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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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A matemática acaba onde começa a filosofia

Por: Helena Oliveira

 

Quem precisa de filósofos que pensem se à nossa volta se multiplicam “pensadores”e “opinantes”, que oferecem a sua sabedoria a um ritmo vertiginoso? Como serão os líderes e decisores do amanhã que estão a crescer com o telemóvel debaixo da almofada? Das grandes empresas, como a Google, às universidades, como Harvard, há notícias animadoras: a filosofia está de volta, bem como as humanidades em geral depois de anos em que tudo o que contava era tecnologia e matemática. Temos mesmo de voltar a aprender a pensar na era da técnica.

 

 

Na década de 80 do século passado, a poderosa AT&T sofria uma enorme crise de identidade que poderia ter dado cabo da sua reputação e levado o seu fundador, Alexander Graham Bell, o inventor do telégrafo falante, vulgo, telefone, a dar muitas voltas na tumba. Como seria de esperar, e perante as dúvidas sobre o seu futuro, a empresa voltar-se-ia para os consultores de gestão – espécime em franca expansão à época – na tentativa de obter a resposta que poderia ditar o seu futuro: entrar ou não entrar no mercado emergente dos telefones celulares.

 

Utilizando os habituais modelos preditivos matemáticos, os consultores chegariam à conclusão que os telefones móveis serviriam apenas um nicho de mercado e não um em que valesse a pena investir tempo e recursos. Assim, e tal como tinha acontecido com a Digital Equipment Corporation nos anos 60 que, erradamente, tinha também previsto que nunca existiria uma forte procura por computadores pessoais, a AT&T faria um enorme erro de cálculo no que respeita a uma das mais importantes inovações tecnológicas e comerciais dos nossos tempos.

 

Ao confiar exclusivamente na gloriosa exatidão das ciências matemáticas – indispensáveis, sem dúvida, para a construção de um telefone – a gigantesca empresa de telecomunicações esquecer-se-ia do mais fundamental: o que significaria realmente ter um telefone móvel e por que motivo alguém daria dinheiro para o adquirir.

 

Esta história é contada por Ryan Seltzer, ex-consultor de gestão, que deixou o negócio da consultoria num banco em Boston (antes trabalhara na Casa Branca) - para fundar uma empresa de filosofia – a Strategy of Mind – que ajuda agora muitas outras congéneres a responder e a resolver alguns dos mais complexos desafios de gestão, nomeadamente aqueles que começam com a mais básica das questões: o “como”.

 

Serve esta introdução para falar da importância da filosofia – ou, mais especificamente, da sua aparente inutilidade – nos tempos que correm, muito graças à crescente obsessão pelas ciências exatas – nomeadamente as que cabem no famoso acrónimo STEM – para ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas ou “aquilo que está a dar”, mas não só.

 

Sim, é certo que a relevância social das denominadas ciências humanas – sim, pasme-se, também são ciências – deambula perdida nas ruas da amargura, que o seu lugar institucional é mais do que desvalorizado e a sua função pedagógica crescentemente posta em causa. Sobre esta crise que paira sobre todas as áreas do saber que não prestam vassalagem à exatidão, escreve Manuel J. do Carmo Ferreira, Professor Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa (aposentado),na revista Gaudium Sciendi, da Universidade Católica Portuguesa: “irrelevância como saber, ineficácia como intervenção, desfasamento em relação aos avanços em outras áreas do conhecimento, são os traços maiores de uma prolongada crise de legitimação das Humanidades, a que se vem juntar a insegurança dos que as cultivam quanto à natureza e títulos de afirmação do seu campo disciplinar”.

 

Mas se a prosa sobre a crise das humanidades daria pano para muitas mangas, centremo-nos apenas na Filosofia, cujo lugar na sociedade contemporânea sofre de uma enorme ambiguidade: se, por um lado, existe um desinvestimento claro no seu ensino e aplicação – quem quer trocar um filho proficiente em tecnologia por um que se perca nessa coisa que não serve para nada chamada filosofia? – por outro, e em particular no mundo dos negócios, a filosofia parece estar a transformar-se num mantra repetido por muitos no sentido de que pode ajudar ao tão almejado sucesso, aquela palavrinha que todos usamos sem nunca pensarmos no seu verdadeiro significado.

 

Apesar de, na maioria das vezes, não aparecer em estado “puro”, mas antes transvestida em modas que acabam por ser efémeras, um tonzinho filosófico fica sempre bem, principalmente na poderosa indústria da liderança, que à falta de novas ideias, vai embarcando na onda do coaching, seguida pela vaga do mindfulness – que vai de vento em popa, a propósito – e de outras que tais, “perfeitas” para se lidar com a também chamada era da complexidade e nela triunfar, é claro.

 

Ora, se é complexo, é filosófico e mesmo que se atropelem definições, conceitos e práticas, se juntem alhos com bugalhos, retirados de receitas milenares chinesas, com pozinhos pós-modernos de inteligência emocional, temperados ainda - e porque as especiarias, seja qual for a sua origem, aguçam o espírito - com umas técnicas de relaxação indianas – a filosofia parece estar, em muitos casos, a ser usada como uma espécie de cozinha de fusão. E que vende, a propósito.

 

Mas e por outro lado, esta antiga senhora faz lembrar também aquelas tias velhas e chatas que somos obrigados a convidar para as grandes celebrações: tem um lugar à mesa, mas ninguém lhe dá a devida atenção ou, pior ainda, colocamo-la no lugar mais afastado do centro, para que não sejamos contagiados com o cheiro a bafio que dela emana.

 

Existe ainda uma terceira opção: a tia é velha e chata, mas também é rica e, enquanto herdeiros, podemos sempre descobrir um camafeu, feio, mas valioso, guardado num velho baú que, devidamente vestido com novas roupagens, poderá valer uma boa maquia num qualquer novo mercado zen, devidamente comercializado por um bom leadership coach e ser tema de workshops moderníssimos que tão bem ficam nos nossos currículos.

 

Tudo isto é mais plausível de acontecer do que manifestarmos a convicção de que o mundo não precisa apenas de tecnologias, algoritmos, folhas de excel, estatísticas e afins, mas também de pessoas que saibam pensar de forma crítica, que façam as perguntas certas, que questionem o que não parece passível de ser questionado e que arrisquem em novas teorias e formas de compreender esta época que, tal como todas as outras, não deixa de ter “food for thought”, muito antes pelo contrário.

 

Basta pensarmos em três ou quatro questões bem “modernas” e podemos logo começar pela que dá o mote a este texto. Têm as humanidades um lugar legítimo num mundo em que a ciência e a tecnologia parecem reinar? Será que a inteligência artificial irá comprometer a nossa moralidade? E se a neurociência vier a colocar em causa o nosso livre arbítrio? Deverão as evidências das alterações climáticas alterar a forma como vivemos? Habituar-nos-emos a viver em clima de medo face ao fundamentalismo crescente? Será possível que o extremismo de direita, em franco crescimento na Europa, possa dar origem a um novo holocausto? Deixaremos de raciocinar num mundo em que existem apps que dizem o que devemos comer, o que devemos vestir, quantas horas devemos dormir e por aí adiante?

 

Convencermo-nos desta aparente lógica da batata não é, de todo, fácil. Para que serve a epistemologia, a ética ou a filosofia moral, a filosofia política ou a ontologia, senão como palavrões que nem merece a pena googlar? E qual a importância de termos tempo para pensar e questionar, quando vivemos, em continuum, rodeados de tecnologias que nos satisfazem os desejos mais imediatos, nos dão o poder do conhecimento total, que nunca nos deixam sozinhos com os nossos botões e que não nos permitem ter tempos de ociosidade, a pré-condição que iria dar origem aos primeiros pensamentos filosóficos? E, mais ainda: se a filosofia, enquanto disciplina ou prática, deveria responder às inúmeras novas e complexas questões que se colocam à sociedade contemporânea, não foi o seu lugar usurpado pelos incontáveis “opinantes”, “comentadores” e “cronistas”, em conjunto com os milhares de milhões de pessoas que passam a vida a dissecar a nossa realidade e a emitir juízos sobre ela? Serve a filosofia para alguma coisa no século XXI?

 

Em muitas nações ditas desenvolvidas a ideia vigente é que não se deve apostar ou investir nesta que já foi considerada como “o saber mais abrangente”. Mas também existem alguns ventos contrários que pretendem desencalhar este velho “amor pelo saber”. E que estão a empurrar, ainda que lentamente, o universo académico, por um lado, e o da liderança, empresarial mas não só, por outro.

 

Para quê usar a cabeça se temos computadores?

 

 

Em 2014, e já no rescaldo da crise financeira de 2008, o presidente da Irlanda, Michael Higgins, lançou a “Iniciativa de Ética” com o objetivo de desenvolver, a nível nacional, um debate sobre os principais valores que deveriam reger a sociedade irlandesa na altura. A ideia, várias vezes repetida em discursos presidenciais, era a de que se o povo realmente prezava a democracia, deveria evoluir para uma cidadania de pensamento independente e ativo, sendo que recuperar a importância do ensino da filosofia nas escolas constituiria um dos mais preciosos meios para atingir esse fim. Para Higgins e numa interpretação mais ou menos livre das suas ideias, a filosofia seria o mais importante antídoto contra o pensamento de grupo, encarneirado, e o melhor ingrediente para colocar um fim no enjoativo consenso que há muito estava a limitar o livre pensamento.

 

Um ano antes, e logo ali ao lado, o Reino Unido iniciaria um estudo comparado, em 48 escolas do 1º ciclo, com a duração de um ano, no qual 1500 crianças entre os 6 e os 10 anos receberiam aulas de filosofia e outras 1500 não. O estudo, conduzido pela Education Endowment Foundation (EEF), uma organização sem fins lucrativos que visa estreitar o fosso entre os rendimentos familiares (baixos) e o aproveitamento escolar, pretendia testar a eficácia das premissas filosóficas através de um “ensaio clínico aleatório”, exatamente como os que são feitos com os fármacos com potencial de comercialização. Assim, 22 escolas funcionaram como grupo de controlo, enquanto as restantes 26 passaram a ter uma aula de filosofia por semana com a duração de quarenta minutos, no que é denominado como P4C (Philosophy for Children) No total, mais de 3 mil miúdos estiveram envolvidos na experiência e os resultados foram bem além do esperado.

 

O programa, da responsabilidade da Society for the Advancement of Philosofical Enquiry and Refletion (SAPERE), não tem como objetivo concentrar-se no estudo de textos de Platão ou Kant mas, através da leitura de histórias, poemas ou pequenas notícias da imprensa, ou ainda através da visualização de pequenos filmes, estimular as discussões sobre matérias “potencialmente”filosóficas. O objetivo é ajudar as crianças a raciocinar, a formular e a fazer questões, envolvê-las em debates construtivos e apoiá-las no desenvolvimento de argumentos.

 

O “material” pode ser tão díspar quanto a leitura de uma história sobre um miúdo que queria manter uma baleia de estimação na sua banheira ou simplesmente lançar-se uma pergunta, em particular no grupo dos mais velhos (entre os 8 e os 10 anos) que tenha o tal potencial filosófico: “por que motivo os tenistas homens recebem maiores patrocínios do que as suas congéneres femininas?”, “é legítimo privar alguém da sua liberdade?” ou “se pudesses, mandarias acabar com o livre pensamento?”, entre outras inúmeras possibilidades, não esquecendo as mais “óbvias” como “O que é ser humano?”, “se tivesses outro nome, serias uma pessoa diferente?”, “qual a diferença entre dizer uma mentira ou manter um segredo?”, “temos de estar tristes às vezes para podermos estar felizes noutras?”, entre uma panóplia alargada de outras tantas.

 

Os resultados? Não só bons, como inesperados. O mais surpreendente foi o facto de todos os miúdos que participaram nesta iniciação filosófica terem melhorado o seu aproveitamento escolar na matemática e na leitura, tendo em conta que o objetivo inicial nada tinha a ver com melhorias na literacia ou na aritmética. Em média, estes progressos corresponderam ao equivalente a dois meses extra de ensino e foram as crianças provenientes dos agregados mais pobres as que um passo maior deram na sua performance: as suas competências de leitura “avançaram” quatro meses, as de matemática três e as de escrita dois.

 

Também e no geral, todas as crianças participantes demonstraram uma maior confiança para falar em público, melhoraram as suas competências de saber escutar os outros (pares e professores), demonstraram uma paciência muito mais significativa face aos colegas e apresentaram uma melhoria generalizada na sua autoestima. Novas formas de pensamento e raciocínio lógico, em conjunto com uma melhoria significativa nas suas formas de expressão, ordenação de ideias e capacidade de argumentação foram também claramente atingidas.

 

Adicionalmente, estes efeitos benéficos da filosofia duraram dois anos, com o grupo intervencionado a continuar a ter melhores resultados muito tempo depois de as aulas terem terminado, daí que a avaliação final tenha sido apenas publicada em Junho de 2015. O programa foi entretanto adotado por inúmeras escolas em todo Reino Unido, sendo que existem atualmente mais de 3 mil professores formados em P4C e 60 mil crianças a usufruírem deste tipo de experiência. A metodologia utilizada pela SAPERE foi desenvolvida há 35 anos pelo professor norte-americano Matthew Lippman, em New Jersey, e é utilizada, em formatos similares, em mais de 60 países.

 

No fundo, e no que aos mais novos diz respeito e a não ser que haja um cataclismo que desligue a internet, filosofar será cada vez mais difícil. Os alertas multiplicam-se e não é preciso ser-se tecnofóbico para perceber que não é fácil pensar, imaginar ou questionar quando temos o mundo inteiro literalmente na mão e ao nosso dispor ininterruptamente. Quem imagina um adolescente a trocar likes, tweets, instagrams e similares por uma meia hora de silêncio ou de interiorização? Ou o ciberespaço por um espaço físico para pensar? Ou até um chat por uma conversa numa mesa de café, expressando, por exemplo, a tristeza que sente sem se limitar a utilizar uma mera “carinha” triste?

 

Salvo honrosas exceções, a verdade é que cada menos se troca a cuidadosa e morosa gestão do reflexo que se quer partilhar com o mundo, por momentos de autorreflexão. Sabido também é que esta inexistência de espaço e de tempo para se pensar não afeta, como sabemos, só as novas gerações. Em passo mais do que acelerado, tudo o que acontece no mundo é vertiginosamente comentado, opinado, e, é claro, partilhado por cerca de 3,5 mil milhões de pessoas – ou 40% da população mundial que tem acesso à internet. E, destes, um ou dois mil milhões consideram-se, certamente, como filósofos. Se opinam e comentam, logo existem. E assim, para que raio servem os filósofos?

 

Obsoleta e inútil, a quem interessa a filosofia?

 

 

Apesar de, em muitos casos, a filosofia parecer ter sido arrumada numa gaveta poucas vezes aberta, em 2010, o The New York Times resolveu tirá-la do armário académico onde vivia encafuada e partilhou-a com o resto do mundo: apesar de classificada como uma mera coluna de opinião, o espaço The Stone – definido como um fórum para filósofos contemporâneos e outros pensadores, tem vindo a atrair milhões de leitores interessados em questões tão contemporâneas como intemporais.

 

Tópicos universais como os mistérios da consciência ou da moralidade, são misturados com questões da atualidade tão díspares quanto a ética na utilização de drones, o controle de armas, as desigualdades de género, a crise dos refugiados, ou seja, com as questões sociais, culturais ou políticas do nosso tempo, naquilo que parece ser uma receita de sucesso que, afinal, até “dá likes” e partilhas.

 

E foi tão grande o êxito deste “espaço para pensadores” que a coluna semanal deu origem ao livro, publicado em janeiro deste ano, The Stone Reader: Modern Philosophy in 133 Arguments , o qual, de acordo com os seus editores, coloca uma significativa parte do total do discurso da filosofia moderna ao dispor dos leitores. O livro é dividido em quatro grandes secções – Filosofia, Ciência, Religião e Moralidade, e Sociedade e a sua introdução começa da seguinte forma: “O que é um filósofo? E, mais importante do que isso, quem é que realmente se importa com isso?”.

 

Num tom bem-humorado, Peter Capatano, editor do NYTimes e responsável pela edição dos ensaios publicados na The Stone, explica que a primeira pergunta - o que é um filósofo? – foi, exatamente, o tema do ensaio de lançamento da dita coluna em 2010. E qual não foi o seu espanto, e dos ensaístas que para ela iriam contribuir na altura, quando se aperceberam que o artigo tinha sido o mais lido de todos na edição online do jornal nesse dia.

 

Nesta mesma introdução, Capatano não se esquece de sublinhar a ideia de que a filosofia é considerada como supérflua e obsoleta por um conjunto substancial de pessoas, numa espécie de movimento “anti-intelectuais” que vigora nos quatro cantos do mundo, e muito em particular nos Estados Unidos. Mas rejeita liminarmente a ideia – dando como exemplo o sucesso da coluna em causa – de que a filosofia seja inútil, não tendo medo de responder à segunda questão formulada: “há muita gente que se importa, sem dúvida”, escreve. E é esta “muita gente” que poderá ajudar a ressuscitar o valor que a disciplina teve ao longo de grande parte da história da Humanidade.

 

De Harvard aos “cursos que obrigam a pensar” para CEOs

 

 

Essa ressurreição está também a ganhar raízes nos templos do saber da atualidade. Vejamos o exemplo da mais americana das universidades, onde os alunos chegam com planos de carreira bem definidos, na sua maior parte assentes em racionalidades inabaláveis, mas onde uma cadeira denominada Teoria Política e Ética Chinesa Clássica reúne o maior número de alunos inscritos, só suplantada pelas de “Princípios de Economia” e “Introdução às Ciências Computacionais” (aqui tinha mesmo de ser, mas mesmo assim não é nada mau ocupar o 3ª lugar do pódio).

 

Sim, estamos a falar de Harvard e de como um professor, Michael Puett, foi obrigado a mudar de anfiteatro – para o maior do famoso campus universitário – para poder albergar todos os alunos que, em particular desde 2007 (o 2º ano em que cadeira foi ministrada), procuram resolutamente a sua aula. A disciplina – que tem como base a relevância dos textos clássicos chineses para a atualidade – deu origem ao livro The Path: What Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life, lançado no passado mês de Abril e já comprado por editoras em 25 países, incluindo a própria China, onde vai ser publicado ainda este ano.

 

O segredo de Puett parece residir na introdução de ingredientes frescos numa receita antiga. O professor pede aos alunos que leiam os textos originais de Confúcio, como o famoso Analectos, também conhecido como Diálogos de Confúcio ou o Mencius, da autoria do filósofo chinês com o mesmo nome (julga-se) ou ainda o Dao de Jing, comummente traduzido como” O Livro do Caminho e da Virtude” (uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura chinesa), confrontando-os depois com questões similares – mas “modernas” – que seguramente devem ter dado cabo da cabeça dos eruditos chineses há vários séculos.

 

Mas não só. De seguida, Puett sugere aos seus alunos que ponham em prática, nas suas próprias vidas, os ensinamentos apreendidos, sendo que os que predominam são, na verdade, ideias simples que não perdem, de todo, atualidade. De acordo com as palavras do próprio Puett, e numa entrevista que deu, em 2013, à revista The Atlantic, o professor afirma que, face há 20 anos – quando começou a dar aulas – os alunos da atualidade sentem-se “esmagados” por um caminho específico que têm de percorrer no sentido de objetivos de carreira muito concretos, sendo que estes, na maioria das vezes, resultam de imposições externas (seja da pressão dos pais, por exemplo, ou mesmo da sociedade que predetermina que cursos é que “estão a dar”).

 

O que Puett observa é que, cada vez mais, os estudantes orientam todo o seu percurso escolar, e até as suas atividades extracurriculares, de acordo com planos e objetivos de carreira predefinidos e “demasiado” programados. Assim, são muitos os estudantes que juram que ao perceberem que o coração e a mente, maioritariamente separados na visão do mundo ocidental, estão profundamente relacionados entre si e que não podem ser encarados isoladamente – uma das principais “lições” que Puett tenta transmitir nas suas aulas – contribuiu mesmo para mudar as suas vidas, existindo até alguns que – sim, parece loucura, mas é verdade – que trocaram as tais ciências exatas e o que está a dar por cursos em áreas das obsoletas humanidades. Será está a prova da famosa citação que é atribuída a Confúcio e que reza “escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”?

 

Harvard não é a única universidade que está a descobrir as delícias da filosofia aplicada a outras áreas do conhecimento. Outras famosas universidades estão a ir pelo mesmo caminho e o mesmo acontece, em particular, com as escolas de negócios. E é aqui que entra, mais uma vez, o fator negócio, mas um que pelo menos ajuda a desenvolver neurónios e a transformar a gestão em mais do que uma obsessão pelos resultados que figuram nos seus relatórios trimestrais. Retomando a história que deu início a este texto, o fundador da empresa de filosofia Strategy of Mind, Ryan Seltzer, assegura que são cada vez mais as empresas que estão a (re)conhecer a prosperidade de outras suas congéneres que estão a apostar em doses similares de “matemática e filosofia”. Claro que o ex-consultor poderia estar apenas a vender os seus serviços, mas abundam os exemplos de várias organizações que comprovam a sua teoria (e o seu modelo de negócio).

 

Damon Horowitz é um dos casos mais clássicos quando se fala destas estranhas decisões em que executivos bem-sucedidos e, muitas vezes, provenientes exatamente de empresas de tecnologia, decidem experimentar os caminhos incertos da filosofia. E a verdade é que o reconhecido empreendedor resolveu abandonar o seu principescamente pago lugar no mundo tecnológico para tirar um doutoramento em filosofia (a sua formação académica anterior incluía uma um mestrado tirado no MIT Media Lab e estudos em ciências da computação em Stanford, onde agora dá aulas de… filosofia).

 

O atual diretor de engenharia e filósofo in-house (este cargo não é inventado, existe mesmo) da Google proferiu uma interessante talk em Stanford, em 2011, intitulada “Por que motivo deve trocar o seu emprego na área da tecnologia e matricular-se num doutoramento em Humanidades”, a qual explora o valor das humanidades – no geral, e da filosofia no particular – num mundo que está continuamente a ser inundado por novas tecnologias. O seu caso está longe de ser único e, em particular, nas grandes empresas em que a tecnologia e a inovação constituem os principais ativos.

 

O que pode ser facilmente explicado por Fareed Zakaria, um colunista do The Washington Post e autor de In Defense of a Liberal Education. Como escreve, “uma educação alargada ajuda a estimular o pensamento crítico e a criatividade e a exposição a uma variabilidade de áreas produz não só boas sinergias, como uma útil ‘fertilização cruzada’”. Afirmando que tanto a ciência como a tecnologia constituem componentes cruciais no mundo empresarial, o jornalista confere, contudo, exatamente o mesmo valor ao Inglês e à Filosofia, e recorda que num dos inesquecíveis discursos de Steve Jobs, o fundador da empresa da maçã explicava que “está no ADN da Apple o facto de a tecnologia nunca ser suficiente – mas, ao invés, ser o seu casamento com as artes liberais e com as humanidades que produz os resultados que fazem cantar os nossos corações”.

 

No mesmo livro, Zakaria defende ainda que a inovação não é, de todo, uma mera questão técnica, “mas antes a forma de compreender como funcionam as pessoas e a sociedade, o que precisam e o que desejam”, algo que, na verdade, esteve também sempre presente na Apple, cujo enorme sucesso em muito se deveu, entre várias outras coisas, à brilhante antecipação dos desejos dos seus clientes.

 

 

Mark Zuckerberg é outro exemplo de como a tecnologia precisa, indiscutivelmente, do saber produzido pelas ciências não exatas. O fundador do Facebook foi, também, um estudante clássico das artes liberais e simultaneamente um apaixonado pelos computadores. A antiguidade grega sempre foi um dos seus principais interesses e a psicologia a área que escolheu para se licenciar. E não é preciso ser-se muito inteligentes para perceber o quão ligadas estão as inovações do Facebook ao campo da psicologia. E é o próprio Zuckerberg que afirma que o Facebook “tem tanto de tecnologia como tem de psicologia e sociologia”.

 

Zakaria cita também um outro estudo sobre o futuro do trabalho, desenvolvido por dois académicos de Oxford e que concluiu que para os trabalhadores evitarem a “computorização” dos seus empregos, terão de adquirir, cada vez mais, competências sociais e criativas”. Para o autor, o que este exemplo significa verdadeiramente é que, e sem retirar valor às ciências exatas e ao inevitável trabalho com as máquinas (que é, sem dúvida, o futuro do trabalho), as mais valiosas competências serão aquelas “unicamente humanas” ou as que os computadores nunca conseguirão imitar (pelo menos assim se espera).

 

Mas e de volta à filosofia e ao valor do “tempo para pensar”, um artigo publicado na revista The Economist ajuda a melhorar a perspetiva no que a esta necessidade no mundo dos negócios diz respeito. Intitulado Philosopher kings: Business leaders would benefit from studying great writers, defende a criação de “retiros para pensar” em substituição das inúmeras modas a que os CEOs vão aderindo, sempre com o objetivo de melhorar as suas capacidades de gestão e liderança (desde as “provas” em ambientes hostis, aos passeios em plena natureza e já contando com os cursos de mindfulness, que o artigo refere como “bons para relaxar, mas maus porque esvaziam a mente”).

 

No mesmo artigo fica expressa a ideia de que é surpreendente o número de CEOs bem-sucedidos que estudaram filosofia, de que é exemplo Reid Hoffman, um dos fundadores do LinkedIn, que optou também por tirar uma pós-graduação em filosofia em Oxford ou o já falado Horowitz, mas também de como Bill Gates, enquanto geria a Microsoft, tinha por hábito isolar-se uma semana no campo para “meditar sobre um assunto importante” ou de como Jack Welch, enquanto CEO da General Electric, reservava religiosamente uma hora do seu dia para pensar, sem recurso a qualquer tipo de distração.

 

Adicionalmente, Peter Thiel, um reconhecido investidor de Silicon Valley apostou recentemente também em conferências para as quais são convidados pensadores de renome numa tentativa de “melhorar o mundo” e David Brendel, filósofo e psiquiatra, é um dos “gurus” mais procurados por estes executivos de topo para prestar aconselhamento sobre liderança, para além de escrever assiduamente na Harvard Business Review sobre como a filosofia pode ajudar a se ser não só um melhor gestor, como um melhor líder. Curioso – ou não – é também o facto de Brendel ser igualmente um dos co-fundadores da Strategy of Mind acima mencionada.

 

Como afirma também o filósofo in-house da Google, “os líderes do pensamento da nossa indústria não são aqueles que subiram, passo a passo, mas de forma monótona, a escada da carreira, mas os que correram riscos e desenvolverem perspetivas únicas”.

 

Ou seja, aqueles que se deram ao trabalho de pensar, questionar e criar.

 

 

 

publicado às 13:38

A 'showciedade': há uma epidemia de narcisismo?

Por: Helena Oliveira

 

O narcisismo parece estar a contaminar as sociedades ocidentais como se de uma epidemia se tratasse. Os nossos egos estão, de acordo com vários estudos, a engordar a um ritmo bem mais acelerado do que a obesidade física, ela própria decretada como um dos grandes problemas das sociedades ocidentais. Ou seja, temos egos demasiado gordos. Culpa dos pais indulgentes, que transmitem aos filhos a ideia de que são “mais especiais do que os outros”, das redes sociais por proporcionarem o palco por excelência para quem procura exibir a sua grandiosidade ou apenas um “novo normal” ao qual nos temos de habituar?

 

 A modelo Gigi Hadid faz a vontade aos fãs e cumpre o ritual da selfie

 

Recordar-se-á o leitor de um famoso anúncio a uma marca que, há mais de uma década, questionava “se eu não gostar de mim, quem gostará”? E, se puxar pela memória, talvez se lembre também que, passado uns anos, a mensagem da mesma marca se inverteu e o slogan passou a ser “se eu gostar de mim, quem não gostará?”.

Pois bem, a ideia de este artigo não é a de escrever sobre mensagens subliminares veiculadas pelo admirável mundo da publicidade, mas a de alertar para um debate, que não sendo propriamente novo, tem vindo a ganhar contornos renovados com a emergência de uma sociedade em que o narcisismo – ou uma visão crescentemente insuflada do “eu” – parece estar a impregnar-se, crescentemente, em todas as suas esferas.

 

Poderíamos já saltar diretamente para o mundo virtual e culpar, de imediato, as redes sociais – que tão bem veiculam, 24/7, manifestações egocêntricas constantes – mas isso seria escolher o atalho antes de percorrer pelo menos uma boa parte do caminho. Sim, é verdade que ao longo dos últimos anos, e em particular com o advento do Facebook, do Twitter e do Instagram, se multiplicaram os estudos, e a literatura, no que respeita à tentativa de se estabelecer uma ligação direta entre o aumento do narcisismo e os media sociais. Mas, e como defendem também outros “especialistas” da praça, estes servem apenas de meios privilegiados e imediatos para expressar tendências narcísicas preexistentes. E sim, lá iremos, mas não antes de tentar dar uma ordem minimamente cronológica ao assunto.

 

Há já várias décadas, e em particular a partir dos anos 70 e 80 do século passado, que antropólogos, sociólogos e outros “ólogos” afins se uniram na caracterização da sociedade ocidental como “individualista”, fazendo correr rios de tinta sobre o fenómeno. É, no entanto, sobretudo no final do século XX e inícios do século XXI que uma mudança cultural mais alargada, envolvendo valores, crenças e práticas bem demarcadas, se pôs em marcha, e acelerada, no sentido do que já é defendido por vários pretensos entendidos no assunto como a “sociedade obsessivamente narcísica” ou a “epidemia do narcisismo”.

 

quais são as implicações psicológicas e éticas de um envolvimento constante, ou de uma verdadeira obsessão, com a vida passada num palco e à vista de todos

 

Para vários investigadores, uma reflexão sobre este narcisismo aparentemente descontrolado é de particular importância, e há duas perguntas que importa fazer: quais são as implicações psicológicas e éticas de um envolvimento constante, ou de uma verdadeira obsessão, com a vida passada num palco e à vista de todos e de que forma é que este fenómeno altera os nossos relacionamentos com os outros e a visão que temos de nós próprios.

 

Fome emocional ou verdadeiro amor?

 

Para alguns observadores, o fardo é colocado em cima dos ombros dos “novos pais”, que não se limitam a encorajar os seus filhos a alcançarem um saudável autoconhecimento. A título de exemplo, o psicólogo clínico Robert Firestone, no livro “The Self Under Siege: A Therapeutic Model for Differentiation”, afirma que para as crianças se sentirem seguras e terem confiança em si mesmas, é essencial que os pais saibam distinguir a “fome emocional” do verdadeiro amor. Este amor parental “genuíno” inclui carinho, afeição e uma sintonia no que respeita às necessidades das crianças, bem como a oferta de orientação e controlo quando apropriado. Ou, em suma, o tipo de amor que ajuda as crianças a desenvolver uma verdadeira autoestima e não traços de personalidade narcisistas.

 

 

Kevin Frazier, Daniela Ruah, Eric Christian Olsen, James Wolk, e Kirsten Vangsness não resistiram à selfie de grupo na última edição da Comic-Con.

 

Por outro lado, o debate extrema-se entre os que pretendem culpar a Internet e a sua capacidade para customizar as experiências que nela se tem de acordo com os nossos mais ínfimos desejos, o que nos pode tornar mais narcisistas, e os que defendem que esta constitui apenas o terreno apropriado para que traços preexistentes de narcisismo atinjam o seu esplendor.

 

Elias Abajoude, professor de psiquiatria em Stanford, escreve no livro “Virtually You: The Dangerous Powers of the E-personality”, que no espaço virtual muitas das interações físicas que restringem certos tipos de comportamento desaparece, permitindo que comportamentos como delírios de grandeza, narcisismo, malícia ou impulsividade venham mais facilmente ao de cima. Ou seja, “os traços [de personalidade] de que gozamos online podem ser incorporados nas nossas personalidades offline”.

 

De uma forma ou outra, e independentemente das “correntes”, o único consenso aparente parece residir no aumento do narcisismo no mundo ocidental. Resta saber se nos devemos preocupar seriamente com o mesmo ou se estamos, somente, a viver um “novo normal”.

 

Engordar o ego desde pequenino

 

A ideia de que o narcisismo não só está a aumentar descontroladamente, como está a tomar a forma de uma epidemia está bem expressa num livro, publicado em 2009, intitulado exatamente “The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement” e escrito em co-autoria por Jean Twenge, doutorada em Psicologia, professora na Universidade de San Diego e autora do best-seller “Generation Me” e por W. Keith Campbell, também doutorado em Psicologia, docente na Universidade da Georgia e considerado como um dos maiores especialistas neste transtorno comportamental.

 

mulheres jovens palestinos tomar selfies durante confrontos com as forças de segurança de Israel na sequência de uma marcha contra a confiscação de terras da Palestina em 15 de abril de 2016 na vila do banco ocidental de Nabi Saleh perto de Ramallah .

 Palestiniana tira uma selfie no meio de confrontos com as forças de segurança de Israel

 

O livro, que retrata esta “distúrbio” como uma praga, avaliou 37 mil estudantes universitários e concluiu que os traços de personalidade narcísica estão a aumentar de uma forma tão rápida quanto os níveis de obesidade (em mais de 50% desde 1980), sendo esta uma das razões que levou os autores a considerarem o narcisismo como uma “doença epidémica”, numa espécie de “egos demasiado gordos”. O livro, que gerou bastante polémica e descrença q.b. por parte da comunidade académica –ao comparar décadas de resultados de testes de personalidade, Twenge concluiu que as gerações mais novas - nomeadamente a Y - são abusivamente privilegiadas, obcecadas por si mesmas e mal preparadas para a vida real – contribuiu, contudo, para estimular, ainda mais , o debate sobre o narcisismo.

 

Culpando a “cultura americana da autoestima exacerbada”, na qual todos os pais se esforçam por assegurar que as suas crias são “especiais” e cujos sentimentos de valor individual e “único” são considerados como pré-requisitos para o sucesso e não o resultado do mesmo, os autores desmontam os mitos prevalecentes que parecem indicar uma tolerância e até um encorajamento social do narcisismo: a de que este é um mecanismo próprio de uma autoestima elevada, ou, ao invés, de uma autoestima reduzida, de que um pouco de narcisismo é saudável e não faz mal a ninguém, de que os narcisistas são, na verdade, “superiores” e mais facilmente atingem o “sucesso” ou, e voltando ao anúncio que abriu este texto, de que temos de nos amar a nós próprios, em primeiríssimo lugar, para sermos capazes de amar os outros.

 

Tudo isto está presente na nossa cultura, defendem, e começa de imediato na tenra infância – parece que comprar t-shirts estampadas com a palavra “princesa” ou o seu correspondente masculino não constitui ação abonatória para os pais modernos. Para os dois psicólogos, as crianças de hoje crescem num mundo de aceitação “normal” de comportamentos e valores narcisistas, sendo que são muitos os pais e educadores que se esforçam por convencer os filhos de que estes são únicos e especiais, elogiando-os a toda a hora, satisfazendo todos os seus caprichos e conferindo-lhes grandes doses de poder.

 

crianças que cresceram a sentirem-se mais especiais do que os seus pares, acabam por se transformar em adultos que esperam, simplesmente, atingir o “sucesso” fácil e rapidamente – em conjunto com a fama e com o dinheiro que lhe é inerente 

 

Ora, e de acordo com Twenge e Campbell, incutir nas crianças este sentimento de unicidade nada mais é do que narcisismo puro e o mesmo chega a situações tão ridículas quanto o facto de 223 crianças nascidas na Califórnia nos anos 90 terem sido batizadas como Única(s), de existirem estabelecimentos do ensino pré-escolar que instituem o”Mês do Tudo Tem a Ver Comigo”, de alguns clubes de desporto infantil terem acabado com os resultados nos jogos, para não amolgarem os egos dos perdedores ou, no extremo oposto, de oferecerem troféus a todos os miúdos, só porque estão numa equipa. E, muito por causa disso, são também cada vez mais os estudos que comprovam que as crianças que cresceram a sentirem-se mais especiais do que os seus pares, acabam por se transformar em adultos que esperam, simplesmente, atingir o “sucesso” fácil e rapidamente – em conjunto com a fama e com o dinheiro que lhe é inerente – que se ofendem à mínima afronta relativamente à sua suposta superioridade e que, de forma rotineira, se consideram a exceção de qualquer que seja a regra.

 

Narciso, Freud, Ayn Rand, Greenspan, Breivick e Lance Armstrong?

 

Mais recente, num registo diferente, mas com algumas temáticas em comum, é o livro “The Life of I: The New Culture of Narcissism”, publicado em 2014 por Anne Manne, jornalista australiana e filósofa social, que cita igualmente um corpo crescente de pesquisa que demonstra o aumento do culto do narcisismo nos países ocidentais. Por exemplo, e tendo mais uma vez os estudantes universitários dos Estados Unidos como universo privilegiado de estudo, a autora garante que são cada vez mais os jovens que elegem a fama e a fortuna como os seus principais objetivos de vida e não, por exemplo, o bom caráter e o bem que faz fazer bem aos outros, mais consentâneos com as gerações mais velhas. Para a jornalista, o ‘umbiguismo’ atual está, também, a tornar-se num “novo normal”. E, em sintonia com Twenge e Campbell, também Anne Manne concorda que o narcisismo é estimulado por pais indulgentes, que não sabem estabelecer limites e que incutem nos filhos um sentimento de autoestima exagerado.

 

Apesar de o narcisismo ser terreno propício ao estudo por parte de psicólogos e psiquiatras, esta jornalista, mas também filósofa social, sempre se interessou por este “distúrbio de personalidade” e, no livro em causa, não só revisita as ideias de autoridades na matéria, como por exemplo as de Sigmund Freud, pioneiro no estudo sobre a temática, como dá exemplos de criaturas atuais que tão bem vestem as roupagens de Narciso - o jovem caçador que se apaixonou pelo seu reflexo – e que haveria de dar o nome, curiosamente pedido emprestado por Otto Frank, um colega do próprio pai da psicanálise, a todos aqueles que sentem “um apetite enorme e constante de serem admirados, que revelam sentimentos de superioridade, uma predisposição para a exploração, impulsividade e ausência de empatia e, talvez mais importante que tudo, uma agressividade retaliatória quando sentem que o seu ego inflacionado é, de alguma forma, ameaçado”.

 

Na sua cruzada de rever o trabalho de muitos investigadores académicos, entre outros apaixonados pela temática, Anne Manne garante que o narcisismo está em genuíno crescimento um pouco por todo o lado e, mais preocupante que tudo o resto, são os seus impactos tóxicos na comunidade, na cultura, na política, na economia e até no ambiente. Para a autora, a ideologia prevalecente do neoliberalismo alimenta a cultura do narcisismo e as consequências deste repasto são globais. Apontando o dedo às crenças e práticas construídas em torno da idolatria dos mercados e da glorificação da ganância, é na cultura do auto interesse, particularmente em voga a partir dos anos de 1980, que os comportamentos narcisistas encontraram terreno fácil para crescer e se multiplicarem.

 

Hillary Clinton: fazer selfies com apoiantes é um clássico das campanhas eleitorais 

 

Para exemplificar as múltiplas dimensões narcísicas do neoliberalismo, a jornalista australiana utiliza como exemplo uma das mais influentes defensoras do individualismo no século XX, a escritora, dramaturga e filósofa norte-americana (apesar de nascida e educada na Rússia) Ayn Rand. Tendo como base a filosofia aristotélica, Ayn Rand é a fundadora do objetivismo, que elege a razão e a lógica como a única forma de observar o mundo, ao mesmo tempo que defende fervorosamente que o indivíduo tem o direito de viver por amor a si mesmo e sem ser obrigado a se sacrificar pelos outros. Admiradora do egoísmo ético, do capitalismo do laissez faire, e do sistema que definiu baseado no reconhecimento dos direitos individuais, a filósofa que condenava, entre variadíssimas coisas, o altruísmo, haveria de servir de inspiração a muitos americanos, contando, no seu círculo íntimo de amigos e admiradores, com um acólito muito especial: o economista Alan Greenspan. Aquele que viria a ser presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos é, para Anne Manne (e não só), um dos grandes responsáveis pelos fundamentos da crise financeira global de 2008.

 

Um outro exemplo de como o narcisismo tem consequências e impactos globais negativos está relacionado com as alterações climáticas. Para a autora, o ceticismo persistente no que respeita ao aquecimento global é, também, um claro sintoma de um narcisismo crescente. A nível individual, a relutância em se alterar comportamentos em prol de um bem maior ou a inexistência de qualquer preocupação face ao planeta que iremos deixar às gerações futuras constituem sintomas claros de um narcisismo crescente. E, é claro, a nível político e económico, os interesses instalados da indústria dos combustíveis fósseis e o amor sem limites aos lucros de curto prazo encaixam igualmente bem nas características do mesmo.

 

Em “The Life of I”, e entre outros exemplos bem conhecidos, a autora traça o perfil do assassino em massa Anders Breivick, mas também do famoso ciclista americano, entretanto caído em desgraça, Lance Armstrong. No primeiro caso e recordando que apesar do termo “narcisista” não ter, na linguagem popular, uma conotação assim tão negativa, Anne Manne recorda que o mesmo é reconhecido como uma desordem da personalidade que inclui traços patológicos.

 

Recordando a publicação online do manifesto de “auto grandeza” com 1500 páginas escritas pelo assassino norueguês, a 22 de Julho de 2011, dia do massacre dos 69 jovens na ilha de na ilha de Utoya, o qual expressava a superioridade do mesmo face ao ódio visceral que manifestava contra muçulmanos, feministas ou multiculturalistas, e que acabou por resultar na morte de 77 pessoas no total, a autora elenca um conjunto de traços facilmente reconhecíveis nos narcisistas mais “psicologicamente desordenados”: a ideia de grandiosidade, a obsessão com a aparência, o culto da superioridade e a total ausência de empatia face aos demais.

 

Já o caso de Lance Armstrong é apresentado como um bom exemplo do “narcisismo no desporto”, acompanhado de corrupção e erosões de caráter, sendo que o que a autora pretende sublinhar é a ideia de que “não importa quem está no caminho, nem o como se chega lá, o que interessa é ganhar”. Ao questionar se a corrosão do caráter no desporto é emblemática de um sistema social mais alargado, Manne leva-nos a perguntar a nós mesmos se o narcisismo não é, afinal, o “caráter” dos nossos tempos ou o tal novo normal que muitos parecem defender.

 

Importante sublinhar é o facto de o narcisismo não constituir, simplesmente, “egoísmo ou vaidade exacerbados”. Citando Christopher Lasch, autor do livro “The Culture of Narcissism”, publicado em 1979, Manne recorda o que Lasch descreveu há quatro décadas e que tão bem parece encaixar em muitas das caracterizações que comummente são aplicadas à tão falada geração Y da atualidade: “superficialidade, incapacidade para o compromisso, uma autopreocupação alimentada pela ‘sociedade do espetáculo’ na qual as pessoas se comportam como ‘se as suas ações estivessem a ser gravadas e simultaneamente transmitidas a uma audiência invisível’”.

 

O que parece indicar que Lasch era um visionário ou não vivêssemos nós hoje num permanente espetáculo, ao vivo e em transmissão contínua, não só protagonizado por uma praga de Kardashians, mas também por especialistas em selfies, egocêntricos palradores e vaidosos em excesso que, a todo o momento, nos querem convencer de que não existe vida melhor que a deles.

 

#eu ou a vida no Inchagram e arredores

 

Uma pesquisa rápida no Google e chovem estatísticas, acompanhadas de inúmeros sites que “ensinam” a obter os melhores resultados de exposição possível comparativamente aos nossos pares. Mas fiquemo-nos pelos números: os utilizadores do Instagram partilham cerca de 70 milhões de fotos por dia; no Facebook, o upload de fotos chega aos 300 milhões diários, em cada 60 segundos são atualizados 293 mil estados, “postados” 3,5 mil milhões de likes num só dia e todos os dias são cerca de 1,4 mil milhões de pessoas – qualquer coisa como 20% da população mundial – que publicam detalhes da sua vida na ainda mãe de todas a redes; por último e no Twitter, 310 milhões de utilizadores enviam, diariamente, 500 milhões de tweets, 83% dos líderes mundiais têm aqui conta e Caitlyn Jenner foi a personalidade que mais rapidamente atingiu um milhão de seguidores (em apenas quatro horas).

 

todos os dias são cerca de 1,4 mil milhões de pessoas – qualquer coisa como 20% da população mundial – que publicam detalhes da sua vida na ainda mãe de todas a redes

 

Que terreno mais fértil do que este para acolher narcisistas e, consequentemente, para alimentar dezenas de estudos sobre a ligação direta entre o aumento do narcisismo e as redes sociais? Apesar de não existir um consenso generalizado sobre o fenómeno, inúmeras investigações têm sido levadas a cabo para comprovar que o aumento do Distúrbio da Personalidade Narcisista (ou transtorno, ou desordem, dependendo dos autores) está intrinsecamente relacionado com a ubiquidade dos media sociais. Comportamentos como as tentativas obsessivas de atrair o maior número possível de seguidores, a tendência exagerada de expor os pormenores da vida privada (desde que positivos, é claro) e a necessidade de se projetar uma imagem perfeita continuamente, têm sido descritos pelos investigadores como exemplos inequívocos da exibição de traços de personalidade narcisista nas redes sociais.

 

Trabalhadores da construção civil retratam-se com François Hollande 

 

Curioso é, contudo, o facto de em 1987 – e uns bons anos antes do boom da Internet – os psicólogos Hazel Marcus e Paula Nurius terem defendido a existência, em cada um de nós, de dois “eus”: um “eu agora” e um “eu possível”. Pois bem, seria então a Internet a possibilitar a qualquer pessoa optar pelo seu “eu possível” ou, pelo menos, apresentar uma versão desse “eu” tão desejado.

 

Num excelente artigo publicado pelo The New York Times, intitulado “Narcissism is Increasing. So You’re Not So Special”, o autor que o assina recorda o filósofo francês Jean-Jacques Rousseu e os seus escritos sobre o amour-propre, uma espécie de auto-amor baseado nas opiniões dos outros. Considerando-o como não natural e não saudável, Rousseau acreditava que a comparação social arbitrária levava as pessoas a desperdiçarem as suas vidas tentando parecer e soar atrativos para os demais. E isso, como sublinha o autor, é uma boa forma de descrever esta aparente epidemia que tanto debate está a causar. Como escreve “na mitologia grega, Narciso não se apaixonou por si mesmo, mas sim pelo seu reflexo. E se transpuséssemos o mito grego para a sua versão moderna, “Narciso iria apaixonar-se pelo seu próprio feed no Instagram e morreria à fome devido à contagem compulsiva do número dos seus seguidores”.

 

Ora, comportamentos compulsivos desta natureza são comuns em muitas pessoas que conhecemos, em particular nos casos em que uma selfie “perfeita” é publicada e existe uma verificação contínua do número de likes que a mesma vai gerando. Em linha com algumas das investigações que negam a relação direta entre o aumento do narcisismo e a utilização dos media sociais, o autor do artigo defende que não é o Instagram, ou os seus similares, que criam um narcisista, mas e tal como defendem também outros estudiosos do assunto, as redes sociais podem, sim, agir como um “acelerador”desta desordem, na medida em que oferecem a plataforma ideal para facilitar aquilo que os psicólogos denominam como o “exibicionismo da grandiosidade”.

 

De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais, nos Estados Unidos, o narcisismo é uma patologia bem definida, sendo claro que os narcisistas procuram os locais ideias nos quais podem ganhar a sua tão necessária audiência. E, no que a esta necessidade diz respeito, são as plataformas online que melhor palco oferecem para os que sentem uma urgência contínua de se autopromover, comportamentos estes exemplificados pela atualização do “estado” a cada cinco minutos, com a publicação frequente de fotografias de si mesmos, das festas que frequentam, das viagens que fazem, dos restaurantes exóticos que experimentam, dos feitos das celebridades que admiram, e de citações e mottos que servem para se auto glorificar.

 

Face à multiplicação de estudos sobre o aumento de narcisismo nas plataformas sociais, a versão online da famosa revista Psychology Today, lançada em 1967, efetuou um excelente trabalho de compilação dos mais importantes, sendo que alguns são merecedores de especial atenção. De acrescentar ainda que a maioria destes estudos tem como “alvo “ principal os representantes da geração Y, apesar de, em alguns casos, as conclusões baterem também nos egos dos mais “adultos”.

 

"o problema é que o Facebook oferece-nos uma visão limitada das vidas dos nossos amigos, sendo que essa mesma visão tende a ser irrealista" – e exibida sempre como muito mais positiva do que na verdade é

 

Apresentado na convenção anual da American Psychological Association, um estudo da responsabilidade de Larry Rosen, da California State University, demonstrou que os jovens que mais tempos passam no Facebook têm uma maior probabilidade de exibir tendências narcisistas, em conjunto com outros problemas comportamentais. O psicólogo em causa afirma também que os efeitos negativos relacionados com uma utilização abusiva dos media sociais incluem uma maior propensão para a vaidade, para comportamentos agressivos e antissociais, e que estes excessos podem resultar numa performance académica mais pobre.

 

Por seu turno, Dilney Gonçalves, da IE Business School em Madrid, conduziu um estudo que argumenta o que há muito é comummente sabido: a tendência que todos temos em avaliar o nosso sucesso na vida comparando-o com o dos outros. Como escreve “o problema é que o Facebook oferece-nos uma visão limitada das vidas dos nossos amigos, sendo que essa mesma visão tende a ser irrealista” – e exibida sempre como muito mais positiva do que na verdade é. O investigador acrescenta ainda que quanto mais amigos se tem, maior é a propensão para se passar o dia a ler, invejosamente, sobre as férias paradisíacas de um, a nova e gira namorada de outro ou a promoção fantástica que um outro ainda teve no seu já fantástico emprego.

 

Já os investigadores Laura Buffardi e W. Keith Campbell (o co-autor do livro “The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement”) acima mencionado, levaram a cabo também um estudo, publicado no Personality and Social Psychology Bulletin, que comprova dados já previamente existentes. Como explica Buffardi, “concluímos que as pessoas mais narcisistas utilizam o Facebook com vista à sua autopromoção e de uma forma que pode ser facilmente identificada pelos outros”. O número substancial de “amigos” e a forma como os posts aparecem nas suas páginas correlacionam-se facilmente com as características identificadas nos comportamentos narcisistas, garantem ainda os dois psicólogos. E, se por um lado, sabemos que o Facebook se transformou numa parte normal da vida social – mesmo que virtual – de jovens e adultos, por outro, “os narcisistas usam-no exatamente da mesma forma com que se relacionam com os demais na vida real – para a autopromoção e com um especial ênfase na quantidade em detrimento da qualidade”.

 

Angela Merkel dá autógrafos enquanto jovens de uma escola se fotografam junto da líder alemã

 

Um outro estudo, da responsabilidade de Elliot Panek, da Universidade do Michigan, optou por analisar não só o Facebook, mas também o Twitter. De acordo com Panek, “através do Twitter, os jovens tentam alargar os seus círculos sociais e transmitir as suas opiniões”, sendo que ao longo do processo sobrestimam também o valor e importância das suas opiniões. Todavia, e de acordo com as conclusões do estudo, o resultado mais interessante cifra-se no facto de “entre os jovens adultos e estudantes universitários, termos concluído que aqueles que resultados mais expressivos tiveram para certas tipologias de narcisismo são mais adeptos do Twitter, ao passo que entre os adultos de meia-idade, os narcisistas elegem antes o Facebook para os seus posts de autopromoção”.

 

Muitos mais exemplos poderiam ser dados para ilustrar a ideia de que as redes sociais atraem os narcisistas como as abelhas são atraídas pelo pólen e, citando mais uma vez o trabalho de Laura Buffadi, existe um consenso alargado que “os narcisistas utilizam o Facebook e outras redes sociais porque acreditam que os outros estão realmente interessados nas suas vidas, ao mesmo tempo que é seu desejo inato quererem que os outros saibam tudo sobre as suas vidas também”. Consensual é também a ideia de que as redes sociais encorajam a autopromoção, na medida em que são os seus utilizadores que geram os conteúdos que as alimentam. Keith Campbell explica ainda que muitas pessoas utilizam estes meios para se “mostrarem importantes, se sentirem especiais e para ganharem atenção, status e autoestima”. Mas o problema, e mais uma vez, reside no facto de quase toda a gente que tem esta necessidade excessiva de mostrar o quão perfeita é a sua vida apresentar retratos irrealistas de si mesmos. Tal como as pessoas selecionam as suas melhores fotos para constarem no seu perfil (pelo menos, uma grande maioria), a tendência para povoarem os seus newsfeeds com os mais atraentes pedaços das suas vidas é exatamente a mesma.

 

A culpa é do Facebook?

 

Kim Kardashian e Kanye West num evento social: um casal que está e faz por estar sempre no centro das atenções

 

Mas se o Facebook, e seus similares, são indubitavelmente plataformas por excelência para muitos narcisistas, é impossível afirmar taxativamente que são as redes sociais as “culpadas” deste “pico narcísico”. E como afirma Shawn Bergman , um reconhecido psicólogo que estuda a geração Y, “existe uma significativa quantidade de pesquisa psicológica que demonstra que a personalidade de cada um de nós está quase completamente ‘estabelecida’ aos 7 anos de idade”. Assim, e dado que a política do próprio Facebook e de outras redes conexas não permite o registo de utilizadores com idades inferiores a 13 anos, “os traços de personalidade dos seus utilizadores estão já bem enraizados na altura em que as visitam pela primeira vez”.

 

Será que isso significa que, afinal, são os pais indulgentes os culpados desta pretensa epidemia? Não sabemos. Mas e já agora, aceite o convite para testar o seu nível de narcisismo. A não ser que se sinta demasiado especial para se dar a este trabalho.

 

 

 

 

 

 

publicado às 11:38

Millenials: geração o quê mesmo?

Por: Helena Oliveira

 

 

São narcisistas, egoístas, otimistas, preguiçosos, ativistas, desligados, ligados, geniais, limitados, uma bênção e um problema paraas empresas. E também a geração mais estereotipada e escrutinada de sempre. Mas afinal o que distingue estes jovens e por quemotivo se gasta tanto latim e tinta a falar deles?

 

Se fizer uma pesquisa simples no Google utilizando a palavra “millenials”, o motor de busca devolve 14 milhões e 400 resultados; se substituir o termo por “generation Y”, os resultados sobem para os 196 milhões e, se optar por “estudos sobre os millenials”, o Google oferece-lhe 781 mil à escolha.

Em 2016, Jennifer J. Deal, uma investigadora do Center for Creative Leadership irá publicar (mais) um livro intitulado “What Millenials Want from Work: How to Maximize Engagement in Today’s Workforce”. A autora, que estuda esta (e as outras) geração há cerca de 17 anos, tem uma certeza absoluta: o que mais distingue este grupo de jovens, cujas idades variam (dependendo a quem se pergunte) entre os 18/19 e os 34/35 são… as tatuagens. “WTF?” – diria, decerto, um membro desta faixa etária. Só podem estar a gozar. Com tantos estudos, relatórios, capas de revistas, artigos, livros, especialistas culturais, sociólogos, psicólogos, profissionais de marketing, visionários de tendências, antropólogos organizacionais, consultores - entre uma enorme panóplia de outros tantos - a gastarem tempo e recursos para compreender, psicoanalisar, traduzir ou adivinhar os seus padrões de consumo, a forma como se comportam nos locais de trabalho, a melhor maneira de as empresas os atraírem e reterem, entre mil e um outro tipo de “questões muito importantes”, e esta senhora diz que o que mais distingue a também denominada geração Y é o número de tatuagens face às gerações que os precederam?

“Então e a história de sermos nós os ‘nativos digitais’, a net generation, que trata a tecnologia por tu, a primeira geração da história a saber mais que os progenitores, a mais bem preparada academicamente, a que está a alterar a forma como se trabalha nas empresas, a que prefere salvar o mundo do que salvar-se a si mesma com um bom salário, que não vai em tretas de trabalhar muitas horas porque há que ter tempo para os demais prazeres da vida, etc., etc., etc.,?” – perguntará outro espécimen desta tribo.

Ao que um representante informado da geração que a precedeu – aquela que ficou conhecida como X devido ao fotógrafo Robert Capa da famosa Agência Magnum, que retratou, num ensaio fotográfico, os que nasceram fruto da alegria do final da Segunda Guerra Mundial e da vontade incontrolável dos seus pais de fazerem filhos, sim, os tais Baby Boomers – poderá contrapor afirmando: “esses preguiçosos, narcisistas, egoístas, superficiais, mimados, habituados à gratificação instantânea, que só grunhem, não ouvem ninguém porque têm sempre aquelas coisas penduradas nos ouvidos, que teclam em vez de falarem, que não têm respeito pelas chefias, que não usam gravata nas reuniões, que acham que tudo deve ser feito em colaboração porque preferem não ser responsabilizados por nada, que vivem em casa dos pais porque gastam o dinheiro em viagens e que ainda mostram os seus narizes empinados ou as suas duck faces em selfies?”

O diálogo intergeracional que acabou de ler, apesar de ficcionado, espelha bem as variadas e opostas generalizações que, bem veiculadas pelos media apaixonados por estereótipos, perseguem a denominada geração millenial ou Y.

“Toda e qualquer geração imagina-se a si mesma como mais inteligente do que a precedeu e mais sábia do que a que a irá substituir”, afirmou, e com aparente razão, George Orwell. Mas, afinal, que motivos explicam a predileção exacerbada em escrutinar estes jovens que, indisputavelmente, cresceram com a presença ubíqua da tecnologia (para além do seu gosto por tatuagens)?

Em 2025, 75% da força laboral mundial será composta por millenials (se tiverem a sorte de ter trabalho)

Estatisticamente, existem vários fatores que conferem a este grupo uma merecida singularidade comparativamente às gerações que o precederam e, na medida em que o que é diferente angaria sempre atenção, faz algum sentido que sejam muitos os que desejam falar sobre os millenials.

Nos Estados Unidos, de onde é proveniente a maioria de estudos e relatórios sobre os mesmos, os millenials constituem a maior geração da sua história, com cerca de 75 milhões de representantes, sendo estimado que, em 2025, 75% da força laboral global seja por eles constituída. O que efetivamente os distingue é o facto de terem crescido rodeados de progressos tecnológicos constantes e de terem acompanhado a ascensão dos media sociais, para além de terem no currículo os níveis de educação mais elevados de sempre. Todavia e ironicamente, e porque cresceram também ao longo da grande recessão, num ambiente de turbulência económica, os seus elevados níveis académicos não impediram, pelo menos até agora, de ganharem muito menos dinheiro e de sofrerem elevados níveis de desemprego comparativamente aos seus pais com a mesma idade.

Apesar de cada país ter os millenials que merece, graças à globalização, aos media sociais e à exportação da cultura ocidental em tempo real, esta denominada geração Y acaba por ser mais homogénea em diferentes países do que o que acontecia, por exemplo, com os Xers ou os Baby Boomers, mais condicionados pelas fronteiras culturais e físicas que, entretanto, deixaram de existir.

Mas o que realmente parece importar para explicar toda esta atenção desmesurada prende-se com o facto de, também pela primeira vez na história, ser comum encontrar-se, no local de trabalho, quatro gerações diferentes a trabalhar lado a lado. Ora, uma força laboral multigeracional encerra algumas tensões que, de acordo com os gurus organizacionais, têm de ser antecipadas e solucionadas, não vá o diabo tecê-las e colocar em causa a tão necessária produtividade empresarial.

Com os estudos sobre estas supostas “aves raras” a multiplicarem-se, fomos igualmente assistindo a um conjunto de informações que, apesar de contraditórias, tinham como objetivo comum ajudar as empresas a compreender, apaparicar e lidar com esta geração que, aos olhos dos que os “investigam”, parecia fazer sombra às demais.

Os millenials podem ser descritos como jovens que privilegiam o bem-estar, desafiam os padrões convencionais de trabalho (considerados rígidos ou muito pouco flexíveis) em prol da flexibilidade e mobilidade, dispensam os horários laborais fixos e encaram a vida como um todo, aproveitando cada momento e não fazendo distinção entre trabalho, família e diversão e que se regem pela máxima “work hard, play hard”. Mas também há quem os considere preguiçosos. Na medida em que os seus cérebros não estão preparados para armazenar informação, pelo simples motivo de nunca terem tido necessidade de fazer esse exercício, apesar de mais aptos a desempenhar diversas tarefas em simultâneo e a mudar de registo (ou de chip) de forma quase imediata, o que agrada aos empregadores adeptos da necessidade do multitasking, são também acusados de serem demasiado impacientes e de não compreenderem, nem aceitarem, o modelo tradicional da gestão que pressupõe que a totalidade da informação esteja apenas acessível aos órgãos superiores das empresas e vedada aos restantes trabalhadores.

O problema - se é que existe - é que, à medida que o tempo passa, uma considerável quantidade de millenials começa agora a chegar a posições de liderança no interior das empresas e, depois de vários anos a serem escrutinados e adjetivados simpática ou antipaticamente, as organizações parecem estar crescentemente preocupadas com formas que assegurem o seu sucesso (enquanto líderes, é claro).

Se essa preocupação explica, em particular nos últimos dois anos, a profusão de novos relatórios que constatam a existência de mitos, preconceitos e falsas verdades que colocam em causa tudo o que já se escreveu e debateu sobre esta geração - que tanto é considerada narcisista e preguiçosa, como otimista, ativista e cheia de energia – não se sabe ainda. Mas a verdade é que se voltarmos a fazer uma pesquisa no Google, desta feita com a expressão “(quase) tudo o que sabemos sobre os millenials está errado”, os resultados começam também a ser abundantes.

Uma outra curiosidade face a toda a pesquisa que já se efetuou sobre esta geração é o facto de, por cada novo relatório apresentado por entidades reconhecidas, sejam as grandes consultoras, as mais famosas universidades e outros especialistas insuspeitos, nos é garantido, e às empresas, que o estudo em causa é “o mais representativo e abrangente” feito até então, o que confere sempre um “valor acrescentado” às supostamente novas descobertas.

Assim, e se quase tudo o que sabemos sobre esta geração está errado, em que devemos acreditar?

Me, myselfie and I

Quando, em 2013, a revista Time escolheu para tema de capa esta “Me, me, me generation”, a questão do seu narcisismo exacerbado foi pormenorizadamente analisada. Munida de complexos estudos psicológicos e de estatísticas provenientes de um sem número de fontes académicas insuspeitas, o artigo principal da revista centrava-se, exatamente, na incidência de uma desordem narcísica que marcava esta geração. “De acordo com o National Institutes of Health, esta desordem de personalidade narcisista afeta três vezes mais os jovens na casa dos 20 anos comparativamente aos que têm 65 ou mais anos”, podia ler-se. Adicionalmente, a revista norte-americana citava um estudo recente que assegurava que 40% dos millenials auscultados acreditavam que deveriam ser promovidos, independentemente da sua performance; a obsessão com a fama foi outra das características que a Time “estudou” e comprovou estatisticamente, em conjunto com um “atraso” no seu desenvolvimento, comprovado pelo facto de existirem mais jovens entre os 18 e os 29 anos que viviam com os pais e não com um(a) companheiro(a). E, por fim, a cereja no topo do bolo: a organização sem fins lucrativos Families and Work Institute reportara, em 1992, que 80% dos menores de 23 anos desejavam ter, um dia, uma posição de elevada responsabilidade. Dez anos depois, o mesmo instituto assegurava que este número tinha descido para apenas 60%. A preguiça estava “cientificamente” comprovada.

Mas o cenário quase apocalíptico da revista sobre estes estranhos jovens não se ficava por aqui. Sublinhando a ideia comummente aceite de que os millenials interagem entre si o dia inteiro apenas através de um (ou vários) ecrã, sentando-se uns ao lado dos outros sem conversarem mas em permanente ‘estado de texting’, a Time explicava que estes estranhos jovens “podem parecer calmos, mas sofrem uma profunda ansiedade por poderem estar a perder algo melhor”, nos seus vários universos virtuais. “Setenta por cento consultam os seus telemóveis em cada hora que passa e muitos sofrem do ‘síndrome da vibração fantasma no bolso’”, assegurava o artigo, citando ainda uma reputada professora de psicologia da Universidade da Califórnia, autora do livro “iDisorder” que afirmava que “este comportamento serve para reduzir os seus níveis de ansiedade” e que a sua busca constante por uma dose de dopamina [o neurotransmissor do prazer e da recompensa], protagonizada por um mero like na atualização do seu estado no Facebook, contribuía para a redução da sua criatividade. A propósito deste último item, a revista recorreu igualmente aos Torrance Tests of Creative Thinking, os quais, em meados dos anos de 1980, comprovavam um aumento da criatividade nas crianças de então, a qual descia a pique em 1998, o mesmo acontecendo com a avaliação da empatia, em 2000, queda esta explicada pela ausência de comunicação face a face e dos graus elevados de narcisismo de que padece (?) esta geração.

A revista assegurava, assim, que os millenials não só careciam da empatia necessária para se preocuparem com os outros, como também demonstravam problemas, a nível intelectual, que os impedia de compreender os pontos de vista alheios.

Feito este retrato arrepiante, para os próprios, para os Boomers e Xers, seus progenitores, e para as desgraçadas empresas que não sabem como lidar com esta geração tão “fora” dos parâmetros da normalidade que a todos sossega, o que mais sugerem os estudos nos últimos dois anos?

Surpresa: afinal a tecnologia não criou monstros autistas

Mitos, exageros e verdades desconfortáveis: a história real dos millenials no local de trabalho” é o título de um relatório publicado, em 2015, pelo IBM Institute for Business Values, o qual levou a cabo um estudo intergeracional de empregados em 12 países. Em termos muitos sintéticos, o estudo conclui que os representantes da geração Y – enquanto nativos digitais – oferecem um valor vital ao ambiente laboral que sofre mutações constantes próprias da revolução digital, mas que, por outro lado, e em vários patamares, os que estes jovens pretendem, em conjunto com os seus padrões de comportamento, é muito similar ao que os seus pares mais velhos desejam.

Afinal e pasme-se, as suas expectativas e objetivos de carreira não são diferentes das gerações que os precedem: a segurança financeira e a senioridade surgem, tal como nos Xers e nos Baby Boomers, como objetivos primordiais a atingir; a sua vontade constante de serem reconhecidos é exatamente a mesma da dos seus pares de trabalho; a ideia de que, sendo eles “viciados digitais” que tudo fazem e partilham online, sem respeito pelas fronteiras pessoais e profissionais, é também errada, na medida em que, por exemplo, preferem o contacto face a face quando estão a aprender novas competências no trabalho (na verdade, os millenials são, de acordo com este estudo, mais “capazes” de traçar linhas divisórias entre as suas vidas pessoais e profissionais no que respeita aos media sociais do que os próprios Xers ou Boomers); a história, tantas vezes repetida, de que, ao contrário dos colegas mais velhos, não conseguem tomar uma decisão sem primeiro ouvirem a opinião de vários é, agora também, desconstruída: apesar da sua reputação e tendência para o crowdsourcing e de ser legítimo afirmar que tomam melhores decisões quando pedem conselhos a várias pessoas, o mesmo acontece com dois terços dos Xers entrevistados; e, por último, a crítica que lhes é normalmente feita no que respeita a serem “saltimbancos de emprego” quando a função que exercem ou a empresa em que trabalham deixa de lhes despertar paixão pode igualmente ser atribuída tanto aos Xers como aos Baby Boomers: mais de 40% de todos os entrevistados admitiram mudar de emprego por mais dinheiro e por um ambiente de trabalho mais inovador.

Regressando a Jennifer J. Deal e à sua longa pesquisa no que às diferentes gerações diz respeito, é possível concluir que, afinal, todas as gerações que compõem as fileiras laborais da atualidade são, em maior ou menor escala, significativamente estereotipadas. A investigadora oferece, num seu livro anterior, a visão generalizada que se tem das várias gerações – a Geração Silenciosa (nascida antes de 1946), que valorizava o trabalho árduo, os Baby Boomers (1946-1964) que enaltecem a lealdade, os Xers (1965-1980) que desejam a conciliação entre vida profissional e familiar e os millenials que anseiam, acima de tudo, por inovação e mudança. Ou, como escreve, em termos de estereótipos negativos, “os Silenciosos estão fossilizados, os Boomers são narcisistas, os Xers são acomodados e os Millenials são ainda mais narcisistas do que os Boomers”. “O que não é verdade”, garante. Para esta investigadora, as gerações que se encontram em idade ativa valorizam, simples e essencialmente, as mesmas coisas, apesar de terem diferenças entre si e ainda bem.

Sendo assim, talvez seja a altura certa para se contradizer a retórica que predomina nos 781 mil estudos (e mais alguns que tenham parecido entretanto). Mais do que se espartilhar este grupo e encerrá-lo num compartimento estanque preenchido por verdades absolutas, talvez seja mais sensato e inteligente pensar que a vida é feita de estádios e que, tal como os Xers, por exemplo, cresceram e adaptaram-se, enquanto imigrantes digitais, a um ambiente laboral inovador, com novos valores e desafios, o mesmo irá acontecer a estes jovens. As atitudes e os comportamentos não são inalteráveis. Nem as culturas organizacionais e as receitas para a liderança.

Encarar os millenials como um “desafio” – para colocar a questão em linguagem de negócios – em nada contribui para a saudável convivência intergeracional nas empresas. Mas conferir um peso igual às inegáveis novas competências que esta geração traz para a força de trabalho - e sim, é prodigiosa a sua capacidade para colher e interpretar várias fontes de informação, bem como a sua competência para trabalhar em rede e aproveitar todas as vantagens do mundo digital – só trará benefícios não apenas aos seus pares mais velhos, como à empresa e, é claro, ao que mais interessa: a produtividade.

Por último, um apontamento pessoal à grande diferença (para além da mestria tecnológica) encontrada pela senhora Deal que caracteriza esta geração: uma viagem aos areais portugueses iria, decerto, baralhar a sua investigação. Tatuagens? Dos Baby Boomers aos Xers, elas andam aí.

 

Helena Oliveira é editora do Portal VER, tradutora e autora de “Palavras de Steve Jobs” e coordenadora de várias publicações na esfera económica. Gosta de fazer incursões noutros territórios editoriais e, desta curiosidade resultou já o conto infantil “O verdadeiro Pai Natal”. Gosta de ler, e de ler, e de ler, que são basicamente os seus hobbies favoritos. Antropóloga de formação, interessa-se pelo comportamento humano em geral, e pela sua interceção com as tecnologias em particular. O estranho e culturalmente fértil mundo das empresas é, igualmente, uma das suas áreas de preferência.

 

 

 

publicado às 18:29

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