profissão, também, um sentido para a vida.

 

Mas nada como fechar com humor. Através de um tweet, claro:

 

 

Tenham um bom fim de semana.

 

 

Leituras sugeridas sobre coisas estranhas, ou nem por isso.

 

Em menos de 12 horas, uma iniciativa de crowdfunding conseguiu juntar 1000 dólares. Para quê? Para pagar a multa de 500 dólares de uma mulher aborígene acusada de ter roubado uma caixa de tampões.

 

Noutro ponto do planeta, bem longe da Austrália, os tampões também são um tema do momento. Na Suécia, transformaram-se em personagem de um programa de televisão para crianças. E cantam.

 

E porque o tema de hoje é o Twitter, deixo-vos com esta curiosidade do reino humano, animal, tecnológico e do marketing. Tudo numa só notícia: a do restaurante australiano que decidiu colocar uma galinha a gerir a sua conta de twitter.

 

 

publicado às 10:43

Nunca mais é muito pouco tempo

Por: Rute Sousa Vasco

 

 Já se choraram todas as lágrimas de crocodilo, já se fizeram as declarações mais pias de intenções, já se jurou sobre o que há de mais sagrado – o dinheiro, pois claro. Depois das perdas astronómicas que a crise financeira de 2008 arremessou à economia real – a das empresas, das famílias, das pessoas que não fazem parte desse Olimpo dos triliões – eis que, sem grande espanto nem alarido, regressamos à terra do nunca mais.

 

Factos: A concessão de crédito ao consumo está novamente a disparar em Portugal. Só em Julho, os bancos emprestaram 276 milhões de euros para efeitos de consumo, o valor mais alto desde Março de 2011, em níveis pré-troika.”Somando a concessão de crédito feita pelas financeiras e também os montantes disponibilizados através de cartões, descobertos autorizados e linhas de crédito, então este valor sobe para os 436 milhões de euros em Julho, ou 2,8 mil milhões de euros nos primeiros sete meses do ano, mais 22% face ao homólogo”, escreve o Económico.

 

Certamente que alguns verão nisto uma notícia sinalizadora da confiança. Os banco voltaram a emprestar dinheiro para gastos quotidianos – pode ser um carro, pode ser uma viagem, mas também pode ser simplesmente dinheiro para pagar outras dívidas em atraso. Da mesma forma que os bancos voltaram a emprestar dinheiro para comprar casa.

 

Factos: Os bancos tinham, no final de Julho, quase 5,4 mil milhões de euros em crédito de cobrança duvidosa das famílias, segundo dados do Banco de Portugal. É no crédito à habitação que o montante de malparado é mais elevado. No crédito ao consumo, o montante dado como de difícil recuperação é superior a 1,3 mil milhões de euros.

 

O tema que vale a pena discutir é que para as pessoas reais e empresas reais muito pouco mudou para não dizer que tudo está na mesma. Dir-se-á que é da natureza conservadora da banca não ter golpes de asa para investir em coisas novas ou de forma diferente. Dir-se-á que as manobras financeiras dos últimos anos fizeram muito pouca evidência dessa natureza conservadora – pelo contrário, antes fosse.

 

Há poucos dias, em conversa com dois empresários de PME ou startups, como prefiram, um de uma empresa de aquacultura e outro de uma empresa de plantas aromáticas, ouvi exactamente o mesmo relato. O périplo pela banca à procura de financiamento, as palmadas nas costas – bela ideia, bela ideia – e o cartão de visita para voltar ao banco uns anos depois, quando o balanço evidenciar que aquela bela ideia é mesmo um bom negócio. Ou seja, quando não precisar do dinheiro, ou pelo menos não precisar desse dinheiro como prova de vida. As duas empresas encontraram caminhos alternativos – uma com investimento que chegou de fora de Portugal, outra com investimento que saiu do bolso de outro empresário. É um final feliz, ou um princípio feliz, como se queira ver, mas em nenhuma destas histórias a banca se portou de forma diferente daquela a que nos habituou nestes já longos 30 anos.

 

Para fazer negócios passou a ser exigível prever o futuro, o que é particularmente curioso quando, retrospetivamente, verificamos que nunca se correram tantos riscos supostamente apoiados em análises de crédito à prova de bala e em ratings inquestionáveis. Para emprestar dinheiro às famílias – na habitação ou no consumo – não há muito que saber. Se tem casa e se tem ordenado, é executável, penhorável, descartável. E hoje, como antes, isso continua a ser uma decisão muito mais fácil do que contribuir para fazer crescer a economia real. A mesma economia que deverá criar riqueza real e postos de emprego reais.

 

Não consigo evitar lembrar-me, uma vez mais, da frase de Henry Ford: «Se as pessoas soubessem como funciona a banca, haveria uma revolução antes da manhã do dia seguinte.»

 

Mas como as verdadeiras revoluções demoram algum tempo, há que não perder de vista as alavancas da mudança. E uma delas é certamente perdermos o medo dos números. É esse o grande objectivo do novo projecto da Pordata que podemos ler no Público. “Na escola, as crianças aprendem a ler, a escrever e a contar. E o que sabemos hoje é que as estatísticas são o abecedário do futuro. Quem não estiver na posse desse abecedário fica com muitas limitações em termos da compreensão da sociedade em que vive.”, explica Maria João Valente Rosa, directora da Pordata.

 

E já que falamos em perceber os números, e no rescaldo de um debate em que as palavras-chave foram ‘prestações sociais não contributivas’, aqui fica um artigo da Renascença para nos ajudar a perceber do que estamos a falar.

publicado às 10:28

Isto é empreendedorismo. Bem-vindos ao mundo do Tom Sawyer

Por: Rute Sousa Vasco

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De todas as cenas imperdíveis nas Aventuras de Tom Sawyer, uma é a master piece da psicologia invertida. Aquela em que Tom Sawyer é colocado de castigo pela tia Polly e obrigado a pintar o muro da casa. Rodeado de garotos de 11, 12 anos, o herói de Mark Twain não se deixa intimidar nem enfraquecer. Pelo contrário. “Já viram bem a oportunidade? Quantos miúdos da nossa idade não dariam tudo pela possibilidade de pintar um muro inteiro?”. O episódio acaba com toda a tribo a pintar o muro e este excerto devia ser elevado à categoria de encíclica na missa do empreendedorismo, entre outras coisas.

 

Os empreendedores – melhor, os startupers – da 2ª década do século XXI são muito diferentes daqueles que faziam uma nova empresa nas décadas anteriores, sobretudo os dos anos 90 e 80. Poderíamos especular que resulta dos ensinamentos anteriores, da experiência, de learning lessons, mas, na realidade, não é bem assim. Sobretudo, porque a maior parte destes startupers é demasiado novo para ter sequer memória da aventura yuppie dos anos 80 e mesmo da febre dotcom/nova economia dos anos 90.

 

Este artigo resulta de uma conversa numa noite de verão. Falava-se sobre a moda de ter uma startup. E de como, para muitos jovens empreendedores, mais do que ter um negócio e encontrar um caminho de realização, lançar uma startup é, também, uma forma de vida, um sentimento de pertença a uma comunidade e até um prolongamento da doce liberdade da adolescência quando tudo é ao mesmo tempo possível e impossível. Muitos podem ser contagiados pelo efeito ‘moda’, mas, na realidade, esse é um problema menor. O tempo passará e como todas as coreografias que não passaram disso mesmo, se esse for o caso, será substituída por outra coisa qualquer. Interessa mais o que fica, a mudança profunda. E uma das mudanças profundas destes anos em que o capitalismo mostrou as suas maiores forças e as suas terríveis fraquezas, é que nunca foi tão barato financiar novas ideias e colocar novas empresas no mercado.

 

O modo de vida de um verdadeiro empreendedor / startuper não é muito diferente de um miúdo de 18 ou 20 anos acabado de chegar à universidade. É verdade que alguns têm mesmo 18 ou 20 anos, mas vamos deter o nosso olhar sobre os mais maduros. Terão entre 25 e 35 anos, muitos com um doutoramento em áreas de grande complexidade e talvez já com uma ou duas experiências prévias em startups que não conseguiram ter sucesso. Mas eles continuam. Recusam entrar no pipeline das grandes empresas, fato e gravata, secretária, gabinete, carro de serviço. Vivem em apartamentos de renda dividida, comem hamburguers, adiam famílias o mais que podem. (a família, sendo uma escolha, traz o vínculo a uma prisão económica de que querem escapar).

 

Estes miúdos já são gente crescida. Não são caloiros, não são estagiários. Trabalham, por decisão própria, mais horas do que algum patrão lhes poderia algum dia exigir (e obter). Menos de 12 horas é para meninos. Fins de semana, feriados, férias … há quem não domine exactamente o conceito. Desde que saíram de casa dos pais que não conhecem outras companhias de aviação que não as low cost e outros hóteis que não os hostels ou os apartamentos arrendados a dividir por quatro, cinco, seis. Nada disso os perturba. Vivem num regime de escravatura moderna, mas são felizes. São escravos do tempo que não têm, das horas sem fim a desenvolver produtos, do compromisso multi-funções que os torna CEOs, programadores, cientistas, marketeers, helpdesks, moço de entregas, motorista. O que for preciso. São felizes.

 

Para alguns, um dia as coisas correm bem. O que é correr bem? É conseguir um investimento. É poder dizer à tribo de startupers ‘nós levantámos um milhão’. Levantaram de onde? Do banco? Não, de um ou de vários investidores que, vencidos pitchs, roadshows, prototipagens e alguma sorte ‘social’ decidiram investir naquela ideia, naquele projecto, naquela equipa.

 

Com um milhão, a vida muda, certo? Errado. Na maior parte dos casos não muda quase nada. Continuam a viver no mesmo apartamento arrendado, a comer os mesmos hamburgers e pizzas, a viajar nas mesmas low cost e a não ter o mesmo ordenado. Leram bem. A maioria destes startupers não tem ordenado atribuído, muitos vivem meses a fio sem qualquer tipo de rendimento, fazendo esticar a corda de poupanças, pequenos prémios de incentivo e afins. Quando o ‘big money’ chega, há euforia pela validação e pelo oxigénio, mas é uma euforia cautelosa. O dinheiro não é para gastar. Não vão a correr para um escritório maior e não vão contratar gente por aí além. Se calhar nem vão contratar. O dinheiro é para durar. O dinheiro é para garantir que conseguem perdurar no tempo. Mesmo que a startup não dispare. Mesmo que não haja a ‘tracção’ necessária.

 

O importante é não parar. O importante é continuar na corrida. Uma espécie de maratona, garantidamente uma prova de resistência em que o prémio que faz correr se chama liberdade. ‘Something mine’. Ser dono de mim próprio. É esse o bichinho. É essa a diferença. Porque as empresas grandes também caem (caramba, até os bancos caem). Mas sobretudo porque as empresas grandes se assomam como prisões onde todo e qualquer acto de liberdade, criatividade e irreverência será suprimido no instante em que se cruzar a porta de entrada. Pode ser percepção, mas esta percepção está a mudar uma geração. Os filhos dos yuppies não querem ser cavalheiros e senhoras de fato, gravata e vestido bem comportado. Não querem entrar às 9, sair 12 horas depois e ambicionar ao lugar do chefe, aos favores do chefe, ao aumento que poderá ser atribuído se-fizer-tudo-bem. Adiam os quatro filhos, o cão e a casa de praia para mais tarde. Têm tempo.

 

Os filhos dos yuppies querem ser cool, querem poder ir trabalhar de chinelo e calções e sobretudo querem ser livres. Alguns querem tão desesperadamente ser livres que estão dispostos a escravizar os ditos melhores anos da sua vida em busca do santo graal que os levará a essa liberdade. Outros farão ‘isto’ vida fora, se nada lhes interromper o caminho: mais que dinheiro, estatuto, qualidade de vida, querem um propósito. Querem mudar o mundo e, já se sabe, hoje é nas empresas que se muda o mundo.

 

Na plateia, em filas VIP, os donos do dinheiro assistem de forma privilegiada ao que se passa neste palco. Têm tantos actores, tantas narrativas diferentes, tantos efeitos especiais possíveis. Só têm de escolher, em função do seu perfil de investimento, da sua ganância ou generosidade e, também para alguns, do seu propósito. Mas nunca foi tão barato comprar ideias e criar novas empresas. Sem ter responsabilidade sobre equipas, salários, valores futuros. Vivendo para o presente e para um futuro a não mais que três anos. E podendo diversificar apostas em quantos actores e narrativas a carteira entender acomodar.

 

O mundo anda hoje mais rápido do que nunca e os startupers são a sua grande alavanca. Não param de crescer e não param de correr. Empregar cinco doutorados numa área de ponta não custaria a um investidor menos de meio milhão por ano. Trabalhariam certamente muito e bem, mas ainda assim menos e pior do que para eles próprios. O mesmo meio milhão é sinónimo de ‘levantar dinheiro’ para dois ou três anos, sem outros encargos. Se a ideia vencer, o investidor tem tudo a ganhar; se perder, não perde mais do que investiu.

 

No conceito americano, uma startup é uma empresa de rápido crescimento. Uma boa ideia, um negócio a crescer rápido e para vender rápido. Uma startup à portuguesa é outra coisa. Uma boa ideia, mas em muitos casos, também um longo calvário. Até que alguém acredite no projecto, até que todo o dinheiro gasto mostre evidências que vai ser um bom negócio. Quem fala com empreendedores regularmente, ouve demasiadas vezes a mesma história. Os investidores à procura de dinheiro rápido e fácil, os bancos à procura de dinheiro seguro e os incentivos que consomem horas e horas, muitas vezes em exercícios de pura especulação.

 

Ainda assim, cá fora, são invejados. Pelas grandes empresas, subitamente menos sexy. E por todos os que também decidem abrir um qualquer negócio e que em vez de terem uma empresa dizem que também têm uma startup. Uns e outros preocupam-se com a liturgia. Tentam fazer parte da religião, copiam-lhes os tiques, perseguem-lhes o estilo.

Nunca leram as aventuras de Tom Sawyer. E só por isso não sabem que para fazer de pintar o muro uma experiência, é preciso acreditar – ou fazer acreditar – que pintar o muro é ‘a’ experiência.

 

Rute Sousa Vasco é jornalista e directora de conteúdos do SAPO. Escreveu dois livros, "A sorte dá muito trabalho" e "Banco bom, banco mau". Gosta de política, de discussões acaloradas sobre por onde vai o mundo e de conhecer novas ideias. É também sócia de uma  empresa que acredita no poder das boas histórias, justamente chamada True Stories. Costumam dizer-lhe que foi empreendedora antes de tempo e por isso aprendeu mais cedo que ser patrão é mais trabalho e menos conhaque. É mãe do Miguel e da Margarida, os seus interesses maiores na vida. Entre os outros contam-se alguns prazeres da cozinha, escrever, ler e pensar.

publicado às 10:28

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