Se não fosse triste e lamentável, podia ser de rir, ou uma notícia do “Inimigo Público”: uma instituição do Estado, o Tribunal de Contas, num relatório sobre a execução orçamental da Administração Central, crítica o Estado a que pertence por exigir aos contribuintes o que o próprio Estado não cumpre…
Não percebeu? Nem eu.
Vamos devagar: uma das missões do Tribunal de Contas é fiscalizar a forma como o Estado, através dos Governos e da Autoridade Tributária, cumpre e faz cumprir a lei e os Orçamentos. Nesse âmbito, divulga relatórios em que analisa o que foi feito, o que está mal, o que está certo.
No Relatório divulgado há dois dias, e relativo a 2015, o Tribunal de Contas vem dizer algo que todos nós, cidadãos, já sentimos na pele de alguma maneira: que os atrasos do fisco, por exemplo, na devolução de impostos ou na correcção de erros, não é minimamente penalizada; ao contrário, se o cidadão se atrasa ou se engana, lá vem a multa, os juros, e às vezes a conta bancária congelada.
O Tribunal de Contas dá um exemplo: os prazos legais para fechar a contabilidade do Estado são invariavelmente “queimados” - mas exigidos aos contribuintes e sujeitos a multa caso os cidadãos escorreguem nas datas. Diz o relatório (e estou a citar o Diário de Notícias): "Pelas razões que levaram à implementação do E-fatura, em poucos meses, é mais do que oportuno que o Estado, o Ministério das Finanças e a AT também apliquem, como administradores de receitas públicas, os princípios e procedimentos que tornaram obrigatórios aos contribuintes por os reputarem essenciais para a eficácia do controlo dessas receitas”.
E é aqui que começa a gargalhada. É que o Tribunal vem debitando esta lengalenga todos os anos, mas nada acontece: não há multas ao Estado, não há responsáveis punidos, não há juros a reverter para os contribuintes. O contrário também se mantém inalterado: não é por o Estado ser incompetente, nem por o Tribunal de Contas o sublinhar, que o cidadão é premiado e, pelo menos, amnistiado ou absolvido dos seus delitos menores…
Estamos portanto no domínio da comédia, em rigor da farsa: as instituições fiscalizam, fazem relatórios, criticam. Nada muda, nada acontece. Impune, o Estado persiste em ser mau pagador, incumpridor, e laxista. Tudo o que não perdoa ao contribuinte que o sustenta e lhe dá sentido. Parece um gozo, uma espécie de brincar ao faz-de-conta entre instituições do mesmo Estado, jogando apenas entre elas - só que os peões do jogo são adultos, as suas vidas, o dinheiro de todos.
No fim, como sempre, quem se lixa é o mexilhão. Lá está: se não fosse triste, dava para rir.
Para ler obrigatoriamente esta semana…
A reportagem da Esquire norte-americana sobre as consequências práticas da legalização e/ou descriminalização do consumo de drogas leves em alguns estados dos EUA. Ou melhor: como os grandes cartéis e traficantes de drogas pesadas responderam a esta aparente machadada no seu negócio…
A imprensa francesa reflecte a forma como se deve cobrir o tema “terrorismo” e os ataques que a Europa tem sofrido. Eis aqui, na Motherboard, o que está a acontecer e a forma inteligente como se pode encarar esta ameaça diária.
O Diário de Notícias tem vindo a publicar excelentes entrevistas no âmbito de uma época, o Verão, em que teoricamente temos mais tempo para ler. Há dias, publicou uma conversa entre Céu Neves e a realizadora Leonor Teles (jovem premiada pelo filme “Balada de Um Batráquio”), que é um belíssimo exemplo do que pode constituir uma nova geração de criadores. Mais focada, mais atenta, mais humilde. A ler.
Joaquim Pina Moura. Joaquim Ferreira do Amaral. Jorge Coelho. José Luís Arnaut. Mário Lino. Miguel Cadilhe. Manuel Pinho. Miguel Beleza. António Mexia. Luís Campos e Cunha. Sérgio Monteiro. E agora Maria Luís Albuquerque.
Vamos brincar às diferenças? Consegue encontrá-las neste lote de políticos que, depois de funções governamentais, assumiram cargos de liderança em empresas do sector privado? Ou em fundações. Ou em empresas tuteladas pelo Estado.
Vale a pena jogar este jogo por várias razões. A primeira porque, mais do que nunca, vale a pena gastar energias a debater a mítica frase “os políticos são todos iguais”. Se nada fizermos quanto a isso, podemos esperar na volta do correio mais Trumps, porque aquelas coisas não acontecem só na América.
A segunda porque, efectivamente, os casos não são todos iguais. Iniciei este artigo com uma pequena amostra de nomes mediáticos mas, até nesta amostra, existem diferentes níveis de competência e de desfaçatez – e isso faz diferença quando se analisam teias de interesse entre funções públicas e empregos privados.
A terceira razão é, provavelmente, a mais difícil de avaliar sem paixões da alma e decorre das outras duas. À vista desarmada parece tudo a mesma coisa – são todos políticos que depois de estarem no Governo foram convidados para lugares de referência, muito bem pagos, no sector privado ou em instituições na esfera de influência do Estado. Todo e qualquer argumento usado para dizer “ah não, mas neste caso é diferente” escorrega em terreno pantanoso. E até as tentativas de ‘normalização’ são um exercício penoso quando se juntam nomes e cargos.
Uma das ditas tentativas de normalização tem sido, por exemplo, legislar a favor do impedimento de ex-governantes assumirem funções em empresas que tutelaram durante um determinado período de tempo.
Em teoria, pode resolver. Na prática, vemos, por exemplo, que um ministro como Mário Lino, que ocupou a pasta das Obras Públicas, aceitou, depois da sua saída do governo socialista em 2011, o lugar de presidente do Conselho Fiscal das seguradoras do grupo Caixa Geral de Depósitos. Ora, Lino é um engenheiro civil que nunca teve qualquer experiência na banca. Teoricamente está tudo bem – a Caixa não é uma empresa que tutelasse, pelo menos directamente. Na prática, isto não desfaz as dúvidas sobre as razões de tal contratação.
O inverso também é verdade. Luís Campos e Cunha, por exemplo, saiu de ministro das Finanças para o Banif. Tem reconhecida competência na área, mas a banca é um sector na esfera das Finanças, o que deveria inibir tal contratação. Sendo que o seu mandato como ministro foi curto e sem especial impacto ou ligação ao Banif.
Há ainda quem fale do tempo de nojo que permitiria sanar qualquer dúvida. À partida faria sentido, mas basta recordar a contratação do ex-ministro Joaquim Ferreira do Amaral para presidente da Lusoponte, dez anos depois de ter sido o ministro que assinou a concessão da Ponte Vasco da Gama à mesma empresa, para percebermos que o tempo não traz nenhum manto diáfano de pureza.
E chegamos agora ao dito caso Maria Luís Albuquerque, a ex-ministra das Finanças de Pedro Passos Coelho, actual deputada eleita pelo PSD e ontem anunciada como administradora não-executiva de uma empresa especializada em gestão de crédito com clientes como o Banif, o Millennium BCP e o Montepio. Bancos tutelados por Maria Luís Albuquerque até há três meses, quando era ministra das Finanças.
A julgar pelas palavras da ex-ministra e actual deputada – que afirmou não ver qualquer incompatibilidade ou impedimento legal – é perfeitamente pacífico, no seu entender, sentar-se à mesa do comité de risco e auditoria do seu novo empregador aos dias ímpares, e na bancada do hemiciclo, aos dias pares. Tão pacífico e compatível como será nuns dias colaborar em decisões para que uma empresa saque a qualquer custo os créditos que comprou aos endividados e aflitos (é isso que empresas como os novos patrões de Maria Albuquerque fazem) e noutros assumir a defesa dos portugueses, nomeadamente batalhando enquanto deputada para que sejam defendidos de empresas de rapina à mercê da qual todas as economias têm andado a reboque (isto talvez não esteja inscrito no programa do PSD, se bem que no novo caminho da social-democracia deveria estar).
Estou certa, embora já não recorde os termos em que outros como Maria Luís Albuquerque terão jurado que nada, mas nada mesmo, tem a ver. Quando Manuel Pinho foi convidado para dar aulas na School of International and Public Affairs (SIPA) da Universidade Columbia, muitos jornais deram apenas conta do facto. Mas também houve quem se lembrasse que esta foi a mesma universidade que recebeu da EDP cerca de 3 milhões de euros. EDP, que foi a empresa com a qual Manuel Pinho fez a cruzada das energias renováveis durante o seu mandato. Pode ser uma coincidência. Pode. Os processos de intenção são maliciosos. Sempre ou quase sempre.
Qual é então a solução? Há alguma hipótese de voltarmos a acreditar na política e nos políticos? Ou tudo isto é uma batalha perdida?
Os comentários nos jornais online podem ser um espaço pouco recomendável, mas são um belíssimo termómetro da nação. Uma consulta a três ou quatro sites, com linhas editoriais distintas e com comunidades de leitores também diferenciadas, confirma o senso comum. Há quem ache que isto é só inveja e que assim não conseguimos ter os melhores na política. Há quem ache que é uma vergonha (e aqui esgrime-se a gritaria se é mais vergonha da direita ou da esquerda). E há quem timidamente tente falar de ética e bom senso.
Podemos – e devemos – legislar limitações legais adicionais ao exercício de cargos, públicos ou privados, em empresas na esfera de ex-governantes ou actuais deputados. Podemos – e devemos – discutir os ordenados dos políticos. Podemos – e devemos – batalhar por novas ferramentas de transparência entre a política e as empresas.
Mas, se calhar, também podemos tentar vencer noutra frente. Muitas destas contratações são perigosas e letais. Decorrem de jogos de interesses e de influências que nada de bom podem trazer ao país. Compram informações privilegiadas, agendas de contactos, acessos privilegiados a determinados centros de poder.
Mas são, muitas vezes também, actos de parolismo e chico-espertismo de empresas que não se importam de pagar milhares de euros por mês a um ex-governante para dizer que têm um ministro ou um deputado no conselho de administração.
O ridículo mata, sabem? E mata mais depressa esses vícios parolos se, tanto no sector privado, como no público, tivermos cada vez mais profissionais pagos pelo que sabem e pelo que fazem. E na política, políticos que percebem que, ao aceitar essas funções, deixam de ser pessoas como as outras.
Outras sugestões
O El País conseguiu afirmar-se como uma das marcas mundiais de jornalismo. É obra, só por si, mas mais do que de passado, é de futuro que o jornal fala. E é por isso que vale a pena ler a carta que o director do jornal, Antonio Caño, publicou ontem.
E porque o futuro acontece rápido, aqui está uma boa história sobre a rede que os teenagers não dispensam e os pais não percebem (basta dizer que uma das recentes inovações é uma ferramenta que transforma uma selfie normal e desinteressante numa selfie a vomitar um arco-íris... giro, hem?)
António Costa entrou numa lógica de destruição criativa difícil de perceber, pelas consequências da destruição, pela incerteza da criatividade. Anuncia que o Estado vai passar a controlar 51% da TAP “a bem ou a mal” e faz saber, anonimamente, que vai acabar com o Banco de Fomento que está finalmente em condições de começar a financiar a economia. São apenas dois exemplos, há mais, de radicalismo que só pode ser ideológico. Ou pior.
Não deixa de ser uma ironia que o primeiro-ministro que assentou a sua estratégia eleitoral no discurso do radicalismo da coligação PSD/PP faça da sua atuação um manual de intervenção radical. E por vontade própria, porque o BE e o PCP também têm as costas largas. Num caso e noutro, só por ideologia se pode entender a estratégia do Governo, em nenhum deles há um fundamento económico, financeiro ou sequer estratégico, simplesmente porque ninguém sabe o que Costa quer fazer a seguir, desconfio, nem sequer o próprio.
A TAP tem finalmente um acionista que gere a empresa, define um caminho e, sobretudo, investe na companhia. Já meteu 180 milhões de euros e no próximo ano tem de pôr mais 180 milhões. A dupla Pedrosa/Neelman já fez mais pela TAP em semanas do que o acionista Estado em anos e anos. E a TAP que tem um acionista privado maioritário pode fazer mais pelo país do que fez em décadas de controlo público a 100%.
Então, porque é que Costa faz uma ameaça venezuelana como fez, ao dizer que o Estado vai ficar com o controlo maioritário a bem ou a mal? Se o primeiro-ministro tem alguma informação que não revelou publicamente, nomeadamente sobre a legalidade do negócio que foi feito, não poderia sentar-se à mesma mesa com Pedrosa e Neelman, teria simplesmente de requerer a anulação do negócio. Como tentou a negociação, disse-o publicamente, a resposta só pode ser de uma de duas, despeito ou ideologia. O despeito passa, a ideologia não, sobretudo porque, depois, é preciso pôr dinheiro em cima da mesa, para a TAP devolver o dinheiro que já recebeu e, sobretudo, para capitalizar uma empresa que tem 580 milhões de euros de capitais próprios negativos. Como se o Estado não tivesse problemas (financeiros) que cheguem.
Agora, o caso do banco de fomento não é menos problemático. Ainda não houve uma palavra pública, mas também não houve qualquer clarificação ou desmentido à notícia do Expresso sobre o fim da Instituição Financeira de Desenvolvimento. Mal ou bem, e considerei desde o primeiro dia que o banco de fomento não era a melhor solução, o Estado investiu mais de um ano de negociações com a Direção Geral da Concorrência europeia para ter uma instituição grossista – leia-se, que contratualiza apoios às empresas através dos bancos – de financiamento da economia.
Depois de muitos avanços e recuos – alguns difíceis de entender -, de trabalho de casa que ainda não estava feito, o presidente José Fernando Figueiredo já tem finalmente condições para carregar no botão. Só falta o mais importante, o ‘ok’ do novo governo que, pelos vistos, não vai surgir. Mesmo do ponto de vista puramente político, acabar agora com o banco de fomento é um erro, porque qualquer novo caminho de uso dos fundos comunitários exige tempo de negociação com Bruxelas. Dito de outra forma, o acesso a financiamento e sobretudo a capital vai demorar. Mais. E sem alternativa.
Na TAP, como no banco de fomento, Costa muda por más razões, destrói o que está sem construir uma alternativa melhor, afeta a imagem do país junto dos investidores internacionais e coloca pressão sobre o Estado e as empresas desnecessariamente. Radicalismo ideológico. Ou pior.
As escolhas
Se na TAP e no banco de fomento, António Costa está a fazer escolhas, a única escolha possível no Banif era saber quem pagaria a fatura, os contribuintes ou os depositantes e obrigacionistas. E o primeiro-ministro escolheu os primeiros e poupou os segundos, a menos má. O Estado já tinha metido 700 milhões de euros de capital e emprestado 400 milhões, dos quais 125 milhões ainda não tinham sido devolvidos. Agora, por 150 milhões de euros, o Estado vende ao Santander o que de melhor tinha o Banif – depósitos e créditos – e o que o banco tinha de pior – os ativos tóxicos – fica num veículo autónomo, debaixo do controlo do Estado. Foi uma venda com resolução, só que as contas não ficam por aqui.
Para que isto fosse possível, o Estado tem de meter mais 2,255 milhões de euros, dos quais 487 milhões do Fundo de Resolução, para capitalizar a parte que vai para o Santander. É preciso acrescentar que os acionistas perdem tudo, até ao último cêntimo. O Banif morreu, os clientes e a estabilidade do sistema estão vivos, António Costa deu a cara, ao contrário de Passos e Maria Luís. Vão dar agora, numa comissão de inquérito, para explicarem porque é que um banco que não tinha problemas de supervisão, de rácios, de almofadas financeiras, acaba a ser vendido assim, à pressa.
E em Espanha, pode acompanhar aqui no SAPO24, a grande confusão. O PP ganhou, mas sem maioria absoluta, o PSOE e o Podemos perderam, mas juntos têm mais deputados. Onde é que já vimos isto?