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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Estamos quase todos em espera. O paciente europeu resiste?

Por: Francisco Sena Santos

Estamos quase todos à espera e o sentimento é mais de ansiedade ou até de temor do que de ilusão e esperança. Nem me refiro ao que se vive dentro de Portugal onde, apesar de tendências para alguma baixeza assaltar o espaço de discussão pública, as tensões dos últimos anos parecem atenuadas. O sobressalto é o que está à nossa volta, fora de portas, mas a determinar a vida de todos.

 

Andámos muitos anos a ouvir falar de integração europeia – e isso trouxe aos portugueses desenvolvimento e incomparavelmente melhor qualidade de vida. Agora constatamos a desintegração europeia. Até uma voz de topo como é a da chanceler Merkel assume que a Europa vive fase crítica. A Europa tornou-se um condomínio onde todos discutem, onde uns têm poderes que escapam aos outros e onde não há a solidariedade nem o melhoramento social que foi o fundamento da União. A atmosfera não está propícia para a boa convivência nem para os ideais.

 

Há uma pergunta fundamental: como é possível que o ideal europeu, que chegou a ser tão entusiasmante, se tenha transformado em algo que gera tanta repulsa que já levou os britânicos a votarem pelo divórcio enquanto em muitas partes da Europa crescem as forças nacionalistas e anti-europeias? As causas são certamente muitas. Algumas passam pela memória que se apaga, outras por desconfortos na vida de agora.

 

Na memória, efeito de décadas de prosperidade e paz, está a diluir-se o sentimento de insegurança bélica do pós- Segunda Grande Guerra (39-45) que tinha levado Churchill, há precisamente 70 anos (setembro de 1946), a pronunciar em Zurique o famoso discurso em que, com o estatuto de vencedor moral e material do nazismo, apelou à criação dos Estados Unidos da Europa. Esse esquecimento do fantasma da guerra tende a ser um erro perigoso, até porque as últimas décadas têm mostrado, dos Balcãs à Ucrânia, como a guerra permanece como ameaça dentro do continente europeu. E crescem fricções que podem gerar mais faíscas.

 

O desconforto da vida europeia de agora passa pelas sucessivas crises. Há culpas atiradas sobre a mal planeada introdução do Euro no 1º de janeiro de 2002. Há o desastre que veio com o colapso financeiro de 2007 e as políticas de dura austeridade impostas a seguir, penalizando em especial as pessoas dos países da Europa do Sul com desemprego, involução da qualidade de vida e crescendo da desesperança. Há a crise suscitada pelo acolhimento – que é nosso dever – dos refugiados e a amálgama que mistura tradições diferentes com terrorismo. Também há a reconhecida grande falta de estadistas, políticos visionários capazes de instalar confiança e futuro.

 

Woody Allen disse uma vez que a vocação do político de carreira é fazer de cada solução um problema. Talvez se tenha inspirado em Ezra Pound que teorizava que governar é a arte de criar problemas cuja solução é um enredo que agarra os cidadãos. Imagino que o caso presente na Europa nem tenha tanta sofisticação, tão medíocres têm sido várias das personagens de topo. Merkel revelou-se no último ano, para muitos (sou um deles) com surpresa, uma estadista que respeita o valor fundamental da tolerância, com a sua corajosa política de acolhimento de refugiados. É uma opção com alto preço político: há duas semanas caiu para terceiro lugar e foi ultrapassada pelo pior adversário, o partido xenófobo AfD, no seu estado natal de Meclenburgo-Pomerânia, e neste domingo caiu cinco pontos descendo para 18% em Berlim, a capital governada pelo SPD. Não perdeu a calma nem o discurso, repetiu que a Alemanha não pode abandonar a Grécia e a Itália sozinhas com os refugiados, embora não possa voltar a receber um milhão de migrantes num só ano.

 

Merkel representa neste desafio do acolhimento o melhor do espírito europeu. É o oposto de Marine Le Pen. É de notar que são mulheres quem lidera as duas frentes políticas que se confrontam sobre valores fundamentais na Europa. E ambas têm eleições cruciais no ano que vem.

 

A prova das urnas, quando sopram corrosivos ventos nacionalistas, parece estar a ser um condicionamento para a procura de soluções europeias. A França tem presidenciais e legislativas em abril do ano que vem: Hollande está com muito pouco espaço, o confronto tende a ser entre o moderado Juppé e a populista le Pen. A Alemanha tem legislativas daqui a um ano e Merkel pode perder o poder. No horizonte mais imediato está o referendo anti-refugiados promovido por Orban na Hungria (é tempo de a Europa seguir a sugestão luxemburguesa de afastar a Hungria do clube europeu, não partilha os ideais fundamentais) e a repetição da finalíssima das presidenciais na Áustria, com o líder da extrema-direita à frente nas sondagens. A direita populista também tem promessa de avanços nas eleições holandesas. Acresce para este frustrante bloqueio europeu o referendo constitucional em Itália, decisivo para o governo de Renzi, um dos líderes – com Costa e Tsipras - de uma alternativa da Europa do Sul e o impasse político em Espanha.

 

Quando Merkel falou de Europa em estado crítico talvez não quisesse chegar ao ponto de dizer que a Europa está em coma assistido. Mas o tempo da União Europeia pode estar a esgotar-se.  O risco sério é o de desintegração mas ainda há esperança, pode haver energia e sonho para uma refundação. A dúvida é: quem pode liderar e como uma ambição assim?

 

A atual União Europeia está estilhaçada. De modo simplista há quatro partes principais: há o diretório franco-alemão que às vezes integra a Itália e que pretende impor a sua vontade muito germânica; há a linha dura do Norte encabeçada pela Finlândia e vários acólitos; há o grupo EuroMed que envolve os países do sul agora governados à esquerda, de Portugal à Grécia, incluindo França, Itália, Malta e Chipre – também a Espanha que, invocando estar com governo interino, mandou um secretário de Estado para a representar na cimeira de Atenas; e há o grupo de Visegrado, quatro países do Leste, Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia, que levantam um muro contra os migrantes.

Vários destes países da Europa Central e de Leste agem como se a União Europeia já não contasse – embora tenham sido grandes beneficiários dos fundos europeus. Funcionam com modelos assentes no baixo custo do trabalho e salários reduzidos. Grande parte da força económica dos tigres da Europa de Leste decorre de terem beneficiado do calendário: tiveram o fôlego dos fundos de solidariedade quando o resto da Europa apanhou com os apertos orçamentais do Pacto de Estabilidade.  As economias de Leste crescem todas acima dos magros 1,6% da média da zona euro. A Polónia cresceu 3,7% e a Roménia 4,2% no ano passado. É facto que a Irlanda, nossa parceira nos resgates, cresceu 4,8% em 2014, beneficiando dos amplos incentivos fiscais.

 

São economias que cresceram com a solidariedade europeia. Mas várias não retribuem com o respeito dos valores e direitos fundamentais. É assim que nesta ocasião extremamente delicada a Europa precisa desesperadamente de líderes com ideais e vontade. O paciente europeu requer um tratamento de choque. O problema é que a espera se prolonga e está difícil vislumbrar alguma esperança. Mas não é impossível voltarmos a uma Europa de partilha de culturas, de convivência em solidariedade e de melhoramento social. A Europa precisa tanto desse novo e grande impulso, pensado para as pessoas e não para os mercados. Sem solidariedade a democracia perde a alma.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

 

O que é que foi mais explosivo, as bombas ou a cobertura mediática das bombas em Nova Iorque? É uma atmosfera que dá pontos a Trump? Uma amostra com primeiras páginas de hoje nos EUA. Também no Reino Unido.

 

 

Está a chegar o automóvel sem condutor.

 

 

Entra em cartaz a competição pelos Óscares de 2017.

 

 

Uma primeira página escolhida no SAPO JORNAIS.

publicado às 08:20

A ilusão perdida em Roma

Por: Sena Santos

Há cidades a que se deseja sempre voltar e Roma é uma delas. Mary Beard, prestigiada especialista em Clássicos da Antiguidade, catedrática em Cambridge, tem escrito livros fascinantes sobre a Roma Antiga que modelou muito da nossa civilização. Ela explica como os pensadores e políticos dessa Roma de há vinte e um séculos, mestres de sabedoria, refinamento e estratégia, tiveram a visão para abrir caminhos, levantar pontes, construir aquedutos, definir bases do Direito e de tanto mais, deixaram-nos em herança um pensamento que é bússola, mas ao mesmo tempo eram violentos com o seu brutal e disciplinado poder de ataque e saqueadores com cruel rapina na terra conquistada pelo império que se estendia da Península Ibéria ao Médio Oriente.

 

A Roma de há 2100 anos é descrita por Mary Beard como uma cidade com mais de um milhão de pessoas que viviam numa mistura de liberdade e exploração, luxo e lixo. Há qualquer coisa desse retrato antigo que encaixa na Roma de hoje, à beira dos três milhões de residentes. Roma é encantadora para quem a visita mas quem lá vive está farto: embora sempre fiéis ao estilo e à elegância, os romanos perderam a paciência com a degradação da qualidade de vida na sua cidade onde o trânsito é um suplício, o pavimento das ruas está mal tratado, os transportes públicos estão em colapso, os monumentos à mercê da penúria de recursos e cuidados, o lixo com frequência fica vários dias amontoado nas ruas, as águas e margens do Tibre parecem de há muito uma lixeira. Há um vídeo gravado por um estudante que mostra o vai e vem das ratazanas por entre montanhas de lixo no Largo Ferruccio Mengaroni. Há imagens de lixo que sobe à altura de um adulto no bairro Tor Bella Monaca.

 

É o que resulta do que chamam de “Mafia Capital”, redes da máfia tradicional que, infiltradas nas engrenagens do poder municipal, designadamente o serviço de recolha de lixo, usando o sistema de corrupções instalado, com a cumplicidade de gente de todos os partidos, tiram proveito de tudo aquilo onde metem a mão.

 

É assim, com a promessa de limpar a cidade do lixo e das máfias, que Virginia Raggi, uma advogada com 37 anos e escassa história política se tornou uma loba à conquista de Roma. Ela tinha aparecido na internet a promover campanhas pela Educação e pelo Ambiente.  Era elogiada por iniciativas de voluntariado. O Cinco Estrelas (M5E), movimento político que se define “antipolítica”, liderado pelo comediante Beppe Grillo, escolheu-a para liderar a candidatura à presidência da câmara de Roma. A imagem dela é sedutora e o discurso surgiu poderoso contra as desgastadas castas políticas italianas. Virginia Raggi avançou sobre Roma e conquistou-a nas eleições de 19 de junho: arrasou, foi eleita com 67,2% dos votos. Tornou-se a primeira mulher a governar em Roma e gerou enorme ilusão com a utopia de uma Roma finalmente, décadas depois, governada de modo imaculado com ideias e projetos, fantasia e paixão, visão e eficiência com, claro está, mãos limpas.

 

Ainda nem passaram três meses e Virginia Raggi é uma presidente à beira de um ataque de nervos. “Onestá, onestá!” e “Transparenza!” tinham sido os dois gritos mais fortes da campanha Raggi, mas tudo parece em colapso. Ela escolheu para dirigir setores fundamentais para a regeneração da cidade gente nova e com etiqueta de alto nível, inovadora e competente. Parecia ter bom programa e boa equipa. Mas, ao fim de 70 dias, a equipa Raggi está à deriva.

 

A crise eclodiu na madrugada de 1 de setembro, com o anúncio da demissão da chefe de gabinete, Carla Rainieri, uma magistrada que tinha sido escolhida por, com os seus critérios éticos e sociais, ser considerada uma muralha implacável frente às infiltrações mafiosas na engrenagem municipal de Roma. Demitiu-se por não estar disposta a aturar as intrigas de gente do M5E por ela ter um salário de uns 10 mil euros por mês. A demissão de Rainieri precipitou a queda, como peças de um dominó, de outras quatro figuras de topo entre as escolhidas por Raggi. Beppe Grillo, líder do M5E meteu-se na polémica para dizer que “a Virginia (Raggi) às vezes parece-me louca”. Percebeu-se que as heterogéneas fações do M5E não queriam deixar Raggi com mãos livres. Começou a comentar-se que os novos políticos afinal são iguais aos outros, ou ainda pior, por cometerem erros de inexperiência.

 

Tudo a precipitar-se: quase ao mesmo tempo é revelado que Raggi sabia que dois dos seus principais escolhidos estavam a ser investigados por ligações com personagens mafiosas, mas encobriu-os. O M5E saltou a defendê-la mas ficou exposto à acusação de dupla moral: exige a demissão dos adversários sob suspeita, condescende com os seus. O cartaz após a vitória eleitoral em junho, dominado pelo rosto de Raggi, enquadrado pela proclamação “Ora cambia tutto, ora tocca a noi” perdeu sentido porque afinal eles não escapam às mesmas derrapagens. A atmosfera ficou penosa para Raggi. Muitos que tinham ficado enamorados pela imagem que ela tinha passado não escondem a desilusão. Mas a maioria ainda parece querer dar à “loba de Roma” uma oportunidade para corrigir os erros e tentar voltar a criar ilusão.

 

O M5E que aspirava usar a governação municipal em Roma e Turim para mostrar que é capaz de tomar o governo do país sai desta crise mais debilitado do que Raggi. Cai nos erros, nas superficialidades, nos amiguismos, nas omissões e nas mentiras tal como os outros que tanto critica no teatro político. O movimento que se proclamava cristalino e que tinha alimentado a promessa de mudar o tempo e o modo da comunicação política com o povo a decidir na internet, afinal, quando ficou acossado mostrou-se burocrático, entrou em guerras internas e passou a esconder os debates. Não acrescenta honestidade e qualidade ao sistema político.

 

Os novos movimentos e partidos surgidos com as ondas de indignação populista e contra o sistema tradicional confrontam-se agora com a deceção. Em Itália, o M5E tem rombos no casco. Em Espanha o Podemos e o Ciudadanos, agarrados a intransigências e incapazes de negociar acordos viáveis, estão em contínuo retrocesso nas intenções de voto.

 

Fica o risco de sucessivas desilusões levar a mais abstenção.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA

 

O momentâneo desfalecimento de Hillary Clinton diante das câmaras no domingo, 11 de setembro, colocou a saúde da candidata como tema da semana na campanha americana. The Huffington Post insurge-se contra o tratamento do caso pelos media. A pergunta é legítima: este caso pode mudar a dinâmica da campanha e, eventualmente, a história do mundo? Só um acontecimento fora do previsto pode levar a uma extraordinária reviravolta e travar a eleição de Hillary como Madam President. Os últimos dias, com gaffe e desmaio, correram mal a Hillary mas os estudos eleitorais garantem-lhe pelo menos 238 grandes eleitores (são eles quem decide), frente apenas 117 para Trump. Bastam mais 32 grandes eleitores para Hillary ficar presidente. Num cenário normal recolhe bastante mais.

 

 

A Hungria com a intolerância e a xenofobia de Orban é um problema na Europa. Ele é o primeiro-ministro que fala no regresso à pena de morte e que restringe a liberdade de imprensa. É uma maciça violação de valores europeus que leva o ministro luxemburguês dos estrangeiros a pôr em discussão o afastamento da Hungria da União Europeia. Como deve ser.

  

 

O Congresso brasileiro derruba o homem que mais se empenhou no impeachment de Dilma. O capítulo final da queda política de Eduardo Cunha é o tema para a primeira página escolhida hoje no SAPO JORNAIS.

 

 

Renoir para quem viajar a Madrid ou Barcelona.

 

 

Os media portugueses costumam fazer bom acompanhamento dos festivais europeus de cinema, de Berlim a Veneza, passando por Cannes e Locarno. Vale não perder de vista o que passa pelo excelente TIFF em Toronto.

publicado às 10:02

Sim, e o contrário também

Por: Pedro Rolo Duarte

Ou muito me engano, ou Álvaro Cunhal deu algumas voltas na tumba no fim‑de‑semana passado. Coerente, firme, implacável, teimoso, julgo acertar se disser que não lhe passaria pela cabeça engolir a “geringonça”, obrigando-o - como obrigou Jerónimo de Sousa - a, num único discurso, dizer que sim e que não, isto e o seu contrário, estamos mas não estamos.

 

 

Cito: “As opções do PS e a sua assumida atitude de não romper com os constrangimentos externos são um grave bloqueio à resposta aos problemas do país. O futuro de Portugal exige a ruptura com as imposições e chantagens que visam perpetuar a submissão, a exploração, o endividamento e o empobrecimento”.

 

 

Mas, e ao contrário, nem por isso o PCP deixará de viabilizar um Orçamento para 2017, assim ele mantenha o “compromisso de reverter direitos e rendimentos”, garantindo que vai “inverter o curso para o desastre económico e social que vinha sendo imposto”.

 

 

Ou seja, desde que os mínimos olímpicos se mantenham, o PCP engole o sapo (maior do que o das famosas presidenciais com Mário Soares…).

 

 

De passagem, Jerónimo de Sousa insiste na tecla da saída do euro como parte da solução dos problemas nacionais, quer cunhar a moeda portuguesa, e sublinha a necessidade da nossa autonomia económica, financeira, cambial e fiscal, numa claríssima demarcação da União Europeia e de tudo o que o PS (…e o PSD, e até o CDS) manifestam como essencial e fundador.

 

 

Se eu fosse militante do partido e estivesse naquela tarde escaldante de domingo a ouvi-lo, acharia que estava a sofrer os efeitos de uma insolação. É possível estar contra a essência, a raiz, a “causa das coisas” de um governo e de uma política, e ao mesmo tempo votar e caucionar esse mesmo governo em nome de magras recuperações de direitos para os trabalhadores, em geral, e a função pública, em particular? Como se concilia o voto num orçamento com a firme defesa do abandono da moeda única? Como se fala da “política de direita e de submissão à União Europeia e ao Euro”, ao mesmo tempo que se aceita, na Assembleia da Republica, as traves mestras que a suportam?

 

 

A lista de perguntas é tão grande como o discurso de Jerónimo de Sousa. Mas, ao ouvir o líder do PCP, interroguei-me sobre o que será, política e eticamente, mais sério e correcto: deixar um país à deriva, como está a suceder em Espanha, porque não se cede ao que se julga essencial; ou ceder no essencial, mesmo que para isso o discurso contradiga a acção?

 

 

Não tenho uma resposta taxativa (há muito que me deixei disso…). Mas uma coisa sei: Jerónimo de Sousa e o PCP estão claramente a viajar na maionese. Neste caso, numa maionese talhada pelas contradições entre o que defendem e o que depois fazem. Estarão a ficar iguais aos “outros”?

 

 

Rentrée em três actos…

 

 

Enquanto por cá os canais de televisão apontam as suas armas pesadas para o horário nobre - novelas, séries, reality-shows… -, nos Estados Unidos da América as séries continuam no trono do rei, destronando filmes e concursos e programas de informação. Neste link, a lista da revista Time para as 12 séries imperdíveis da estação. Entre o cabo, os canais clássicos e o Netflix, mais tarde ou menos cá chegarão…

 

 

É seguramente a transferência do ano na imprensa portuguesa: Vasco Pulido Valente deixa o Público - e por esta via, o papel impresso - e entra no mundo digital, já em Outubro, com duas crónicas semanais (sábado e domingo) no jornal Observador. Antecipando a transferência, deu uma longa entrevista a Vítor Matos que, embora publicada no jornal em Junho, vale a pena reler agora, quando o seu regresso se aproxima…

 

 

Não houve jornal que não lhe dedicasse umas linhas, nem rede social onde não fosse referida a toda a hora: a síndrome pós-férias, quase classificada como mais uma doença na já longa lista das estranhas patologias psicológicas, mereceu do nosso vizinho digital El Español uma matéria que vale a pena ler. Por um lado desmascara uma invenção que nos dava imenso jeito, por outro explica o fenómeno pelo lado cientifico.

publicado às 11:49

Alguém consegue fazer a chave espanhola?

Por: Sena Santos

Na Utopia, escrita há 500 anos, Thomas More descreve a organização política e social de uma ilha composta por 54 cidades onde funciona a igualdade entre todos. A ilha está dotada de um governo central cuja principal missão é a de repartir com equidade os recursos. Na Utopia não há pobres nem ricos, vive-se em igualdade material. O modelo concebido por Thomas More – certamente como contra-modelo de outra ilha, a Inglaterra do século XVI -  tem o pecado da uniformização, da submissão do indivíduo ao bem comum e, a par de ampla liberdade religiosa, muitas restrições nos costumes.

 

 

Thomas More ganhou lugar em dois panteões, em Moscovo e no Vaticano: Lenine proclamou-o percursor do comunismo e mandou dedicar-lhe um obelisco, ao lado dos de Marx e Engels; a Igreja Católica declarou-o em 1935 santo mártir (tinha sido esquartejado por se recusar a reconhecer Henrique VIII como chefe da igreja de Inglaterra) e, no ano 2000, João Paulo II designou-o patrono dos estadistas e políticos.

 

 

O livro, requisitório contra as injustiças sociais e políticas da Inglaterra de então, não é um tratado de filosofia política, mas a ideia de utopia passou à posteridade como ideia de ideal. Aparece nos dicionários como um sonho ou uma quimera.

 

 

Muita gente na Espanha dos últimos anos acreditou na utopia de uma sociedade melhor. Foi evidente o renovado interesse de novas gerações pela participação política e isso traduziu-se na criação de novos partidos resultantes dessas movimentações profundas na sociedade. Muitos eleitores, à esquerda como à direita ou ao centro, fartos de um sistema desgastado, acreditaram ser possível que a condução do país fosse tarefa para os melhores, gente capaz de visão com amplos horizontes, generosidade, tenacidade e valentia, como requer a tarefa de governar um país, neste caso a Espanha.

 

 

O que há para tratar em Espanha tem muito a ver com o que também importa em Portugal. A economia. A educação. O financiamento da saúde e das pensões. A salvaguarda de um Estado de bem-estar sustentável. O apoio à criação de emprego e à promoção do conhecimento e da cultura. Tanto mais. No caso espanhol há o imbróglio das autonomias, com especial tensão no caso da Catalunha, onde a escalada independentista está a ter como resposta, não a procura de harmonias mas o agravamento do conflito entre Madrid e Barcelona.

 

 

Os espanhóis votaram e decidiram pôr fim à ordem anterior, assente em dois partidos, o PSOE e o PP. Escolheram um parlamento mais plural, fragmentado, sem a hegemonia dos dois grandes partidos.  Naturalmente, esperavam que os políticos conseguissem fazer acordos e pactos, concretizando em ação a vontade dos eleitores. Os eleitores espanhóis votaram em 20 de dezembro, mas os políticos não souberam ter audácia para acordar um governo. Foi preciso voltar a votos em 26 de junho. Mas o impasse continuou, são políticos mas não conseguem entender-se, estão incapazes de imaginação para um compromisso plural no labirinto parlamentar.

 

 

Um dos novos partidos, o Ciudadanos, ainda deu uma mão ao PP de Rajoy e, acrescentado o voto de uma deputada das Canárias, chegaram assim a somar 170 lugares no parlamento de Espanha. Mas a maioria é aos 176, por isso fracassaram. Agora o Ciudadanos até já rasgou o acordo que celebrou com o PP. É facto que há uma maioria absoluta nas Cortes de Espanha, mas é de recusa: está formada pelo PSOE, pelo Podemos e por mais seis partidos nacionalistas: juntam 180 votos, ultrapassam portanto a maioria absoluta, mas só estão unidos para a recusa de um governo PP, não para formar uma plataforma de governo, porque o PSOE não se entende nem com o Podemos nem com os independentistas catalães, e o Ciudadanos ainda menos.

 

 

Assim, com a Espanha política encalhada há já nove meses, num fracasso que ninguém assume – cada um atira a responsabilidade para o outro - já está no ar a hipótese de novas eleições, as terceiras, um ano depois das primeiras, outra vez em cima do natal. É como se estivessem a esgotar os eleitores: votam, em repetições eleitorais, até ficar conseguido o arranjo que interessa.

 

 

Como alternativa a essa hipótese de terceiras eleições está em curso um jogo de pressões que passa pelas eleições autonómicas, marcadas para 25 de setembro, no País Basco e na Galiza.

 

 

No País Basco, o Partido Nacionalista Basco (PNV), com 27 dos 75 deputados autonómicos, governa através de acordos com o PSOE (16 deputados). Se o PSOE retroceder perante o provável crescimento da esquerda mais à esquerda (Unidos Podemos e Bildu), o PNV pode vir a precisar do PP para governar. Seria o bingo para Rajoy: dá apoio ao PNV no País Basco e exige em troca o voto dos 5 deputados PNV em Madrid.

 

 

O voto na Galiza também conta para o jogo nacional. A maioria absoluta no parlamento de Santiago de Compostela é atingida com 38 deputados e o PP governa com 41. A confirmação ou perda da maioria absoluta em 25 de setembro concorre para a legitimidade de Rajoy. O presidente do governo há nove meses em funções espera que esta conjunção permita fazer quebrar a intransigência do socialista Sanchez.

 

 

Rajoy parece de braços cruzados à espera do que possa vir a acontecer. Seja como for, sem a coragem de um amplo acordo político, a governabilidade de Espanha fica muito precária, em incertezas constantes.

 

 

Dos políticos espera-se que saibam mover-se e encontrar caminhos para transformar a realidade para melhor. Quando passam nove meses e não são capazes de avançar e explorar por entre a realidade e a utopia, fica-se a olhar para eles com desconfiança. O país que tinha alimentado a ilusão entra na desilusão por estarem a ser barradas as saídas e ninguém ousa fazer uma chave.

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

O land de Mecklenburg lá no Leste da Alemanha parece um território insignificante. Sucede que é por lá que está a terra natal da chanceler Merkel, e que foi lá que, pela primeira vez na história da Alemanha unificada, um partido populista e xenófobo, o AfD, suplantou a poderosa democracia-cristã da CDU. As frustrações e ressentimentos estão a levar a este crescendo de forças populistas. Os eleitores castigam Merkel por há um ano ela ter tomado a corajosa decisão de abrir portas aos refugiados. Merkel pode perder eleições mas colocou-se como estadista à altura da história.

 

 

Que futuro pode ter a Esquerda? Oportuna reflexão aberta pelo Guardian.

 

 

Estamos habituados a ouvir falar em “Estado de direito”. O presidente das Filipinas, Duterte, declarou o país “Estado de não direito”. A inquietação com este vale-tudo que sacrifica as liberdades fundamentais generaliza-se. Leia-se o alerta no NYT e a denúncia de um fundador da Human Rights Watch.

 

 

 As capas de duas revistas escolhidas no Sapo Jornais: a Veja vê a morte do PT, o L’Espresso confia na boa reconstrução após o terramoto no centro de Itália – mas reclama que não deixem a máfia meter mãos na obra.

publicado às 09:44

Demagogia é…

Por: Pedro Rolo Duarte

Quando era adolescente, havia nos jornais (e nos pacotes de açúcar?) uns casais de bonecos com um ar vagamente pateta que acompanhavam frases - igualmente tolas, na maioria dos casos - sob o genérico “Amor é…”.

 

Nas últimas semanas lembrei-me deste casalinho, mas por motivos um pouco mais sérios. Por exemplo, a polémica a respeito das novas taxas de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis), que levou, no limite, a líder centrista Assunção Cristas a afirmar, no Facebook, que “O sol já paga imposto! Parece inacreditável, mas é mesmo verdade: as casas com boas vistas ou exposição solar, independente da localização ou do rendimento do proprietário, passam a ter o IMI agravado”. A ignorância da deputada já vinha a queimar mato nas redes sociais, com todo o estilo de gozos, críticas, e um coro indignado e revoltado.

 

Pois bem…

 

Demagogia é… vir dizer que “O Sol Já paga imposto”, quando a lei que agora se discute é de 2007 (por acaso também de um governo socialista, o de José Sócrates…), tem 13 itens sobre “qualidade e conforto”, e a única novidade que o actual governo introduziu foi reajustar (bem ou mal, é outra discussão…) as taxas, aumentando nuns casos, diminuindo noutros…

 

Demagogia é… virem os proprietários que vendem e arrendam casas por valores que variam conforme a exposição solar ou a vista, a varanda ou a localização, indignarem-se agora com um imposto que avalia os imóveis da mesma forma que eles próprios os avaliam. Para os donos, o preço pode subir porque os seus apartamentos têm vista - para serem taxados, não gostam da ideia. Dois pesos, duas medidas.

 

Mas há mais: é que nestas semanas também se tem falado muito das viagens a França, por ocasião do Euro 2016, que a GALP pagou a alguns membros do Governo, e que pôs meio mundo a exigir a demissão dos “beneficiados”. Sem dúvidas o afirmo: no lugar do Secretário de Estado Rocha Andrade, que é politicamente responsável por um conflito de milhões que a petrolífera deverá ao fisco, nem hesitava na demissão. Mas já sabemos que na política nem todos seguem o mesmo código de conduta ético e moral…

 

De qualquer forma…

 

Demagogia é… Fazer deste caso uma bandeira da moral e dos bons costumes, quando quase todos os jornalistas, directores de jornais, administradores, editores, em lugares relacionados com as empresas que têm orçamentos para estes convites, ou que são anunciantes dos meios, passam a vida nos camarotes dos estádios de futebol em jogos cujos bilhetes não são “low cost”, em viagens pagas a todos os cantos do mundo, nas zonas VIP dos Festivais de Verão, em almoços e “eventos” recheados com presentes de toda a espécie.

 

Demagogia é… Os mesmos políticos que pedem agora cabeças a rolar no Governo, terem, no passado, quando governavam, aceitado o mesmo tipo de convites, viajado a expensas de empresas e grupos de empresários. Muitos deles, agora em companhias privadas (com quem antes se relacionaram enquanto governantes), continuam a sentar-se nos camarotes reservados.

 

E sem querer dramatizar o que é, em si, um drama maior, demagogia também é associar a calamidade dos incêndios a um Governo ou a um ministro. Ninguém, no seu perfeito juízo, quer ver Portugal a arder. O tema não devia servir de arma de arremesso político. Além de demagógico, é infeliz. O momento é de unir, não de dividir.

 

A carinha apatetada dos bonecos do “Amor é…” é a mesma que qualquer um de nós pode fazer perante estes “escândalos”, e este drama maior. Ainda que, como no amor, por detrás destas aparentes patetices, estejam assuntos muito sérios que ajudam a explicar o verdadeiro estado da Nação.

 

Talvez possa rematar assim: “Demagogia é… amar o próximo quando é conveniente. E dizer que nunca se amou quando a conveniência se torna muito inconveniente”.

 

 

Para ouvir esta semana…

 

E talvez ler também: aqui pode saber tudo o que há para saber sobre a morte, aos 81 anos, de Marianne Ihlen, a mulher que inspirou canções de Leonard Choen como a clássica "So Long, Marianne”. As canções, os links, os testemunhos, um excelente trabalho de rádio com extensão digital…

 

A “Mojo” é talvez a mais interessante revista sobre música pop/rock que se publica na Europa - por ser simultaneamente actual sem esquecer o passado. Isto, se ainda considerarmos que o Reino Unido pertence à Europa…

 

“Brexists” à parte, a “Mojo” está viva e recomenda-se, no meio do pandemónio de falências e insolvências que assola o mundo dos media. Neste mês de Agosto, está à venda a sexta edição de uma das suas marcas laterais: a “Mojo’60", uma revista trimestral sobre a música dos anos 60. A capa desta edição é dedicada a Jimi Hendrix, do Verão de 1966 até ao final de 1967. Uma revista nostálgica, mas cheia de boa música…

 

As eleições nos EUA também chegam à música - a revista Rolling Stone revela esta semana um video com uma versão de "Born in the USA”, de Bruce Springsteen, interpretada pelos Arcade Fire em Ontário, no WayHome Festival. Ainda que seja no Canadá, a revista interpreta o facto como um sinal de oposição à eleição de Donald Trump. Seja ou não, vale a pena ouvir…

 

 

publicado às 10:10

Match Point

Por: Francisco Sena Santos

 

O protagonista de Match Point, numa frase definidora deste filme (Woody Allen, 2005), enquadra o efeito do acaso no instante decisivo: “Numa partida de ténis há momentos em que a bola roça a borda da rede e numa fração de segundo tanto pode seguir para a frente como cair para trás; com um pouco de sorte, segue em frente e ganhas, sem essa ponta de sorte não passa e perdes”. Analisando resultados eleitorais e sondagens pelo mundo, fica-se com a sensação de que estamos nessa fração de segundo de indefinição.

 

Há muita curiosidade sobre como será o que vem a seguir neste tempo em que por todo o lado prospera o voto anti-establishment da opinião pública que, exasperada com anos de más políticas, arrisca dar força a entidades que fazem do protesto a sua arma mais forte. Reino Unido, Itália, Espanha e Estados Unidos são arenas para alguns dos próximos confrontos que podem redimensionar a paisagem política.

 

Nos Estados Unidos, Hillary Clinton vai conquistar hoje na Califórnia os votos que lhe garantem a investidura como candidata presidencial do Partido Democrata. Mas o rival republicano, Donald Trump nunca pareceu tão capaz de conseguir chegar ao match point de novembro e ter a sorte do lado dele. Há quem compare Trump com Reagan: quando anunciaram a candidatura, as hipóteses de êxito pareciam nulas, levavam a sorrir. Depois, com algum sobressalto, disse-se que era impensável vê-los na presidência dos EUA. A seguir, instalou-se a possibilidade forte. E Reagan até foi um presidente que entrou para a história: apertou a mão a Gorbachev em Moscovo e, depois de ameaçar disparar os mísseis, presidiu ao fim da “Guerra Fria”. Mas a semelhança entre ambos, para além da filiação no Partido Republicano, parece-me ser a origem nos palcos do espetáculo, e nada mais. No essencial, são diferentes: Reagan sorria sempre e falava com otimismo da América como farol da humanidade, usava como lema “a cidade que ilumina o mundo”; Trump escolhe o desdém, despreza imigrantes e até quer um muro para barrar acessos à fortaleza América. Mesmo assim, segundo as sondagens, se o match point fosse jogado hoje, Trump, o demagogo, até poderia ser o vencedor. Há mais de 50 milhões de pessoas dispostas a entregar-lhe o comando dos Estados Unidos. 

 

Em Itália, o primeiro round das eleições municipais mostrou uma tão grande irritação dos eleitores com os partidos tradicionais que o castigo eleitoral leva um movimento antipolítica, o 5 Estrelas (M5S), fundado pelo comediante Beppe Grillo, a aparecer favorito para, no dia 19, lhes conquistar a liderança em cidades como Roma ou Turim (o caderno eleitoral do M5S privilegia a atitude à competência). No caso de Roma, a campanha M5E contra a corrupção político-administrativa do município mal-governado, leva a que a sua jovem candidata Virginia Raggi tenha prometida uma vitória de cinco estrelas. Em outras cidades, como Milão, Turim ou Bolonha tudo está em aberto para o match point daqui a duas semanas. Sendo que o partido de Berlusconi está estilhaçado e o do primeiro-ministro Renzi muito amachucado.

 

Em Espanha, o match point joga-se uma semana depois, no dia 26, com a repetição das eleições gerais, após seis meses de impasse e governo interino. A campanha já está a ser áspera e renhida. O eleitorado que nas últimas quatro décadas votou bipolarizado entre PP e PSOE está agora a rasgar com essa tradição: em todas as sondagens nenhum partido chega aos 30%, o PP ronda uns insuficientes 28% e o Podemos, partido saído do protesto nas ruas em 2011, com inflexibilidade esquerdista, surge a seguir a apenas três pontos percentuais. O histórico PSOE aparece asfixiado na terceira posição com apenas 20%. Tudo pode acontecer, incluindo mais impasse para ser conseguida uma maioria nesta Espanha com 20% de desemprego.

 

Pelo meio, entre o voto italiano e o espanhol, na quinta-feira dessa crucial semana política, há o referendo britânico, reconhecido como transcendente. Ninguém sabe o que vai acontecer, se vai dar Brexit (o Reino Unido a sair da União Europeia) ou Bremain (a permanecer). As sondagens mostram os dois campos ombro a ombro, agora com um pulso de vantagem dos que querem sair. Vale ter em conta um estudo de opinião publicado pelo Financial Times: as pessoas com menos instrução e menos rendimentos são maioritariamente pelo voto Brexit; os mais jovens, os que têm mais estudos e melhores rendimentos são pela permanência. Outra diferença é notória entre votantes citadinos (maioritariamente pela continuidade na Europa) e rurais (contra). Estudos feitos nos EUA revelam tendências que colocam os grupos que votam Trump com estratificação que, apesar de complexa, se assemelha à dos que optam pelo Brexit no Reino Unido. Será legítimo concluir que os menos instruídos e os mais apertados em rendimentos são mais propensos ao discurso dito populista? Parece. O que está evidente é que temos pela frente ao dobrar da esquina várias situações de match point político. Com risco de minas por despoletar no terreno do jogo. E com o problema de os eleitores votarem mais por motivação negativa que por entusiasmo ou sequer adesão. Falta magia nestes jogos.

 

VALE VER OU OUVIR:

 

Como já estão a ser (energéticos, animados) os escritórios do futuro.

 

Viagem fotográfica ao século XIX.

 

Um olhar da vizinhança sobre nove outros museus em Lisboa. E o Jardim das Delícias no verão de Madrid.

 

Como lidamos com a informação que nos chega?

 

Duas primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS: esta e esta.

publicado às 08:20

Assis tem coragem. E tem razão?

Por: António Costa

 

O congresso do PS – ou melhor, das Esquerdas que suportam o governo socialista – já estava rendido a António Costa antes mesmo de começar. Pudera, seis meses depois, a geringonça aguenta-se, o poder está nas mãos dos socialistas, o Estado também, e Costa revele-se o melhor, numa equipa em que é o primeiro-ministro e mais 16 ministros. Francisco Assis assumiu a rutura, sem dissidência, notaram a sua coragem, sim, o menos importante.

 

No congresso de Costa, não rezará a história, nem no primeiro, nem no último discurso do secretário-geral, nem sequer na proposta de revisão da organização do Estado, da descentralização. Ficou a estratégia para unir a Esquerda contra as sanções da União Europeia e para comprometer a Direita, que, nesta matéria, corre o risco de sair sempre mal na fotografia. E a comparação quase mórbida entre a morte de refugiados e os 0,2 décimas de défice. De resto, ficou Assis, e esse sim será recordado quando a realidade económica e financeira do país exigir uma resposta que o governo não poderá dar sem por em causa a sua própria existência.

 

António Costa, aliás, não falou de economia, foi uma espécie de fantasma que pairou sobre o congresso do PS. Simplesmente, porque os números não estão para festas. Preferiu centrar o discurso económico nas críticas à Europa por causa das sanções, sem perceber que é exatamente por causa do modelo de governo que arranjou. Portugal falhou o défice de 2015, acima de tudo o défice estrutural, que derrapou mais de seis décimas, responsabilidade do anterior Governo. Costa teria de apresentar um plano credível, a continuação de uma estratégia de mudanças e não de reversões. Prefere o “o vírus do radicalismo ideológico” anti-europeu, como diz Assis. No fundo, o estilo em relação a Tsipras é diferente, a forma não. E se a economia mantiver a tendência do primeiro trimestre, negativa, não vamos ter apenas um Retificativo, vamos ter a elevação a voz, nós contra eles. É fácil, é popular.

 

Francisco Assis olha para o passado, para o que o PS de Costa cedeu para montar a geringonça, e para o futuro, que governo é que o país precisa.

 

É preciso dizer que os primeiros seis meses de governação não mostraram assim tantas cedências deste PS ao BE e PCP, porque falam a mesma linguagem económica, ou quase. Quem controla quem? Mesmo na Europa, quando Costa diz-se europeísta, garante que o défice vai ficar abaixo dos 3% e, ao mesmo tempo, critica a austeridade europeia. Costa está confortável ao lado de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, e isso transparece.

 

Já sobre o futuro, a história é outra. Um governo com esta composição parlamentar, e a precisar dela para viver, não pode fazer o que o país precisa. Costa é pragmático, respira política, e apesar das suas convicções, fará as cedências que forem necessárias para segurar o governo. O ponto é outro, Portugal parou, e o investimento reflete isso mesmo. Quem pode investir, não acredita, lê os sinais, lê as medidas, e foge. A culpa, esta, não é da Europa.

 

Assis é um homem de coragem, sim, mais importante ainda, é um homem sozinho com (a nossa) razão.

 

As escolhas

 

Os suíços foram a votos, não para escolher um governo ou um presidente, mas para votarem em referendo. O quê? A atribuição de um Rendimento Básico Incondicional, uma espécie de rendimento mínimo, e a redução dos salários dos gestores públicos ao nível dos salários dos ministros. Em Portugal, se tal fosse referendado, a maioria seguramente apoiaria tais leis. Na Suíça, foram os dois chumbados. E com uma votação esmagadora. É uma lição. No primeiro caso, por mais bondosa que seja a intenção, os rendimentos incondicionais dão os incentivos errados à sociedade e os mais desfavorecidos têm de ser apoiados, não podem ficar para trás, mas de outra forma, a começar no regresso ao mercado de trabalho. No segundo, os gestores públicos têm de ser remunerados em linha com as práticas do privado, sob pena de sobrarem os piores a gerir os dinheiros públicos.  

 

A CGD é um dos ‘berbicachos’ do setor financeiro em Portugal, precisa de muito dinheiro, mais de quatro mil milhões de euros, e a Comissão Europeia exige regras para esse investimento público, comparáveis às que são impostas aos privados. Como não podia deixar de ser, apesar da retórica política que ocupou o espaço mediático. Em entrevista à TSF, a comissária da concorrência garante que essa decisão europeia não será política. Vamos lá ver então quanto é que isso (nos) vai custar.

 

Tenham uma boa semana

publicado às 09:25

Uma oportunidade única

Por: António Costa

 

A Caixa Geral de Depósitos (CGD) vai receber mais um reforço de capital, a conta já vai em quatro mil milhões e não está ainda fechada, para tapar buracos que continuam por resolver, para dar a almofada necessária a um novo presidente, António Domingues, e a uma nova gestão. Serão quatro mil milhões a juntar a 3,6 mil milhões desde 2008, os contribuintes já estão anestesiados e a Esquerda do PS, tão crítica do dinheiro para os bancos à frente do dinheiro para as pessoas, vem agora apoiar a medida, para garantir ‘o que é nosso’. Só falta saber para quê.

 

A gestão do sistema financeiro durante o mandato de Passos Coelho foi um desastre. Não há outra forma de o dizer. Herdou o caos, sim, com o BES, mas foi incapaz de gerir os problemas que estavam diretamente dependentes de uma sua decisão, como acionista. No caso o Banif e a CGD. E por razões puramente políticas, leia-se, partidárias, nem sequer usou os 12 mil milhões de linha de recapitalização da banca prevista no acordo da troika. Passos privilegiou a aplicação do programa da troika no Estado, e deitou para debaixo do tapete o que poderia por em causa a saída limpa. O que se passa agora com a CGD, o esforço que vai ser pedido aos contribuintes, não pode ser assacado à geringonça, provavelmente explica-se agora porque é que o antigo primeiro-ministro lançou dúvidas e mostrou preocupação com a incapacidade da CGD de devolver 900 milhões de euros de empréstimos do próprio Estado. Já saberia mais do que nos dizia.

 

Os últimos anos foram penosos, a arrastar problemas. A CGD não foi um caso de polícia, foi um caso de política, dos maus, há mais de 20 anos que é assim. A incerteza sobre o futuro do sistema financeiro privado, a venda do Novo Banco e a OPA do Caixabank sobre o BPI são oportunidades para a CGD, se se souber o que deve ser o banco público. Tal como está, serve para muito pouco, não se diferencia, não acrescenta verdadeiro valor. A escolha de António Domingues foi um sinal positivo, cria a expetativa de que, desta vez, a política ficou à porta. Será?

 

A CGD tem um oportunidade única para se afirmar, por fragilidade dos outros, porque tem uma nova equipa de gestão, porque esta equipa poderá ter os recursos financeiros – com autorização de Bruxelas, desde que não se verifique uma ajuda de Estado – para limpar o balanço, melhorar os rácios e reestruturar a sua atividade.

 

Não, a CGD não pode fazer pelas empresas o que as empresas não fazem por si próprio, não pode suavizar os critérios de gestão de risco, não pode emprestar sem garantias, e sem avaliação económico-financeira dos projetos, não pode concentrar risco nos mesmos financiamentos. Porquê? Porque um banco não cai por causa de uma notícia, cai porque a gestão de risco não existiu.

 

No limite, se o Novo Banco vier a ser vendido a um grupo espanhol dos que já estão no mercado, o Millennium bcp ficará como único banco privado com autonomia de gestão portuguesa, e exposto a novas ofensivas. Sobrará a CGD, fraca como está ou forte como deve estar.

 

As escolhas

 

E porque estamos a falar de banca e de bancos, convém ler com atenção a entrevista de Peter Praet, do conselho executivo do BCE, hoje no Público. A mensagem é clara: o BCE quer bancos pan-europeus. Para quem tinha dúvidas sobre as intervenções do BCE na reconfiguração do sistema, aqui ficam desfeitas.

 

A Europa comunitária está em crise, sim, e a económica não será a mais grave, e mais difícil de resolver. Mais grave é a humanitária, a crise dos refugiados que já não está à porta da Europa, entrou sem pedir licença. Esta semana, a ONU promove a primeira cimeira humanitária, precisamente na Turquia, o país-tampão da Europa dos 28, que pode acompanhar aqui. Como é regra neste tipo de cimeiras, não vale a pena criar expetativas excessivas, a política é muitas vezes insensível, vale a pena aproveitar a oportunidade para chocar o mundo,e os cidadãos europeus em particular. Para não deixar banalizar as imagens da morte.

publicado às 10:09

Vamos pôr Portugal no sítio

Por: Rute Sousa Vasco

 

Um dos argumentos que sempre me tirou do sério naqueles tempos em discutíamos a troika e que Portugal não era a Grécia residia, precisamente, na certeza acintosa e moralista com que esta frase era dita. Portugal não era a Grécia, porque a Grécia estava (e está) cheia de gregos e os gregos são aquele povo que inventou subsídios para cabeleireiras e alojou nas suas ilhas a maior perfídia fiscal. E tudo isto sem o requinte de um Luxemburgo ou de outras criações da Europa que não são a Grécia.

 

A frase “Portugal não é a Grécia” encerrava todo um conjunto de convicções que alguns portugueses têm sobre o nosso imenso Portugal. E que vão além da convicção linear de que se os gregos pediram dinheiro emprestado e não fizeram bem as contas, só têm é que pagar o que devem. Qualquer outra derivada, nomeadamente sobre os respeitáveis políticos europeus que desenharam, em parceria com os desonestos políticos gregos, os extraordinários planos que garantiram à Grécia uma ruína social e económica, não interessava para nada. Este tipo de análise vem das mesmas cabeças bem pensantes, cordatas e sempre em linha com os poderes dominantes que durante anos também não viram qualquer sinal de alarme nos negócios do BES ou tão pouco na expansão galopante da Ongoing. Enquanto se ostenta o ceptro, tudo está bem – porque se vive bem nessa doce harmonia das certezas inabaláveis.

 

Mas o que interessa isso agora neste tempo novo em que falar de troika e da Grécia é tão 2012? Tudo isto vem de repente à memória na semana em que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) consegue “pôr o Sequeira no sítio”, em que taxistas declaram nova guerra à Uber e em que se assinalou o 42º aniversário do 25 de abril.

 

Começando pelo 25 de abril. É um facto que a data não passa bem na garganta de uma certa direita. É um facto que é celebrada em regime de monopólio por uma certa esquerda. Descontando os desagravos pessoais, que é impossível não existirem numa História ainda tão recente, a diferença em qualquer uma das alas chama-se cultura política e cívica. Não se obtém com o grau académico nem por pertencer a uma casta. Cultiva-se ouvindo os outros, criando o hábito de discutir ideias e, em virtude destas duas premissas, acaba-se por ser menos binário e mais efectivamente interessado no país. E o país precisa de ter mais destas pessoas e menos do grupo histriónico, que vive de certezas inabaláveis e que sabe sempre o que vai dizer na segunda-feira.

 

Passando para a batalha entre taxistas versus Uber (mais uma). O mérito – e o dilema – da discussão está no raio deste mundo virado do avesso em que todos vivemos e onde todos procuramos reencontrar o nosso lugar. Não é um problema de taxistas – é de taxistas, de fotógrafos, de hoteleiros, de designers, de jornalistas, como provavelmente um dia destes será de outras profissões que se têm mantido a salvo da grande onda que tudo abala. Aquilo que é um problema de taxistas é a forma como este grupo confronta Portugal com a sua aspiração e a sua realidade. Aspiramos a ser um povo de pessoas educadas, honestas, inovadoras e bem-sucedidas. Não toleramos pensar que possamos ser malcriados, desonestos, preconceituosos e sempre a contar os tostões. Não somos taxistas, como também não éramos gregos.

 

Mas, esperem lá, quem são (também) os taxistas? São reformados, são desempregados, são algumas pessoas sem outra qualificação que não seja conduzir um carro. Ganham pouco, arriscam bastante, têm muitas contrariedades e poucas expectativas. Soa-vos familiar a Portugal? Nasce daí uma raiva contra esse Portugal que não queremos ser. Um Portugal herdado, um Portugal com um passado mal resolvido e logo agora que somos modernos, estamos na crista da onda do turismo e do empreendedorismo. Somos livres, não voltaremos atrás – não era assim que trauteava a música da gaivota em pleno PREC?

 

E chegamos assim a Domingos Sequeira e à (brilhante) campanha do MNAA em parceria com o Público, a Fuel, a RTP e a Fundação Millennium BCP intitulada Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo. Uma campanha que angariou, através de um crowdfunding bem comunicado, 600 mil euros para que o museu possa adquirir o quadro A Adoração dos Magos e assim ter aquela que é tida como a obra-prima do pintor.

 

Não será injustiça dizer que a esmagadora maioria dos portugueses não fazia ideia de quem foi Domingos Sequeira e, por inerência, da importância da obra em causa. O que fez com esta iniciativa fosse interessante por várias razões. Por um lado, trata-se de uma obra do século XIX, o que já permite que se fale de património e de História, deixando a esquerda/direita orfã de uma das suas discussões favoritas (deve ou não o Estado apoiar a cultura). Por outro lado, mediante a inteligência do MNAA e dos seus parceiros, a comunicação foi de tal forma envolvente e cativante que conquistou pessoas fora da franja da elite cultural que naturalmente seria a base de apoio – ou seja, democratizou a arte que é a única forma, efectiva, de a tornar património de todos. Pode parecer um movimento óbvio – só que não é. E, muitas vezes, porque essa franja ou elite cultural quer preservar o seu status quo, tornando a arte uma espécie de santo cálice impossível de alcançar pela plebe.

 

No balanço final, de acordo com os dados comunicados, participaram 15 mil cidadãos e 172 instituições, entre as quais escolas, associações, fundações e algumas, mas não muitas, empresas. Entre as grandes instituições, destacou-se uma: a Fundação Aga Khan com uma contribuição de 200 mil euros.

 

Pessoas, juntas de freguesia, alunos de escolas. Se calhar um, dois taxistas. Este foi, em boa medida, o Portugal que se mobilizou para por o Sequeira no sítio. Pobre Sequeira, que passou uma vida à procura de reconhecimento e que encontrou, brevemente, com os liberais de 1820 algum do conforto que tantas vezes lhe escapara. Quase 200 anos depois, não é o liberalismo que o traz ao sítio, no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Esse liberalismo à americana ou inglesa em que quem mais ganha, devolve à sociedade, não está na mesma prateleira do liberalismo que conhecemos por cá.

 

Na realidade, quando se defendeu que Portugal não é a Grécia talvez se quisesse defender que Portugal não é Portugal. E isso até tem um lado bonito. É aquele lado em que não nos deixamos encaixar em generalizações, nos esquecemos de ser de esquerda ou de direita, taxista ou empreendedor Uber, e fazemos simplesmente o que achamos estar certo.

 

Isto do 25 de abril já não ser a justa medida para todas as clivagens sociais é muito aborrecido. A vida era bem mais fácil antes.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões

 

Ricky Gervais em versão Netflix e com uma história mesmo à sua medida (não fosse ele autor e realizador além de protagonista). Fica uma frase para abrir o apetite: "As pessoas preferem ser famosas por serem idiotas do que não serem conhecidas de todo".

 

Os números do Facebook estão para o mercado dos media como as eleições americanas para o mundo: são bem mais que apenas os resultados de uma empresa. E o facto é que continuam a mostrar um negócio muito saudável. No primeiro trimestre de 2016, as receitas subiram 52%, para 5382 milhões de dólares.

publicado às 09:39

Só à estalada: uma história do tabefe em Portugal

Por: Márcio Alves Candoso

 

 

O sucedâneo do 'Big Brother' ou da 'Casa dos Segredos', que está neste momento em cartaz televisivo, chama-se 'Quinta'. Já foi 'Quinta das Celebridades', e perdeu o sobrenome provavelmente pela falta de notoriedade pública dos actuais residentes. Mas o enredo continua a agarrar os telespectadores, se não já ao nível das audiências de antanho, pelo menos com uma capacidade de sobrevivência notável. Os 'happenings' sucedem-se a um ritmo ora produzido, ora espontâneo. Um dos mais impressivos dos tempos recentes foram as estaladas que o concorrente Pedro Capitão deu ao seu companheiro/antagonista Pedro Barros, numa altercação animada no passado mês de Janeiro.

 

O combate entre o efeminado agressor alentejano e o espadaúdo modelo - que o provocou vezes sem conta, a última das quais (a gota que terá que terá feito transbordar o copo) foi atirar-lhe água – saldou-se por uns tabefes na cara e no peito deste último. Pedro Barros, o provocador, foi, aliás, acusado de estar com os copos. Vai na volta, o Pedro Capitão dos trejeitos e voz afunilada deu-lhe uns safanões de menina que foram considerados bofetadas. O resto da história é que foi expulso – a agressão física é oficialmente proibida lá na 'Quinta' –, sendo reintegrado mais tarde, porque o sujeito tem imensa graça e é popular que se farta. O agredido é que não sobreviveu muito, e foi dos primeiros a fazer as malas do programa apresentado por Teresa Guilherme.

 

A história da estalada em Portugal tem passado por diversas vicissitudes, e entrou mesmo na cultura popular. A cantora Ruth Marlene teve, há anos, um consumado êxito com a canção 'Só à Estalada', cujos versos referem que, 'Quando os rapazes vêm com ela fisgada / Daqui não levam nada / E quando algum quer fazer logo marmelada / Então só à estalada/ Então só à estalada'. E, noutra parte do poema, pode ouvir-se que: 'Estou prevenida pois já sei como é que é / Por isso mesmo fui aprender karaté'. Uma defesa da honra e da integridade física que se aceita e à qual ninguém botará defeito.

 

O caso mais recente da lusitana história da estalada não tem, até ao momento, repercussões físicas de qualquer tipo. É sabido que, após um truculento e ácido artigo de Augusto M. Seabra no 'Público', em que o crítico atacava quer a competência de João Soares para o cargo de ministro da Cultura, quer os seus métodos - que envolveriam 'compadrio, prepotência e grosseria', adjectivando-o ainda de 'derrotado nato' -, João Soares reagiu na sua conta do Facebook. Afirmava a intenção de se encontrar com Seabra para lhe dar 'umas salutares estaladas', que aliás estavam 'prometidas desde 1999, altura em que, segundo o visado, o crítico terá dito sobre ele 'umas aleivosias e calúnias'.

 

De caminho, o ex-presidente da Câmara de Lisboa e filho do antigo Presidente da República, Mário Soares, recordava também que estava em falta com o mesmo tratamento a Vasco Pulido Valente, igualmente cronista do 'Público', que em Março se lhe referiu como 'lamentável personagem'. A propósito da demissão de António Lamas, o controverso gestor do Centro Cultural de Belém, VPV escrevia: 'não se percebe toda esta palhaçada, excepto se pensarmos que ele [João Soares] é no Governo um verbo de encher e que o PS o atura por simples caridade.

 

O duelo para defesa da honra e a eventual calúnia, ultraje ou infâmia a ele asociados vem dos primórdios da Idade Média, e resultou em Portugal em diversas cenas mais ou menos públicas até meados do século XX. De Afonso Costa a João Franco, de António Granjo a Eduardo Swalbach, do Conde de Penha Garcia a Francisco Solano de Almeida, de Caeiro da Matta a Anselmo Braancamp, muita foi a elite política urbana que sonegou aos tribunais as suas quezílias públicas ou privadas. Tratava-se de uma suposição de que os cavalheiros, como outrora os cavaleiros, tinham sobre as massas uma posição que lhes permitia tratar das questões da justiça pelas suas próprias mãos. O povo esmurrava-se na taberna, os senhores degladiavam-se com apertadas regras, casaca e chapéu alto. A testosterona tem luta de classes...

 

já o génio guerreiro Sun Tzu tinha sobre o duelo uma visão negativa. Criticava aos homens o 'orgulho e vaidade' a que, segundo ele, chamavam impropriamente 'defesa da honra'. Da França dos espadachins aos pistoleiros do far-west, dos duelos de chicote do sertão brasileiro às pistolas com testemunhas de Inglaterra, foi durante muito tempo através do derramamento de sangue que os nobres e outros titulares trataram dos seus problemas. António José de Almeida, o político republicano que foi Presidente da República, terá sido, segundo reza a História, o primeiro português a ser desafiado para um duelo e a não aceitar, sem que lhe tivesse caído a honra na lama. Um fenómeno de modernidade, na altura.

 

As excepções, já no tempo do Estado Novo, que, mais do que fechar os olhos aos duelos, como era uso da justiça mais branda da 1ª República, os criminalizou, são escassas. É de escola o exemplo de Francisco Sousa Tavares, que sendo oficial miliciano quis desagravar uma afronta de um seu superior hierárquico desafiando-o para um duelo; o qual nunca chegou a concretizar-se.

 

A espada e a pistola foram modernamente substituídos pela pena. E o interessante é que ambas andaram, desde os primórdios da Idade Média, casadas. Eggil Kalagensson foi um poeta e guerreiro viking que, no século X, primeiro terá lançado um código de conduta de duelos, bem a par das regras de cavalaria em uso no tempo. Mas não deixou de usar a escrita para afrontar os que se lhe opunham.

 

Mais prosaicamente – ou com menos pompa – vários escritores do século XIX, conhecidos pela pena afiada, não deixaram, no entanto, de usar as mãos e alguns esticadores de braço – a célebre bengala – para pedir contas a adversários e homens que lhes tinham lançado críticas mais ou menos ferozes.

Eça de Queiroz referia, em carta a Teófilo Braga, algumas das passagens da sua obra: 'A sociedade que cerca esses personagens - o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturazinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacá-las é um dever. [...] Merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem'.

 

Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Sampaio Bruno, Aquilino Ribeiro ou João Gaspar Simões foram alguns dos muitos que se envolveram em bengaladas, ou foram desafiados, no Chiado ou não só, à porta da Bertrand como em campo aberto.

 

A Idade das Luzes e o Iluminismo começaram, aos poucos, a tornar fora de moda os duelos e os desagravos  mais por armas que por palavras. A morte de Alexander Hamilton, que foi secretário de Finanças de George Washington, num duelo com o seu adversário Aaron Burr, 3º vice-presidente dos EUA, tomou repercussões tais que, a partir daí, a justiça começou a reprimir, de forma mais cerce, os habituais desaguisados resolvidos à pistola pelos politicos oitocentistas.

 

Mas Andrew Jackson, anos depois, ainda seria vítima de um tiro num ombro, apanhado num duelo que lhe provocou dores para o resto da vida. Alexandrer Pushkin foi morto em duelo, depois de ele próprio já ter descrito vários nos seus poemas. Coisas do destino da pena e da espada, mas também da tela – dos cowboys a Barry Lindon (filme icónico de Stanley Kubrick), a 'verdade' das armas, da honra e da cobardia têm sido alvo preferencial dos cineastas.

 

As paixões mortas em meio literário deram azo a grandes confrontações, como a que José Saramago e António Lobo Antunes protagonizaram durante anos. Rimbaud e Paul Vérlaine, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, Mário Cesariny e António Pedro, foram outros tantos. Sobre o poeta-pintor do surrealismmo, escreveu Jorge de Sena umas quadras de uma truculência verbal a roçar a infâmia. A questão coimbrã deu espada entre Antero e Ramalho, e a verbalização do insulto ganhou foros de arte, com o 'Manifesto Anti-Dantas' de Almada Negreiros. Talvez a mais famosa de todas as 'punições' literárias terá sido a bengalada de Carlos Eduardo a Dâmaso Salcede, numa tarde do Chiado; mas foi apenas num livro, Os Maias.

 

O resultado imediato da desbragada verve de João Soares é conhecido. O ministro demitiu-se, alegando por um lado não querer prejudicar o Governo, mas também a necessidade de manter intacto 'o direito à expressão de opinião e palavra'. A questão talvez ainda faça correr alguma tinta. Como o chefe do Executivo dizia ontem, 'um ministro tem de lembrar-se sempre que o é, mesmo à mesa do café'.

Qual o valor do Facebook e de outras redes sociais na opinião dos cidadãos que são, também, figuras públicas?

 

No Facebook, aliás, corre célere a piada, os ataques e os apoios a João Soares. Uma jurista conhecida pelo invulgar traço de ironia, de seu nome Alice Coutinho, lembrava ontem, sobre os titulares governativos da pasta da Cultura:

'O Santana Lopes batia com a porta, o Sousa Lara queimava livros, o Carrilho dava uns tabefes, o João Soares ameaça dar. Eu não quero nada com essa gente da cultura'.

Para logo, num comentário, ser recordada pelo jornalista e antigo membro da direcção do 'Público', Joaquim Vieira: 'E então o Francisco José Viegas, que mandou os inspetores tributários tomarem no pacote?' Vai linda a democracia, e a cultura é de uma gente outra...

 

Mas, nestas coisas da honra e da truculência, até o Papa Francisco tomou recentemente partido. 'A liberdade de expressão é um direito. Mas se alguém ofender a minha Mãe, de certeza que leva um murro', disse o chefe de todos os católicos. Está o ateu João Soares desculpado...

 

No meio de tudo isto, com certeza de forma involuntária, vai a família Soares escrever, na sua saga, o valor da bofetada. Se o pai virou uma campanha presidencial desfavorável após a estalada que levou na Marinha Grande, já o filho deitou a perder uma carreira como ministro, sem sequer ter levantado a mão mais do que lhe permitiu a palavra.

 

 

Torno público que apresentei esta manhã ao Senhor Primeiro Ministro, António Costa, a minha demissão do XXI Governo...

Posted by João Soares on Friday, April 8, 2016

 

 

publicado às 22:58

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  24. O
  25. N
  26. D