O espetáculo é fabuloso e é para todos
Por: Sena Santos
Esta é uma história de encantamentos e magia contagiante. Irromperam nas colunas de som as primeiras notas de “Aquele abraço”, o hino à liberdade composto por Gilberto Gil, em 1969, em plena ditadura, o relvado do Maracanã foi transformado num imenso ecrã por onde desfilou a vida do Brasil, as emoções nas bancadas cheias do estádio mítico entraram em vibração e pelo mundo, agarrado pela transmissão, propagou-se uma tripla magia: a da cidade que, apesar de tantas queixas, continua a gerar sensações maravilhosas, a do povo brasileiro que, mesmo tão sofrido, tem no rosto aquela alegria marota e no corpo aquele ritmo exuberante, e a do espetáculo fabuloso dos Jogos Olímpicos. Os Jogos têm o valor político extraordinário de nos mostrar que todos podem conviver, com alegria.
Num estádio, numa pista, numa piscina, numa cantina, num bar, numa paragem de autocarros, numa aldeia. Caem os racismos e as soberbas, gente de todas as cores, de todas a regiões e de todas as religiões, todos podem dar-se e, com alegria, com entusiasmo, sem medos, competir uns com os outros, umas com as outras. Jogar, falar, dançar, brincar. É um exemplar encontro social e humano. É um domínio em que a finança não manda, ou pelo menos não tem o poder decisivo.
Apetece abrir gavetas das memórias. 1936 foi um ano nefasto, o dos jogos de Hitler – mas também do super campeão Jesse Owens - em Berlim e do começo das matanças na guerra civil de Espanha. Tempos tremendos. Mas, 32 anos depois, veio 1968, um ano talvez o mais intenso do século XX, e presente na memória vivida de muitos de nós: foi um ano de violências e utopias, a escalada da guerra do Vietname, Bob Dylan e Joan Baez eram estrelas empolgantes na contestação à devastadora guerra; foi o ano do choque com o assassinato de Martin Luther King e de Bob Kennedy, da revolta estudantil que alastrou da Sorbonne e do Boulevard Saint Germain em Paris, aos Estados Unidos, ao Japão e a outros países, dos tanques soviéticos a invadir o coração de Praga e da liberdade, da revolução cultural de Mao com todos os excessos e purgas na China que se reclamava de Popular. Foi o ano em que o mundo sentiu um soco no estômago com as imagens trágicas da fome de morte no Biafra. Foi também o ano em que Salazar caiu da cadeira de lona na casa de férias no Estoril e assim se levantou a ilusão de alguma aragem no claustrofóbico regime político de um Portugal onde os jovens eram empurrados para optar entre o pesadelo da guerra colonial em África e o exílio nalguma França.
1968 foi ano olímpico, jogos na Cidade do México e na televisão ainda a preto e branco, mas a deixarem memórias que marcam: foram os jogos do protesto dos americanos do Black Power (Poder Negro) e do espantoso voo de 8 metros e 90 centímetros – marca que parecia fora do alcance humano - do americano Bob Beamon no salto em comprimento. O pódio da corrida de 200 metros planos em atletismo entrou para a história pela audácia política de dois atletas campeões: o medalha de ouro Tommie Smith e o medalha de bronze John Carlos, ambos negros americanos, enquanto era içada a bandeira e entoado o hino dos EUA, ergueram o punho com uma luva preta a simbolizar o protesto dos negros. O australiano Peter Norman, um branco, não levantou o punho mas levantou a voz para se solidarizar com os companheiros no pódio. Os dois americanos foram expulsos da aldeia olímpica mas o seu gesto político marcou os jogos de 68 no México tanto quanto a proeza do salto que fez de Bob Beamon uma lenda do desporto.
Vieram a seguir os Jogos de 72, em Munique. Foi a apoteose do norte-americano Mark Spitz com sete ouros na piscina, e a soviética Olga Korbut a entrar para a lenda na ginástica. Mas também houve o lado amargo com a matança de 17 pessoas (11 atletas israelitas, cinco terroristas do Setembro Negro palestiniano e um polícia alemão), num ataque que transportou para dentro dos Jogos as lutas entre palestinianos e israelitas.
Oito anos depois, 1984, foi Los Angeles: o júbilo português com o ouro da maratona para Carlos Lopes e o deslumbramento com Carl Lewis que disparou como o atleta mais completo de todos os tempos.
Continuando a avançar nas memórias, 1992 foi a vez de Barcelona. Freddie Mercury já tinha perdido a vida para a SIDA há nove meses, mas no ecrã do estádio de Montjuic e na coluna sonora a voz dele ressurgiu e uniu-se à de Montserrat Cabbalé para interpretar Barcelona, o hino oficial desta edição dos Jogos num ano de glória espanhola – Expo em Sevilha e Madrid capital cultural. Também está na memória o espetáculo dado pelo triunfante “Dream Team” do basquetebol americano, com Magic Johnson e Michael Jordan. E a imagem da americana Gail Devers que se levantou de uma doença que a tinha posto em cadeira de rodas para conquistar o ouro dos 200 metros no atletismo.
Também inesquecível o ano 2000, em Sydney, com a aborígene Cathy Freeman a ganhar o ouro dos 400 metros e o surgimento nas piscinas do torpedo Ian Thorpe. Em 2004 foi o regresso dos Jogos a Atenas. Inolvidável festa de abertura, com a Grécia a mostrar o nascimento do Ocidente e da democracia, o mito e a história.
O espetáculo inaugural tornou-se acontecimento sempre imperdível nos Jogos: em 2008, Pequim celebrou a sua conquista do topo global; Londres respondeu em 2012, colocando a Humanidade à frente da tecnologia: literatura, teatro, música e cinema, de Shakespeare a Chaplin e James Bond, passando pelos Beatles, Rolling Stones, The Queen, e até a rainha, Isabel II, ela própria, em carne e osso, no espetáculo criado por Daniel Boyle, realizador de filmes tinha como Slumdog Millionaire ou Trainspotting.
Entretanto, o mundo tinha mudado: avançava a globalização, tinham entrado o terror com o 11 de setembro e a crise financeira com o colapso de 2008 que abateu quase tudo. Os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tinham passado a contar muito na agenda internacional, portanto, também nos Jogos Olímpicos. Em 2 de outubro de 2009 o Comité Olímpico reuniu-se em Copenhaga para decidir a sede dos Jogos de 2016. A Espanha mobilizou-se para a aposta em Madrid. Tóquio investiu mas resignou-se a ficar com a edição de 2020. Obama, já presidente dos EUA, viajou à Dinamarca para defender a candidatura da sua Chicago. Mas também estava em competição um Lula triunfante a puxar pela candidatura do Rio de Janeiro. O ex-operário metalúrgico, presidente do Brasil eleito em 2003 com 54 milhões de votos, parecia protagonizar com êxito uma tranquila revolução: a economia brasileira a crescer 7% ao ano, o salário mínimo a disparar 80%, 35 milhões de brasileiros a saírem da fome e da pobreza extrema, as fundas diferenças salariais a ficarem atenuadas. Lula estava em final de mandato, a taxa de aprovação abeirava-se dos 80% e o Brasil avançava num ciclo de expansão propulsado pela descoberta de enormes reservas de petróleo na costa. Parecia ir escapar à crise que atordoava o mundo mais rico. Mas não foi assim, o tempo passou e a poção mágica que tinha puxado o Brasil deixou de funcionar.
Em 2013, o preço do petróleo desabou e com ele também caiu muito da Petrobrás que financiava generosamente o sistema político-empresarial do país. Lula já tinha esgotado o tempo de presidência e passado a liderança a Dilma. O Estado tinha menos dinheiro e o povão tornara-se exigente, saía à rua para exigir serviços públicos de qualidade. O Brasil investia milhões nos estádios para o Mundial de 2014 mas o povo reclamava hospitais, escolas e transportes públicos. Sucederam-se manifestações, cada vez mais iradas. Surgiu a Mídia Ninja com grande poder de informação e de mobilização. Tudo contra os poderes que apareciam corruptos ou incapazes. Um justiceiro de Curitiba tornou-se herói popular: o juiz Sérgio Moro, pôs-se ao comando – com espetáculo e populismo jurídico - da Operação Lava-Jato e, ao denunciar a trama corrupta de subornos e lavagem de dinheiro, meteu na cadeia empresários e políticos que antes mandavam no Brasil e desmantelou o sistema político-financeiro do Brasil. O PT, criado por Lula, após 13 anos de poder, foi devorado pelo sistema que não soube reformar. A democracia brasileira entrou em terramoto, com muitas sacanagens e abusos no turbilhão.
A decomposição do sistema de poder e o esgotamento de recursos financeiros pôs tudo em causa e fez pensar que o Rio de Janeiro – que, entretanto, declarara falência – iria fracassar na organização dos Jogos Olímpicos. O caos foi anunciado. Da desorganização, atrasos e incompetências, à insegurança, à falta de limpeza básica e até ao risco de picadas de mosquitos com ameaça de Zika. No entanto, chegou o dia e tudo funcionou. Uma belíssima cerimónia inaugural que o aclamado realizador da Cidade de Deus concebeu para mostrar a espantosa diversidade e vitalidade do Brasil. Magnífico! Tudo como deve ser, até a vaia a Temer, o presidente em funções cuja presença na tribuna, para tantos, é abusiva, usurpadora. O espetáculo dos Jogos está em curso, sedutor, a mostrar a beleza do gesto físico e a contínua superação individual e coletiva.
É facto que o Brasil nos últimos tempos andou muito para trás. A promessa ao povão de poder crescer, ler, aprender, comer duas vezes ao dia, ter trabalho, acesso à saúde, ser respeitado, lutar pelo dia de hoje e pelo futuro ficou na utopia. Até as melhorias que Lula trouxe estão em causa. Há uma revolta profunda no coração e na cabeça dos brasileiros. Mas os brasileiros, uma vez mais, saberão dar a volta.
O brasileiro médio não tem como entrar nos estádios dos Jogos Olímpicos. Mas não deixará de vibrar, tal como todos nós, com a sucessão de momentos mágicos que os ecrãs mostram nestas duas semanas de Jogos Olímpicos. O espetáculo é fabuloso, excitante, e é para todos.
TAMBÉM A TER EM CONTA:
Pelo menos 70 pessoas morreram, grande parte eram advogados e jornalistas, num ataque-suicida nesta segunda-feira num hospital de Quetta, cidade do sul do Paquistão. Que destaque tem esta matança nos media europeus? Compare-se com outro terrível massacre, o de Nice, há menos de um mês.
O que resta hoje da antiga Babilónia?
Nas noites de 12 e 13 deste agosto há que contemplar o céu. Anuncia-se uma rica cascata de estrelas cadentes. O espetáculo, tal como o dos Jogos, é fabuloso e é para todos.
Duas primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS: esta e esta.