A realidade aumentada está na moda. Em agosto o país inclina a sul. Este ano o boneco virtual junta-se a todos aqueles que para aí rumam de férias. Ponto de partida? Imaginemos uma linha a sul de Lisboa que rasga horizontalmente o Alentejo e, em jeito de cascata, caça-Pokémons e automóveis percorrem as estradas nacionais. Sem portagens e com paragens sem preço, todas desaguam no mar, de Sagres a Vila Real de Santo António. Partamos, então, com mais de 30º à sombra.
Se é um leitor que tem sede de chegar ao seu destino de férias, no Algarve, e que se prepara para “voar” pela autoestrada, com uma breve paragem numa estação de serviço apinhada de gente com carros atolados de bagagem, bicicletas e alguns barcos de recreio, então as linhas que se seguem...são exatamente para si. Para si e para todos aqueles que decidiram, em agosto, rumar a sul, destino de eleição, há muito, de muitos de nós.
Este ano parece haver uma novidade: os Pókemon decidiram também ir de férias para o Algarve. No mundo da virtualidade imagine agora que são vários que se espalham todos para sul, à nossa frente. Por isso, siga-os e tente apanhar, pelo menos, aquele que vai de férias consigo. É este, o jogo que lhe propomos a seguir.
Para lá chegar podemos partir dos vários pontos cardeais do nosso rectângulo continental. Mas, para facilitar e porque não somos centralistas, a viagem aqui desenhada não se restringe a quem parte do Terreiro do Paço. Faz-se um pouco mais a sul de Lisboa, já do outro lado do rio Tejo. Sem ser a régua e esquadro, traçamos uma linha, mais ou menos horizontal e transversal, que rasga o Alentejo, partindo o país em dois.
Em jeito de cascata, o boneco virtual segue as rotas alternativas que o asfalto das estradas nacionais nos proporciona para chegar ao destino. De Sagres a Vila Real de Santo António, passando por Albufeira, no Barlavento ou Sotavento, na praia que escolheu estender a toalha ou numa qualquer vila na serra algarvia, se for esse o local eleito.
Por estas vias tudo será feito com tempo, aproveitando-o ao máximo. O imenso sol será nosso fiel companheiro, bem por cima das nossas cabeças ou do nosso lado direito. São também rotas para quem gosta e quer apreciar as várias e diversas paisagens que tem pela frente. Seja pelo litoral, interior ou a que segue o curso do rio Guadiana.
Há paragens obrigatórias. Canal Caveira a Alcoutim, praias no litoral alentejano, vilas alentejanas em que o tempo demora a passar, ou na estrada da serra do Caldeirão, onde cabines telefónicas da Portugal Telecom denunciam tempos de outrora. Pelo caminho, há nomes de terras de trazem à memória Minas de outros tempos que nos são familiares, umas encerradas outras recuperadas.
A paisagem é bucólica e diversificada. Há o amarelo torrado do Alentejo. O verde das serras e dos Parques Naturais. Observamos campos de milho, girassóis, olival, gado em pastagem e pás eólicas que com um toque de modernidade ajudam a pintar o quadro que nos espera. Há restaurantes de estrada e placas a anunciar fruta à venda. Há carros e camiões em movimento, estradas completamente vazias salpicadas por coelhos e gatos, sinais de limites de velocidade nas localidades que nos obrigam quase a parar no tempo e bicicletas com ciclistas que parecem terem perdido o pelotão da Volta a Portugal.
Nas vilas e aldeias, portas e janelas impedem o calor tórrido de entrar e as esplanadas de alguns cafés convidam viajantes e idosos locais a partilharem silêncios.
Comecemos então com a estrada nacional mais conhecida e frequentada. É um percurso que tem complementar no nome, mas que nesta altura tem estatuto de principal.
IC1: Canal Caveira já tem minimercado
Em Alcácer do Sal, os ninhos que as cegonhas edificam servem de inspiração para a viagem que começou uns quilómetros mais atrás e nos guiará, em modo de voo plano pela planície, até ao Sotavento ou Barvalento algarvio.
Já foi a principal paragem, já perdeu o estatuto, esteve quase a sair do mapa e voltou nos anos mais recentes a ser (quase) aquilo que foi. Falamos de Canal Caveira, uma reta de cafés, restaurantes e do minimercado, que se alinham no sentido norte-sul, isto é, inclinado só para quem desce para o Algarve. Do lado inverso um imenso parque de estacionamento e uma ponte pedonal que parece servir de decoração, tantos são aqueles que arriscam a travessia mais direta ao café que está à mão de semear. Com estômago atestado, cumpre-se uma tradição. Mas, se quer acrescentar algo mais profundo da região, a seguir a Grândola, antes de Ermida do Sado, faça um desvio até as Minas de Lousal (minas de Pirites, já extinta) e revisite a história da vila no Museu Mineiro e no Centro de Ciência Viva do Lousal ou coma no restaurante Armazém Central.
Rode a chave da ignição de novo que é tempo de acelerar, porque as férias não esperam. Com mais ou menos tráfego, siga até Ourique, suba até Santana e São Marcos da Serra, e em São Bartolomeu de Messines ou desvia para Silves (N124) ou segue a linha do comboio até Tunes, Ferreiras, Albufeira. O mar está ali à vista. Passou rápido.
Seguindo o curso do Guadiana pela N122
Para o Pókemon que vem de Évora, passando pelas terras de vinho – Portel e Vidigueira –, em direção a Beja, não apanha o avião, antes calcorreia o asfalto e faz o desvio para Mértola e para o Parque Natural do Vale do Guadiana, pisando, mais à frente, a N122. Um desvio às Minas de São Domingos poderá fazer parte da sua rota. Com os semáforos e sinais a obrigarem à velocidade de 50 km/h no concelho de Mértola, em Vale do Açor de Cima, as cabines telefónicas com a insígnia Portugal Telecom levam-nos a quase parar como a recuar no tempo. E por falar em passado, a seta Pulo do Lobo aviva a memória política de tempos passados escritos na então jovem democracia.
A seguir a Santa Marta é merecido o desvio, e pausa, em Alcoutim. Dai, pela estrada 122-1, quase que basta esticar o nosso braço esquerdo e tocamos no rio Guadiana e na vizinha localidade espanhola de Sanlucar de Guadiana. Serpenteie por essa estrada fora até Castro Marim (retomando aí o IC-127) ou siga pelo Azinhal e Junqueira até Vila Real de Santo António, onde desagua em algumas rotundas que ligam à famosa nacional 125. Chegamos, então, à ponta mais a leste do sotavento algarvio.
Por entre Minas na N2
Montemor-o-Novo marca outro ponto de partida deste jogo real que lhe apresentamos de chegar às praias algarvias por estradas sem portagens e com (obrigatórias) paragens que não têm preço.
Pela N2 siga até Santiago do Escoural. Na N2 contabilize Alcáçovas, Torrão, Odivelas, Ferreira do Alentejo – zona do imenso olival com o cunho Oliveira da Serra –, Ervidel, até aterrar num famoso eixo de Minas, das de Almina às de Neves Corvo: Aljustrel, Castro Verde e Almodôvar. Por aqui há algumas áreas de descanso que parecem elas mesmas estarem a viver esse estado de espírito de uma aparente imutabilidade eterna.
Nas imensas retas que antecedem a Serra do Caldeirão, alguns ciclistas vestidos a rigor parecem saídos da Volta a Portugal, mas não passa de pura ilusão. E talvez só com um truque de magia, perto de Barranco-o-Velho e Vale das Três Marias, uma antiga “Casa de Cantoneiros” da Junta Autónoma de Estradas, datada de 1936 arranjará comprador. Se andava à procura de uma, bom já deu por bem empregue a viagem. E por falar em oportunidades, em Besteiros encontra uma seta com as palavras “licor de medronho”. É parar, comprar e beber, só depois de já sentadinho e bem instalado, se faz favor. São Brás de Alportel marca um triângulo de soluções. Para Loulé com passagem por Querença pela N396, seguir em frente até Estói e Faro ou virar à esquerda (N270), para Tavira, fazendo parte da Algarviana. E por aqui ligue-se, por via transversal, quase até ao mar da costa Vicentina.
Pelo parque natural do sudoeste alentejano e Costa Vicentina
Aqui chegados, já fomos para o Algarve por três estradas nacionais. Mas há ainda um último itinerário. Recuemos até ao rio Sado. Em Setúbal, podemos apanhar o barco e navegar até à Comporta. Daí seguir pela N261-1 até Grândola ou, junto à costa, saltar até Melides (N201) e daí até Santiago do Cacém para apanhar a N120, vinda da “terra da fraternidade”.
Nesta estrada nacional, o Cercal é o próximo ponto de referência geográfica. Aí, de novo, duas hipóteses: ou seguimos pela serra do Cercal ou apanhamos o ar marítimo de Vila Nova de Mil Fontes (N390), para depois seguirmos para Odemira (pela N393) e retomar a nossa rota que nos levará a Odemira. A partir desta vila, entramos no Parque Natural do Sudeste Alentejano e Costa Vicentina. Carros com pranchas de surf empilhadas, para cima e para baixo, saltitando pelas imensas e belas praias da Zambujeira do Mar, Odeceixe e Aljezur. Uns quilómetros mais à frente, as curvas e contra curvas da Serra Espinhaço de Cão curvas levam-nos até Bensafrim e terminam em Lagos. Se tiver tendência para enjoar e porque a viagem já está quase no fim, opte antes pela estrada junto ao atlântico, pise as encostas da Bordeira e Carrapateira, aviste as pás eólicas que denunciam que estamos a chegar ao nosso destino, faça o desvio em Vila do Bispo (N268) e desagúe em Sagres. A ponta mais ocidental de Portugal continental e do Barlavento.
Chegamos. Apanhamos o último Pókemon. Como prémio nada melhor que um mergulho nas refrescantes águas desta ponta do Algarve. Ponto final destas linhas que nos levaram ao Algarve.
Rebobine, agora o filme. Regresse ao ponto de partida e pense antes de optar. Poderá ir pela via mais rápida, a 120 km/h, com os olhos fixos no carro da frente ou seguir os quatro caminhos que lhe apresentamos, por estradas nacionais e alguns troços regionais, traços bem vivos do passado e do presente e que nada têm de virtualidade.
Para o fim, um conselho: deixe o boneco da realidade aumentada em casa e desfrute de tudo o que o rodeia até chegar ao seu destino de férias. E aí chegado, desligue a chave da ignição e aproveite os dias para carregar baterias. As suas baterias.
O que fica a saber do mundo, sobretudo em momentos de grande tensão, um leitor que lê informação nos sites e nas redes sociais? No conforto preguiçoso do seu sofá, ou no espaço higienizado do seu escritório, que informação é dada naquele fuso que se tornou obrigatório nas notícias – o “agora”? O que sabe, na realidade, o caríssimo leitor sobre o que se está a passar no interior de uma igreja no norte de França ou num restaurante, no sul da Alemanha?
Sabe o que lhe dizemos. Agora, dizemos que são dez feridos. Agora, dizemos que já há um morto. Daqui a um minuto, no próximo agora, dizemos que afinal são onze feridos. Depois dizemos que o morto é sírio e que terá sido abatido. Mais um agora, e afinal já se sabe que se suicidou. Dizemos que um padre foi morto por um mulçulmano. Dizemos que um miúdo matou outros dez, porque era muçulmano. Começou por ser turco, passou por alemão, agora parece que é iraniano e de extrema-direita. Afinal não, era só manipulação para dividir a opinião. Mais um agora e afinal há menos feridos. Melhorou. Mas afinal o padre foi degolado. Piorou.
É isto que se sabe. O que não se sabe é como hoje a informação se tornou, provavelmente, a área mais difícil e ao mesmo tempo mais fácil para se trabalhar. Tudo depende da perspectiva. É fácil publicar – fácil como nunca foi. É estranho o que significa hoje “publicar” – significa, em grande medida, seguir o que outros escrevem, nos seus sites, ou em redes sociais, onde no que respeita a primeiras notícias (ou últimas horas, como quiserem), o Twitter é rei. Quem é rei no Twitter? Depende. Há reis encartados pela reputação de anos, há oportunistas malévolos e há súbitas fontes de informação directas – como foi o caso da página de Twitter da polícia de Munique, na sexta-feira passada, que foi a referência de muitos jornalistas para seguir o tiroteio que teve lugar na cidade alemã.
Mas é mais difícil do que nunca trabalhar informação naquilo que distingue o jornalismo de um outro qualquer produto de consumo. Num negócio que luta por novas receitas e por novos modelos de negócio, tudo parece boa ideia a alguém em algum momento. Jornalistas, gestores, vendedores de publicidade, tecnólogos, gestores de redes sociais, por aí fora. E é legítimo – é preciso experimentar, é preciso testar, é preciso não desistir. O problema é que a linha que separa o que se pode fazer quando se trata de informação do que não se pode fazer é ténue para muitos, mas quase sempre está preparada para electrocutar. Uma vez passada, já alguém se fritou. E não tem problema – há muito lugar na selva dos media contemporâneos para produtos fritos, provavelmente até mais do que para o jornalismo saudável. Mas, é tal qual escrevia Katherine Viner, a directora do The Guardian, num artigo sobre a verdade nos tempos da tecnologia. “Nos últimos anos, muitas empresas jornalísticas afastaram-se do jornalismo de interesse público e apostaram em notícias junk-food, correndo atrás de pageviews e com a vã esperança de atrair cliques e publicidade (ou investimento) – mas, tal e qual como acontece quando comemos junk food, odiamo-nos por ter feito isso”.
Ser rápido tornou-se o requisito principal de uma profissão que tem como missão reunir factos e propor interpretações sobre os mesmos. Agora é suposto fazer isso em menos de 30 segundos, porque numa janela qualquer do nosso computador já outro editor em qualquer outro site ou rede está a ser mais rápido a teclar. Com erros inevitáveis, demasiadas vezes sem confirmação, cheios de verbos no condicional, aí vamos nós, em direcção ao precipício da publicação. Mas é preciso publicar, rápido.
Ao compasso impiedoso de cada tweet, de cada trending topic, de cada post, de cada link, de cada última hora.
E é também assim que estamos a deixar fermentar a selvajaria – a pior de todas, aquela que nos vai deixar selvagens perante a selvajaria do mundo lá fora.
Em muitas redacções, não se pensa, tecla-se. Quem quer discutir princípios e consequências, não tem perfil. Há métricas para avaliar quantos artigos são publicados ou produzidos – curiosamente o termo “escritos” quase caiu em desuso nesses espaços – por hora. Publica, publica, publica. O que conta é chegar primeiro e publicar muito. Não é um problema só nosso – é um problema da maior revolução de sempre na forma como comunicamos, informamos e nos relacionamos.
A New York Magazine entrevistou mais de quarenta jornalistas e profissionais de media sobre a sua profissão. Vale a pena ler os resultados integrais, mas deixo um pequeno aperitivo.
Dos inquiridos, 75% acham que a internet foi boa para o jornalismo. Mas 44% respondem que o jornalismo é hoje pior do que há dez anos versus 36,7% que consideram que está melhor. 75,2% afirmam que sentem pressão para produzir histórias que sejam atractivas para a audiência. E de onde sentem a principal pressão? Da audiência? Não. Do patrão (41,07%) e aquela que o próprio jornalista exerce sobre si próprio (36,5%). Audiência só conta 17,8% nesta equação.
Já agora, 81,5% destes inquiridos dizem que os media ajudaram a “criar” Donald Trump.
E é aqui que me lembro de uma pergunta que há sempre alguém que faz. Qual é o mal? Apetece-me hibernar cada vez que ouço esta pergunta. Não pela sinceridade e mesmo ingenuidade com que alguns a farão. Mas, mais uma vez, pela inconsequência. Qual é o mal de não ter mal perguntar sempre qual é o mal? É que nada tem importância, porque tudo só dura uns escassos minutos e depois ninguém se lembra. São Dorys, o peixinho de águas quentes, feliz porque desmemoriado.
Tenham um bom fim de semana
Outras sugestões de leitura:
Hoje as sugestões de leitura de ficam integralmente em casa, ou seja, no SAPO24. Porque a oferta é boa e vale a pena o vosso tempo.
A primeira sugestão é um artigo da Helena Oliveira sobre uma nova epidemia, a do narcisismo. Qual Narciso, há cada vez mais pessoas apaixonadas pelo seu próprio reflexo e assim se multiplicam posts, fotos, streaming da vida diária. Psicólogos, filósofos e outros cientistas sociais estão preocupados com uma epidemia que cresce mais depressa que a da obesidade.
A segunda gestão, na semana em que Hillary Clinton se tornou a primeira mulher candidata à presidencia americana por um dos grandes partidos, é a leitura do artigo do José Couto Nogueirasobre as mulheres que antes dela tentaram lá chegar.
Mesmo mal amada, Hillary Clinton tem uma boa parte do planeta a torcer pela sua vitória e, se tudo lhe correr bem, será a primeira mulher Presidente dos Estados Unidos. Mas não é a primeira candidata. Já houve duas, no século XIX. Por acaso mulheres muito mais interessantes. Mas o ser interessante não é, definitivamente, uma qualidade necessária para ter poder de vida ou de morte nuclear sobre o planeta.
Hillary é detestada por muitos, mal vista por outros tantos, trapalhona, acomodada com os interesses instalados; contudo, nas voltas que a democracia permite, tornou-se uma tábua de salvação para o seu país e para tantos outros países interligados contra ou a favor do Império. Como esposa do 42º Presidente, ficou conhecida por ser publicamente traída. Como secretária de Estado do 44º Presidente, mostrou-se bastante inábil e meteu-se em algumas confusões que ainda a perseguem. Mas, do mal o menos; se for eleita, será a 45ª Presidente dum país onde as mulheres há muito que têm uma presença forte na política, mas sempre na segunda linha.
Há 144 anos, em 1872, outra mulher candidatou-se a Presidente: Victoria Woodhull. Ao contrário de Hillary teve uma infância difícil, meteu-se em vários negócios e assumiu posições politicas fortes, muito à frente do seu tempo. A América não estava pronta para ela, e muito menos para um vice-Presidente negro e ex-escravo, Frederick Douglass.
Filha ilegítima de uma mãe analfabeta e dum pai vendedor de banha da cobra – literalmente – Victoria nasceu em Homer, Ohio, no chamado Farwest, na época dos assaltos a diligências, corridas ao ouro e aquela truculência que vemos nos filmes de cowboys. Desde miúda que teve de lutar contra todos os preconceitos, estudou formalmente apenas três anos, e aos doze já estava casada com um pseudo-médico alcoólatra que lhe batia. Extremamente inteligente, estudou sozinha e desenvolveu os seus conceitos sociais. Era sufragista (pró voto feminino), igualitária e a favor do “amor livre”. Tinha tudo para ser considerada uma prostituta, que nunca foi, apesar de ter trabalhado como empregada em prostíbulos. O conceito de “amor livre” nesse tempo significava apenas o direito da mulher se divorciar, viver a sua vida com quem quisesse e eventualmente casar novamente. Também era espiritualista e acreditava ser guiada por Demóstenes.
No meio de aventuras que dariam um bom filme, chegou a Nova Iorque, onde abriu uma corretora de valores com uma amiga – a primeira no mundo a ser dirigida por mulheres - e posteriormente um jornal para espalhar as suas ideias. Em 1866 casou com um veterano da Guerra Civil. Conheceu e teve contactos tempestuosos com a mais famosa sufragista norte-americana, Susan B. Antony, que era menos radical do que Victoria.
(Tivemos em Portugal, com o habitual atraso de 50 anos, duas figuras parecidas, Angelina Vidal e Carolina Beatriz Ângelo, mas isso é outra história.)
Em 1870 esteve na fundação do Partido dos Direitos Iguais (Equal Rights Party), basicamente uma plataforma politica para a emancipação feminina. Mas, entretanto, uma disputa à volta da história do amor livre custar-lhe-ia a candidatura. Um ministro protestante, proeminente em Nova Iorque, opôs-se publicamente ao conceito defendido por Victoria e ela publicou no jornal que o senhor era contra, mas tinha uma amante. Daí resultou um processo judicial, em que foi detida e, embora não condenada, perdeu o período eleitoral. Claro que a coisa cheirava a marosca política, mas o mal estava feito. Contudo, não é de supor que uma candidatura com uma libertária e um ex-escravo, ainda por cima casado com uma branca – na altura a miscigenação era muito mal vista... – tivesse alguma hipótese real.
Victoria participou na formação da Primeira Internacional, mas a associação de sindicatos dividiu-se em 1871, quando os alemães, com a aprovação de Marx, expulsaram os ingleses e os americanos. Perdida a oportunidade da presidência, Victoria divorciou-se e foi para Inglaterra com a sua sócia no jornal, Tennie Claflin. O multimilionário William Vanderbilt, cujo pai fora um amigo de sempre e apaixonado por Tennie, deu-lhes uma boa quantia para recomeçar a vida. Mas Victória não queria parar; começou a dar conferências – a mais famosa tinha como tema “O corpo humano, templo de Deus” – e casou com um banqueiro britânico. Ainda publicou um jornal, até se retirar para o campo, em 1901. Uma rica vida, cheia de peripécias.
Em 1884 o Partido dos Direitos Iguais concorreu novamente à Presidência, com uma candidata completamente diferente, Belva Ann Lockwood, e outra mulher para vice-presidente, Marietta Stow. Ambas sufragistas e defensoras dos direitos das mulheres, se bem que muito mais conservadoras do que Victoria Woodhull. Belva era advogada – numa época em que poucos juristas formados havia, e muito menos mulheres – e directora dum colégio prestigiado de Washington.
Em 1888, o Partido concorreu uma última vez. Inicialmente o vice-presidente era para ser um homem, o líder da União para a Paz Universal, Alfred Love, mas não aceitou a vergonha de ser segundo para uma mulher … Finalmente outro homem, Charles Weld, filho de um casal muito progressista, aceitou fazer uma figura que todos consideravam vexatória.
Como as mulheres não tinham direito a voto, as possibilidades da dupla eram muito reduzidas. Ficaram registados apenas 4.200 votos, o que mesmo assim é surpreendente, dado que toda a comunicação social era contra o sufrágio feminino. Até ao fim da vida Belva escreveu sobre as suas bandeiras, paz universal e igualdade de género, alem de continuar a dirigir o colégio.
O voto das mulheres foi uma das grandes questões do século XIX e na realidade só se resolveu em meados do século XX – no tempo das nossas mães e avós, não mais cedo. Nos Estados Unidos, vários Estados deram direitos parciais, lentamente, até à emenda da Constituição de 1920 que resolveu o problema definitivamente. Na Europa, o primeiro pais foi a Finlândia, em 1907. Em Portugal, a Constituição de 1911 não previa tal modernidade, porque os constituintes jacobinos achavam que o voto feminino seria influenciado pelos padres ... Só na Constituição de 1933 é que as mulheres puderem votar e ser votadas.
A assim chegamos a Hillary, a grande esperança da eleição do fim do ano, a 8 de Novembro, nos Estados Unidos. Uma mulher que se espera que tenha o apoio maioritário não só das mulheres, mas também dos hispanos, dos negros e, até, de muitos republicanos. O mundo vai assistir de coração na boca e braços virados ao céu.
A última empresa japonesa a fabricar leitores de cassetes de vídeo anunciou que os vai deixar de produzir, mas a notícia não é radical porque o mesmo fabricante está a ter sucesso nos equipamentos combinados para discos DVD e cassetes VHS. E a morte anunciada do VHS já tem muitos anos...
A Funai Electric anunciou que vai deixar de fabricar a 30 de Julho os seus leitores de videocassetes de Video Home System (VHS), um formato que foi lançado há precisamente 40 anos. Mas a morte do VHS já tinha sido anunciada há vários anos e por variadas razões.
A empresa, citada pelo jornal Nikkei, afirma ter chegado a vendas de 15 milhões de unidades por ano, mas os números relativos ao ano passado não passaram das 750 mil unidades comercializadas - isto quando a competição com os formatos DVD e Blu-Ray começam igualmente a esmorecer.
Era a última empresa no Japão - e, segundo várias fontes, no mundo - a comercializar estes equipamentos (conhecidos em inglês por VCR, de "videocassette recorders "), sob a sua marca ou para empresas de electrónica de consumo como a Sanyo (da Panasonic), Sharp, Toshiba ou Denon.
Combinados ainda dão lucro
A Funai alegou a falta de componentes para interromper a produção destes equipamentos, que era feita na China. Porém, não se sabe se estes fabricantes chineses vão continuar a produzir os leitores de VHS, se resolverem a escassez de componentes. No entanto, a Funai pode não estar a abandonar o negócio dos VCR. No seu relatório anual, dos resultados financeiros até 31 de Março passado, a empresa alega que a venda de equipamentos audiovisuais "cresceu devido às boas vendas dos modelos Combo DVD/VCR".
Entre o ano fiscal de 2014 e de 2015, um outro documento interno mostra que a venda de leitores de DVD aumentou igualmente devido a esses "combos", modelos combinados de leitores de DVD e VCR, enquanto todos os outros decresceram - nomeadamente gravadores de DVD ou na gama Blu-Ray.
Da luta de formatos...
A Funai "recebeu um grande número de chamadas de proprietários japoneses de cassetes VHS desesperados, porque ainda não tinham transferido as suas recordações preciosas de casamentos e outro tipo de eventos especiais para outros formatos", disse um porta-voz de empresa.
A empresa fabricava estes equipamentos desde 1983, após ter perdido a guerra de formatos que então ocorreu, com a sua Compact Video Cassette (CVC) - uma proposta portátil, por ter uma fita magnética mais pequena - a não se impor perante o Betamax e o VHS, numa luta pela liderança que o último acabou por ganhar.
Um outro formato, o LaserDisc, nunca se conseguiu sequer apresentar como concorrente, apesar das suas melhores capacidades em termos de vídeo e som. Mas não permitia a gravação, ao contrário dos descendentes CD, DVD ou Blu-Ray.
Os leitores de Betamax no mercado doméstico foram descontinuados em 2002 (o formato diferente Betacam continuou a ser usado em usos profissionais nas produtoras de vídeo e televisões), até que em Novembro do ano passado a Sony parou com a sua produção destas cassetes no Japão.
A 27 de Outubro de 2008, foi a fabricante JVC (que tinha liderado o lançamento do VHS) a interromper o fabrico de leitores neste formato, quando o DVD se instalava como alternativa.
...à evolução tecnosocial
Os contributos para o fim da indústria analógica das cassetes de vídeo surgiram de várias frentes, das operadoras de televisão por cabo (com ofertas de canais de filmes) ou propostas como o Tivo e até a TV interactiva, em Portugal (pela então TV Cabo) e ainda pela pirataria de conteúdos proporcionada pela Internet.
Houve outras razões, mais desconfortáveis e mesmo egoístas, como a necessidade de o interessado num filme se deslocar a um videoclube para o alugar em cassete e, depois, efectuar uma nova deslocação para a devolver. A Netflix resolveu esse problema, mas evoluiu depois para o sistema de vídeo online.
As cassetes VHS continuam a circular, nomeadamente entre coleccionadores, com alguns a pagarem até 2.000 dólares por edições raras, tornando-as no vinil da gravação de vídeo analógico, como comparava a Mental Floss relativamente ao mercado paralelo e bem sucedido dos coleccionadores de discos de vinil.
Mas Tania Loeffler, analista da IHS Technology, considera que os VCR "não vão regressar como o vinil", devido à sua má qualidade de imagem.
"Diferente do vinil, onde realmente se tem uma melhoria da fidelidade sonora, o VHS tem uma mais baixa resolução do que o DVD, e o som nem sequer é comparável", nota igualmente Caetlin Benson-Allott, professora de estudos cinematográficos e de media na norte-americana Georgetown University, em entrevista à Slate.
Sinais precoces
Sendo pragmáticos, a morte do VHS já estava anunciada há anos. A Funai apenas pode estar a colocar o último prego no caixão.
Em meados da década de 90, eram vendidos mais de 200 milhões de VCR por ano, apesar dos receios da pirataria pela indústria cinematográfica. O sucesso decorria igualmente por a JVC ter licenciado a tecnologia VHS a qualquer fabricante que pagasse pelos direitos de uso.
Em 2010, a Associação do Comércio Audiovisual de Portugal (ACAPOR) dizia que a cadeia de videoclubes Blockbuster "cai aos pés da pirataria provocando um dano incomensurável em todo o mercado videográfico", ao anunciar o fecho de lojas em território nacional, mas também porque, no início de 2009, a Blockbuster fechou centenas de lojas e outros videoclubes não aguentaram igualmente a evolução para uma nova geração de visualização de filmes.
Dessa época pode-se recuar até Agosto de 2005. "A ideia de que os videoclubes vão magicamente desaparecer por alguma razão é estranha", dizia Tom Adams, presidente da consultora Adams Media Research, ao New York Times. "É ainda a forma mais popular de ver filmes".
Mas a visão já estava errada, porque esse era o ano da erosão do VHS nos EUA, quando cadeias como a Circuit City e a Best Buy deixaram de vender VCR nos EUA, até porque 88% dos lares americanos já tinha um (percentagem que baixou para 58% em 2013), contabilizava a The Atlantic.
Os dados para os EUA eram inabaláveis: entre 2000 e 2004, a Consumer Electronics Association estimava que a venda de VCR tinha passado de 1,8 mil milhões de dólares para apenas 144 milhões, enquanto projectava a venda de apenas 2,8 milhões de unidades para 2015, perante os 23 milhões vendidos em 2000.
Na sua recente entrevista, Caetlin Benson-Allott mostrava-se mesmo surpreendida por ainda se fabricarem VCR, quando a JVC os parou de produzir em 2008 e, anos antes, quando as pessoas começaram a ver mais DVD do que cassetes VHS.
O impacto das consolas de jogos
Em 2002, pela primeira vez, as vendas dos leitores de DVD ultrapassaram as dos VCR. Para isso contribuiu, em muito, a venda de consolas de jogos com leitores incorporados de DVD. O primeiro caso ocorreu em 2000, quando a Sony lançou a PlayStation 2 (PS2) no Japão e, posteriormente, noutros mercados internacionais, tornando-se um sucesso de vendas. O DVD tornou-se a tecnologia mais rapidamente adoptada de sempre.
Em Fevereiro de 2004, a Viacom queria abandonar o negócio da Blockbuster Video, após resultados financeiros decepcionantes (e não encontrar comprador para o negócio do aluguer de vídeo, onde detinha mais de 80%). Nessa altura, o negócio de aluguer de vídeos que se tinha iniciado com uma loja em Dallas, em 1985, contava com 8.500 lojas e 48 milhões de assinantes.
A movimentação para o abandono ocorreu igualmente num dos maiores mercados de electrónica na Europa. A 22 de Novembro de 2004, o jornal britânico The Telegraph noticiou a "sentença de morte" do VHS, após a cadeia de venda de produtos de electrónica de consumo Dixons ter anunciado que ia deixar de vender VCR.
"Dizemos adeus a um dos mais importantes produtos na história da tecnologia de consumo", afirmava John Mewett, director de marketing da cadeia de venda de electrónica de consumo da Grã-Bretanha. "Estamos a entrar na idade do digital e a nova tecnologia do DVD representa uma mudança na qualidade de imagem e conveniência".
Em resposta a esse abandono, a JVC respondeu à Dixons afirmando haver "cerca de dois milhões de novas vendas de VCR", pelo que isso demonstrava existir procura pelos consumidores. JVC que, recorde-se, iria abandonar o mercado dos VCR quatro anos depois.
A procura era tanta que a agência noticiosa Reuters contava como, à época, os assaltantes de casas já nem sequer levavam os leitores de VHS "porque os novos custam tão pouco que ninguém quer um modelo em segunda mão".
Interesse no software para vendas de hardware
Os fabricantes de equipamentos electrónicos tendem a lançar novos produtos que possam captar a economia dos utilizadores - nem sempre pelas melhores razões para o consumidor. Um formato triunfador terá um espaço de tempo para se impor à concorrência, mesmo não sendo o melhor em termos técnicos. A luta entre o VHS e o Betamax é desde então um interessante "case study".
O lançamento há uma dúzia de anos de uma outra guerra de formatos, desta vez no mundo dos DVD - onde competiam cinco alternativas, nem sempre compatíveis entre si: DVD-R, DVD-RW, DVD+R, DVD+RW e DVD-RAM - mostraram como o consumidor estava a ser levado para formatos proprietários (software) que nada lhe trariam de bom, excepto estar sempre a adquirir novos equipamentos (hardware).
O modelo nem sequer é recente. De forma simplista, pense-se na compra das lâminas de barbear para um suporte de uma dada marca. Qualquer outra não irá funcionar nesse suporte. Onde está defendido o interesse do consumidor? O mesmo se passa com as plataformas de vídeo.
Caetlin Benson-Allott salienta que a longevidade das fitas magnéticas VHS é superior à de um DVD - 25 anos, para um uso médio, e cinco a 10 anos para um DVD-R, enquanto o VHS pode durar 50 anos, "se bem acondicionado".
Mas há uma outra questão quando os fabricantes terminam a produção de formatos e de equipamentos: "perdemos a história do cinema e da televisão de cada vez que se muda de formatos", diz. E lembra como as cassetes Betamax foram concebidas pela Sony para serem similares ao tamanho de um livro. "A visão original era a de ter uma biblioteca de cinema e televisão tal como se tinha uma querida biblioteca de livros".
Com a decisão da Funai, o utilizador não terá qualquer biblioteca física de vídeos VHS ou Betamax e do DVD só se poderá falar daqui a uns anos. Entretanto, perdeu muitos vídeos do cinema, da televisão ou pessoais.
Usadas para identificação pessoal, as tatuagens podem ser um perigo. Os Estados Unidos estão a ampliar um polémico programa de reconhecimento biométrico que arrancou com imagens tatuadas de presos, mas que já contempla também pessoas simplesmente mandadas parar na rua pela polícia. Para a Electronic Frontier Foundation, este programa pode representar uma ameaça à liberdade de expressão.
A tatuagem "já foi uma das poucas formas de identificação de um indivíduo", explica o Ministério da Justiça no anúncio da exposição "Tatuagem", que vai estar no MUDE - Museu do Design, em Lisboa, entre Dezembro e 1 de Março de 2017, da responsabilidade do Instituto Nacional de Medicina Legal.
O texto aborda ainda o lançamento do livro "Álbum de Tatuagens", da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que relembra como, em 1915, "se inscreviam todas as tatuagens dos reclusos, com o intuito de fazer um correto reconhecimento do indivíduo e estudar o seu percurso de vida através da iconografia tatuada". No álbum, eram reproduzidas as imagens inscritas nos reclusos "mas também se registavam a respectiva localização no corpo" e dados do processo. "Muitos reclusos apenas sabiam identificar outros com quem tinham cometido crimes através das tatuagens que tinham ou pessoas com quem se tinham cruzado", pelo que surgiam alcunhas como o "Manuel das cruzes", provavelmente uma pessoa com várias cruzes tatuadas.
"Nos inúmeros desenhos de tatuagens encontram-se elementos como nomes de pessoas, barcos, aviões, peixes, armas, condecorações, elementos iconográficos que remetem para aspectos políticos, culturais e religiosos, entre outros". São precisamente estes aspectos que estão agora a ser motivo de polémica, por um programa semelhante, mas actualizado tecnologicamente e que recorre a algoritmos de identificação biométrica nos EUA.
Ameaça às liberdades
Há dois anos que o FBI norte-americano tem um programa para reconhecimento de tatuagens. Segundo revelou recentemente a Electronic Frontier Foundation (EFF), este programa levanta sérias questões sobre a Primeira Emenda da Constituição do país, relativa à liberdade de expressão. O programa de identificação tecnológica de "tattoos" foi lançado pelo National Institute of Standards and Technology (NIST) em 2014, usando uma base de dados de 15 mil imagens, recolhidas pelo Biometric Center for Excellence do FBI a prisioneiros ou outras pessoas simplesmente mandadas parar na rua pela polícia, mas registadas sem o seu consentimento, critica a organização de defesa de direitos digitais.
As tatuagens "podem revelar quem somos, as nossas paixões, ideologias, crenças religiosas e até as nossas relações sociais", diz a EFF, salientando que é por tudo isso que os "algoritmos automatizados" ameaçam as liberdades civis.
Símbolos selectivos
As tatuagens podem representar "erros que fizemos na juventude", mas também serem "símbolos que representam a herança étnica ou o orgulho nas filiações, como as unidades militares, a pertença à igreja ou a ideologia política", assim como de "músicos ou filmes que nos encantaram" e o nascimento ou morte de familiares. Ou, até, serem sinais médicos que podem ajudar numa emergência. Em resumo, diz a EFF, as tatuagens "revelam onde estivemos, quem somos e quem esperamos ser".
Elas são uma forma selectiva e expressiva das pessoas demonstrarem as suas crenças pessoais e, para as forças de autoridade, de identificação "cultural, religiosa e política", segundo a EFF, apesar de assim poderem ajudar na identificação policial ou por videocâmaras de membros de "gangues, sub-culturas, crenças religiosas ou ritualísticas, ou ideologia política".
Para as autoridades, são "apenas identificadores biométricos". É nesse campo que se coloca o problema da liberdade de expressão, dado uma tatuagem ser algo inscrito "na nossa pele", pelo que a sua identificação automática levanta questões relativas à Primeira Emenda.
A tecnologia de reconhecimento dos "tattoos" permite efectuar "ligações entre pessoas com tatuagens temáticas similares ou fazer inferências sobre as pessoas a partir das suas tatuagens". O alerta da EFF surge no âmbito de uma campanha mais generalizada sobre o acesso das autoridades a tecnologias biométricas - como o reconhecimento facial ou da íris e as impressõs digitais.
Exploração privada
O programa "Tattoo Recognition Technology" tem três vertentes: Evaluation (Tatt-E), Best Practices (Tatt–BP) e Challenge (Tatt-C). Este último foi o responsável pelo registo das 15 mil imagens, recolhidas entre Setembro de 2014 e Maio de 2015, que "foi distribuído a 19 organizações - cinco instituições de investigação, seis universidades e oito empresas privadas".
Vários documentos mostram que o conjunto de dados "foi fornecido a partes terceiras com reduzidas restrições sobre quem pode aceder às imagens e durante quanto tempo elas serão mantidas", diz a EFF, salientando que algumas dessas imagens são de "partes íntimas dos corpos". A organização pretende que as cópias dessa base de imagens sejam devolvidas e destruídas.
A organização afirma ainda que as imagens do programa do NIST foram parar às mãos de empresas privadas como a MorphoTrak, "uma das maiores" no negócio da identificação pessoal biométrica, e sem "escrutínio ou validação ética" para a sua exploração. A MorphoTrak é a subsidiária norte-americana da Morpho, empresa da Safran (ex-Sagem Défense Sécurité), e está envolvida no reconhecimento de tatuagens desde 2009, em projectos de investigação com a Michigan State University (MSU) para "o desenvolvimento de identificação avançada e técnicas de análise para investigações criminais".
Falhas éticas
Para a organização de defesa de direitos civis, por outro lado, o programa de investigação do NIST "está tão cheio de problemas que a EFF acredita que a única solução para o governo é suspender o programa imediatamente", escrevia em Junho passado, nomeadamente por as imagens obtidas coercivamente a presos conterem "informação pessoal ou simbolismo religioso ou político".
Os investigadores do NIST "falharam" nos protocolos que deviam ser seguidos na investigação com humanos, ainda segundo a EFF, e apenas "pediram autorização dos supervisores após o primeiro maior conjunto de experiências estar completo", sem lhes revelarem a origem das tatuagens. Assim, o NIST e o FBI "tratam os prisioneiros como um fornecimento infindo de dados gratuitos".
O NIST assegura que a base de dados não se integra na regulação federal de investigação científica sobre humanos, mas reconhece que as "tatuagens fornecem informações valiosas sobre as filiações ou crenças de um indivíduo e podem suportar a verificação da sua identidade". Após as críticas da EFF, a instituição federal removeu referências públicas às tatuagens religiosas ou políticas.
O problema é que os investigadores ligados a instituições governamentais estão obrigados a um conjunto de regulações e princípios éticos, conhecido por Common Rule. Este foi "adoptado por mais de 15 agências federais, incluindo o NIST", refere a EFF, mas o projecto Tatt-C não seguiu essas regras, apesar de lidar com presos. Os investigadores envolvidos declararam não saber que isso era requerido, ainda segundo a organização.
O FBI ainda não comentou o assunto.
Mais 100 mil tatuagens
Este Verão, o NIST pretende activar a próxima fase do programa, o Tatt-E, com o registo de mais 100 mil imagens de "tattoos", provindos das autoridades nos estados da Florida, Michigan e Tennessee. O organismo federal está aparentemente a seguir os protocolos da Common Rule, nomeadamente nos pedidos de aprovação aos seus superiores, e salienta em documentos internos que a identificação pela tatuagem pode ser útil em casos de catástrofes ou de crimes.
Isso já sucedeu no Brasil, onde a identificação de uma jovem foi conseguida pela tatuagem que tinha num braço.Mas, como demonstra Oren Segal, director do Center on Extremism da Anti-Defamation League, estas imagens são problemáticas, porque os mesmos símbolos tatuados podem - além de estarem desactualizados perante devaneios juvenis - ter sentidos duais.
Por exemplo, a imagem dos martelos cruzados do grupo racista skinhead Hammerskins é também usada pelos fãs do álbum "The Wall", dos Pink Floyd. E mesmo a suástica nazi é um "símbolo sagrado e tem um significado espiritual para os nativos americanos, budistas e hindus".
Créditos/ Foto de destaque
Uma tatuagem feita por Dave Lum, um "tattoo artist" (Museu da Tatuagem de Amesterdão)
Os jogos do Rio de Janeiro ainda não começaram e já se amontoam os problemas, desde raptos e roubos a obras atamancadas e poluição persistente. A recessão que assola o país e a incompetência crónica da gestão da cidade antecipam, para muitos, um resultado que vai do embaraçoso para o descalabro. Ainda assim, a pouco mais de uma semana do arranque dos Jogos, sobra a esperança que os atletas e as provas compensem tudo o resto.
A cidade onde se realizam os Jogos Olímpicos é escolhida com grande antecedência, entre vários concorrentes, para que se possa preparar para um evento de magnitude faraónica, com uma escala universal. Por um lado, nenhuma cidade tem infraestrutura montada para tantos eventos desportivos a acontecer ao mesmo tempo; por outro, deseja superar sempre as anteriores em grandeza, organização e beleza. Tóquio, que será a cidade dos Jogos Olímpicos de Verão de 2020, foi escolhida em 2013. Para os japoneses, é tempo de sobra para organizar minuciosamente todos os pormenores.
Também parecia muito tempo quando, em 2009, o Rio de Janeiro ganhou a competição para receber os jogos deste ano. Nessa altura o Brasil estava em curva económica e social ascendente, e o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, reeleito com mais de 60% dos votos em 2006, parecia imparável. O PT não era apenas uma forma de gestão do país, tinha uma programação ideológica muito forte, tanto para o Brasil como para todos os países sul e centro americanos com governos de esquerda. A realização da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016 seriam celebrações da “nova ordem” que o Partido dos Trabalhadores queria exibir com aparato.
Só que, entretanto, muita coisa aconteceu no Brasil. Dilma Rousseff, eleita em 2011, mostrou-se uma administradora inábil e incompetente, levando o país para uma recessão que agora se pensa que só abrandará em 2020. Por outro lado, tem-se descoberto aos poucos que o grandioso projecto social do PT incluía uma corrupção a níveis estratosféricos, mesmo para o Brasil. Dilma foi afastada e está metida num processo de impedimento, enquanto o país é governado interinamente por um Presidente fraco e impopular. A gestão da coisa pública está praticamente suspensa, enquanto os políticos de todas as cores se contorcem num jogo labiríntico para se salvarem a si próprios e enterrar os outros. O desemprego anda na ordem dos 11% e contabiliza-se um recorde de falências de empresas pequenas e grandes. Não há grandes condições de prestar atenção aos Jogos Olímpicos e muito menos de gerir as estruturas necessárias ou de tirar partido da promoção nacional que o evento proporcionaria.
No epicentro da tempestade está o Rio de Janeiro. A cidade foi escolhida porque é linda, entre a montanha e o mar, com um clima tropical suave. Mas é linda nos bilhetes postais e nos vídeos. Diz quem lá mora que desde a gestão Brizola (91-94) que a incompetência dos edis (“prefeitos”) só tem par na corrupção desenfreada a todos os níveis. A criminalidade é assustadora. Há 16 assassinatos por dia só na cidade do Rio de Janeiro, com 6,3 milhões de habitantes, comparando com 48 assassinatos diários em todo o território dos Estados Unidos, com 320 milhões de habitantes.
A rua é partilhada entre a Polícia Militar, a Milícia, os gangues de traficantes e o crime juvenil, de puxão. As pessoas de fora, facilmente distinguíveis pela cor de pele e falta de samba, são roubadas na rua, pelos táxis, nos serviços, nos arrastões de praia.
Não há grande hipótese de um estrangeiro atravessar a cidade com uma câmara ao pescoço, uma mochila, ou alguma coisa de valor, e sair incólume.
Prevendo um grande número de visitantes incautos, a Prefeitura criou uma corpo extra, a Força Nacional, formado por voluntários das polícias e dos bombeiros de todo o país. Chegados ao Rio há três meses, os supranumerários ainda não conseguiram receber salário. Foram instalados em apartamentos sem camas, sem água, electricidade ou televisão, num bairro social que é dominado pela Milícia, que se recusa a fornecer esses serviços sem pagamento. Ora a Milícia é uma força semi-legal, formada por moradores e polícias fora das horas de serviço, que inicialmente se propunha a expulsar os traficantes de drogas, mas que acabou por se tornar uma gangue de extorsão ela própria. (Quem viu os dois filmes “Tropa de Elite”, de Wagner Moura, conhece a história.)
A polícia propriamente dita – chamada Polícia Militar – e os bombeiros, estão neste momento em greve por falta de pagamento de salários, pelo que não é de esperar muito empenho durante os jogos. Têm aparecido no aeroporto com uma grande faixa onde se lê “Welcome to hell”.
Noutra vertente, as obras destinadas aos pavilhões, ao alojamento dos atletas e jornalistas e os melhoramentos nos transportes estão atrasadas e algumas não ficarão prontas a tempo – talvez não fiquem prontas nunca. Os custos, sobrecarregados com luvas para todos os sectores da administração, ultrapassaram largamente o valor orçamentado. A semana passada começaram a chegar delegações e começaram os problemas. Os australianos foram para hotéis e queixaram-se dos canos entupidos, das poças de água dentro dos apartamentos, da falta de lâmpadas. Eduardo Paes, o prefeito, respondeu delicadamente que se eles quisessem até lhes punha cangurus nos módulos habitacionais para que se sentissem em casa. Mas os americanos, suecos e portugueses também já se queixaram de que nada funciona. Paes deve ser bipolar, pois tão depressa afirma que os jogos são uma oportunidade perdida como que tudo vai correr maravilhosamente.
Mas não é só a Vila Olímpica, domicílio dos atletas, que tem problemas. O metro especial para os jogos, que atravessa a cidade até à Vila, está por acabar, assim como a autovia rápida. Uma pista de bicicletas panorâmica, junto ao mar, caiu há um mês, matando dois ciclistas. As fotografias mostram que foi mal desenhada e construída com materiais ordinários. Custou 45 milhões de dólares, pagos a dez empresas. Quanto à baía da Guanabara, onde se realizarão as provas náuticas, ainda esta semana apareceu um cadáver a boiar. Nas imagens aéreas vêem-se frigoríficos, sofás e objectos não identificados a flutuar numa massa acastanhada com grandes manchas verdes. Eduardo Paes já admitiu que a despoluição não virá a tempo.
Um contentor com equipamento para uma equipa da televisão alemã desapareceu ainda no aeroporto. Dado o escândalo, a polícia lá o encontrou três dias depois, num armazém cheio de contentores de proveniências várias. Jason Lee, atleta neozelandês de Jiu-Jitsu, foi apanhado na rua e obrigado a fazer vários levantamentos em máquinas ATM. Pelos vistos a sua especialidade não o salvou dos perigos da rua. Aliás, são esses “pivetes” o grande problema. Porque as gangues de traficantes, bem organizadas, não terão nenhum problema em fazer acordos com as forças da ordem; também lhes interessa que os seus negócios paralelos – drogas e prostituição – corram bem, num ambiente seguro para os visitantes. Agora, os pivetes, são operadores independentes. Andam pela cidade em pequenos grupos e atacam tudo o que vêem pela frente, com o descaramento de quem não tem nada a perder.
Enfim, chova sangue ou caiam tijolos do céu, no próximo dia 5 de Agosto terá lugar a cerimónia de abertura dos Jogos Rio 2016. A Presidenta suspensa, Dilma, não comparece, pois não teria direito às honras da praxe, o que seria constrangedor. O Presidente interino Temer, espera-se que vá. Como se prevê que será Pelé a acender a pira olímpica. O espectáculo musical conta com Anitta, Caetano Veloso, Elza Soares, Ludmilla, Gilberto Gil e Wesley Safadão.
Talvez Gisele Bündchen desfile numa passarela que na verdade será criada virtualmente a partir de uma projeção do calçadão de Copacabana, ao som de “Garota de Ipanema” de Tom Jobim. No mundo inteiro, 3,5 mil milhões de pessoas vão assistir, na segurança dos seus sofás. No Rio, estarão muitos milhares dos mais ousados.
Subitamente, num Verão manchado pelo sangue e pelo terror, um jogo veio abanar as vidas de milhões de pessoas e, ainda que por minutos, deixá-las fora da loucura que nos rodeia e entrar numa bastante mais pacata aventura: apanhar, com um telemóvel, bicharocos que julgávamos desaparecidos.
Eu, pelo menos, julgava. Se me dissessem, há um mês, que os Pokemóns, que dominaram o universo infantil do meu filho no final dos anos 90, iriam voltar com mais força, mais vida, e agora iam arrebatar os mais novos e os mais velhos em simultâneo, não acreditaria. Mas, cada vez mais, o mundo é inacreditável - e no entanto, existe…
O jogo “Pokemon Go”, que está a dar a volta à cabeça de meio-mundo por todo o globo, batendo recordes de downloads de uma aplicação em escassos dias (mais de 75 milhões em apenas 20 dias, sendo certo que está disponível em apenas 32 países), é um caso de estudo - por todos os motivos, incluindo os mais inesperados, como a sucessão de notícias que motivou em todos os media. O sucesso do jogo, e a figura dos jogadores, na rua, de telemóvel em punho, junto com os faits-divers do costume (da igreja que atrai fieis com Pokemóns, à PSP empenhada em também os “caçar”…), criaram rapidamente uma onda de gozo e até de maledicência sobre o jogo. Nada de novo. Sempre que há um fenómeno viral, há logo um grupo de intelectuais desconfiados…
… Nada mais precipitado e sem sentido. Descarreguei o jogo para perceber o fenómeno - mas talvez convenha avisar previamente que nunca gostei de jogos de computador, consola ou telefone; e continuo a não gostar nem praticar. Que me lembre, o único a que achei alguma graça foi o “Guitar Hero”, da Playstation, porque me permitiu voltar a uma paixão de infância: a bateria! Dito isto, a “app” que fez renascer a Nintendo - em todos os sentidos, a começar no seu valor comercial… - constitui a primeira aproximação entre a virtualidade dos jogos e a realidade dos lugares por onde andamos. Nesse sentido, é muitíssimo bem conseguido, porque mistura o puro entretenimento - apanhar bonecos que não estão em lado nenhum, mas estão nos nossos telefones… - com conhecimento sobre a cidade onde nos encontramos. Descobri, por exemplo, o significado dos símbolos que estão incrustados na parede do edifício onde vivo, como descobri que há um castelo de brincar, para crianças, aqui no bairro…
Por outro lado, e numa reflexão mais séria, “Pokemon Go” faz os jogadores saírem do ninho, do seu reduto. Traz as pessoas para a rua - e ao misturar virtualidade com paisagem real, humaniza o jogo e quem o joga. Com isso, abre portas para toda uma nova filosofia no que aos dispositivos móveis diz respeito: não são mais objectos fechados onde mergulhamos em mundos muitas vezes inexistentes, tornam-se parte da realidade de cada um. E são estas evoluções, ou novidades, que ajudam a tornar tão popular - e instantâneo… - o que seria apenas mais um jogo para telemóveis.
Ignorar ou depreciar, apenas porque se tornou um sucesso e dá origem a situações ridículas - como a que se viveu há dias no Central Park de Nove York, com milhares de pessoas a procurar um Pokemon raro… - é passar ao lado do começo de mais uma revolução que a tecnologia desencadeia. Esta é, claramente, uma brincadeira muito séria. O começo de uma nova era.
Lido esta semana…
E mantendo-me no fenómeno Pokemon Go, eis como foi visto pelo CEO da Vaynermedia, Gary Vaynerchuk, um especialista no mundo digital e nos serviços que ele pode prestar à comunidade. Um olhar mais próximo do mercado, mais longe da brincadeira que anda a contaminar toda a gente…
Uma das leituras leves que recomendo sempre, a quem me pede um palpite, são os livros de Jeffrey Archer. Menosprezado pela critica, é um excelente contador de histórias, um conhecedor profundo do mundo anglo-saxónico, e as suas “sagas” são finas misturas de vidas reais - umas mais modestas, outras mais bem sucedidas, nos fundo todas muito semelhantes… -, com sentimentos comuns a todos nós, em histórias muito bem construídas e sempre empolgantes. Amais recente, que em três volumes explora praticamente um século da vida de uma família, os Clinfton, já tem edição em português dos dois primeiros livros. O terceiro, “This Was a Man”, será lançada em Novembro nos Estados Unidos e no Reino Unido, e mais tarde traduzido para português. Mas acompanhar o site do escritor, e dentro dele o seu blog, é uma boa aproximação à leitura de “O Segredo Mais Bem Guardado”, a segunda parte deste gigantesco quadro, já editado entre nós.
No próximo sábado, dia 30, a Livraria Lello, uma clássica do Porto, vai viver um momento especial: o lançamento mundial do livro "Harry Potter and the Cursed Child - Parts I & II”, com a presença de dois dos actores que entraram na peça que deu origem a este regresso de Potter. Os actores que protagonizam Severo Snape e Rúbeo Hagrid vão estar, à meia-noite (a Lello abre de propósito para esta noite de festa…), a receber os primeiros compradores do novo livro, que é assinado não apenas por J. K. Rowling, mas também por Jack Thorne e John Tiffany, já que se trata da passagem a “escrito” da peça de teatro que anima os palcos londrinos. Sem querer revelar nada, deixo aqui o link para a crítica que esta semana saiu no britânico The Guardian. Não, não é sobre o livro - é ainda sobre a peça… Mas abre o apetite!
O narcisismo parece estar a contaminar as sociedades ocidentais como se de uma epidemia se tratasse. Os nossos egos estão, de acordo com vários estudos, a engordar a um ritmo bem mais acelerado do que a obesidade física, ela própria decretada como um dos grandes problemas das sociedades ocidentais. Ou seja, temos egos demasiado gordos. Culpa dos pais indulgentes, que transmitem aos filhos a ideia de que são “mais especiais do que os outros”, das redes sociais por proporcionarem o palco por excelência para quem procura exibir a sua grandiosidade ou apenas um “novo normal” ao qual nos temos de habituar?
A modelo Gigi Hadid faz a vontade aos fãs e cumpre o ritual da selfie
Recordar-se-á o leitor de um famoso anúncio a uma marca que, há mais de uma década, questionava “se eu não gostar de mim, quem gostará”? E, se puxar pela memória, talvez se lembre também que, passado uns anos, a mensagem da mesma marca se inverteu e o slogan passou a ser “se eu gostar de mim, quem não gostará?”.
Pois bem, a ideia de este artigo não é a de escrever sobre mensagens subliminares veiculadas pelo admirável mundo da publicidade, mas a de alertar para um debate, que não sendo propriamente novo, tem vindo a ganhar contornos renovados com a emergência de uma sociedade em que o narcisismo – ou uma visão crescentemente insuflada do “eu” – parece estar a impregnar-se, crescentemente, em todas as suas esferas.
Poderíamos já saltar diretamente para o mundo virtual e culpar, de imediato, as redes sociais – que tão bem veiculam, 24/7, manifestações egocêntricas constantes – mas isso seria escolher o atalho antes de percorrer pelo menos uma boa parte do caminho. Sim, é verdade que ao longo dos últimos anos, e em particular com o advento do Facebook, do Twitter e do Instagram, se multiplicaram os estudos, e a literatura, no que respeita à tentativa de se estabelecer uma ligação direta entre o aumento do narcisismo e os media sociais. Mas, e como defendem também outros “especialistas” da praça, estes servem apenas de meios privilegiados e imediatos para expressar tendências narcísicas preexistentes. E sim, lá iremos, mas não antes de tentar dar uma ordem minimamente cronológica ao assunto.
Há já várias décadas, e em particular a partir dos anos 70 e 80 do século passado, que antropólogos, sociólogos e outros “ólogos” afins se uniram na caracterização da sociedade ocidental como “individualista”, fazendo correr rios de tinta sobre o fenómeno. É, no entanto, sobretudo no final do século XX e inícios do século XXI que uma mudança cultural mais alargada, envolvendo valores, crenças e práticas bem demarcadas, se pôs em marcha, e acelerada, no sentido do que já é defendido por vários pretensos entendidos no assunto como a “sociedade obsessivamente narcísica” ou a “epidemia do narcisismo”.
quais são as implicações psicológicas e éticas de um envolvimento constante, ou de uma verdadeira obsessão, com a vida passada num palco e à vista de todos
Para vários investigadores, uma reflexão sobre este narcisismo aparentemente descontrolado é de particular importância, e há duas perguntas que importa fazer: quais são as implicações psicológicas e éticas de um envolvimento constante, ou de uma verdadeira obsessão, com a vida passada num palco e à vista de todos e de que forma é que este fenómeno altera os nossos relacionamentos com os outros e a visão que temos de nós próprios.
Fome emocional ou verdadeiro amor?
Para alguns observadores, o fardo é colocado em cima dos ombros dos “novos pais”, que não se limitam a encorajar os seus filhos a alcançarem um saudável autoconhecimento. A título de exemplo, o psicólogo clínico Robert Firestone, no livro “The Self Under Siege: A Therapeutic Model for Differentiation”, afirma que para as crianças se sentirem seguras e terem confiança em si mesmas, é essencial que os pais saibam distinguir a “fome emocional” do verdadeiro amor. Este amor parental “genuíno” inclui carinho, afeição e uma sintonia no que respeita às necessidades das crianças, bem como a oferta de orientação e controlo quando apropriado. Ou, em suma, o tipo de amor que ajuda as crianças a desenvolver uma verdadeira autoestima e não traços de personalidade narcisistas.
Kevin Frazier, Daniela Ruah, Eric Christian Olsen, James Wolk, e Kirsten Vangsness não resistiram à selfie de grupo na última edição da Comic-Con.
Por outro lado, o debate extrema-se entre os que pretendem culpar a Internet e a sua capacidade para customizar as experiências que nela se tem de acordo com os nossos mais ínfimos desejos, o que nos pode tornar mais narcisistas, e os que defendem que esta constitui apenas o terreno apropriado para que traços preexistentes de narcisismo atinjam o seu esplendor.
Elias Abajoude, professor de psiquiatria em Stanford, escreve no livro “Virtually You: The Dangerous Powers of the E-personality”, que no espaço virtual muitas das interações físicas que restringem certos tipos de comportamento desaparece, permitindo que comportamentos como delírios de grandeza, narcisismo, malícia ou impulsividade venham mais facilmente ao de cima. Ou seja, “os traços [de personalidade] de que gozamos online podem ser incorporados nas nossas personalidades offline”.
De uma forma ou outra, e independentemente das “correntes”, o único consenso aparente parece residir no aumento do narcisismo no mundo ocidental. Resta saber se nos devemos preocupar seriamente com o mesmo ou se estamos, somente, a viver um “novo normal”.
Engordar o ego desde pequenino
A ideia de que o narcisismo não só está a aumentar descontroladamente, como está a tomar a forma de uma epidemia está bem expressa num livro, publicado em 2009, intitulado exatamente “The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement” e escrito em co-autoria por Jean Twenge, doutorada em Psicologia, professora na Universidade de San Diego e autora do best-seller “Generation Me” e por W. Keith Campbell, também doutorado em Psicologia, docente na Universidade da Georgia e considerado como um dos maiores especialistas neste transtorno comportamental.
mulheres jovens palestinos tomar selfies durante confrontos com as forças de segurança de Israel na sequência de uma marcha contra a confiscação de terras da Palestina em 15 de abril de 2016 na vila do banco ocidental de Nabi Saleh perto de Ramallah .
Palestiniana tira uma selfie no meio de confrontos com as forças de segurança de Israel
O livro, que retrata esta “distúrbio” como uma praga, avaliou 37 mil estudantes universitários e concluiu que os traços de personalidade narcísica estão a aumentar de uma forma tão rápida quanto os níveis de obesidade (em mais de 50% desde 1980), sendo esta uma das razões que levou os autores a considerarem o narcisismo como uma “doença epidémica”, numa espécie de “egos demasiado gordos”. O livro, que gerou bastante polémica e descrença q.b. por parte da comunidade académica –ao comparar décadas de resultados de testes de personalidade, Twenge concluiu que as gerações mais novas - nomeadamente a Y - são abusivamente privilegiadas, obcecadas por si mesmas e mal preparadas para a vida real – contribuiu, contudo, para estimular, ainda mais , o debate sobre o narcisismo.
Culpando a “cultura americana da autoestima exacerbada”, na qual todos os pais se esforçam por assegurar que as suas crias são “especiais” e cujos sentimentos de valor individual e “único” são considerados como pré-requisitos para o sucesso e não o resultado do mesmo, os autores desmontam os mitos prevalecentes que parecem indicar uma tolerância e até um encorajamento social do narcisismo: a de que este é um mecanismo próprio de uma autoestima elevada, ou, ao invés, de uma autoestima reduzida, de que um pouco de narcisismo é saudável e não faz mal a ninguém, de que os narcisistas são, na verdade, “superiores” e mais facilmente atingem o “sucesso” ou, e voltando ao anúncio que abriu este texto, de que temos de nos amar a nós próprios, em primeiríssimo lugar, para sermos capazes de amar os outros.
Tudo isto está presente na nossa cultura, defendem, e começa de imediato na tenra infância – parece que comprar t-shirts estampadas com a palavra “princesa” ou o seu correspondente masculino não constitui ação abonatória para os pais modernos. Para os dois psicólogos, as crianças de hoje crescem num mundo de aceitação “normal” de comportamentos e valores narcisistas, sendo que são muitos os pais e educadores que se esforçam por convencer os filhos de que estes são únicos e especiais, elogiando-os a toda a hora, satisfazendo todos os seus caprichos e conferindo-lhes grandes doses de poder.
crianças que cresceram a sentirem-se mais especiais do que os seus pares, acabam por se transformar em adultos que esperam, simplesmente, atingir o “sucesso” fácil e rapidamente – em conjunto com a fama e com o dinheiro que lhe é inerente
Ora, e de acordo com Twenge e Campbell, incutir nas crianças este sentimento de unicidade nada mais é do que narcisismo puro e o mesmo chega a situações tão ridículas quanto o facto de 223 crianças nascidas na Califórnia nos anos 90 terem sido batizadas como Única(s), de existirem estabelecimentos do ensino pré-escolar que instituem o”Mês do Tudo Tem a Ver Comigo”, de alguns clubes de desporto infantil terem acabado com os resultados nos jogos, para não amolgarem os egos dos perdedores ou, no extremo oposto, de oferecerem troféus a todos os miúdos, só porque estão numa equipa. E, muito por causa disso, são também cada vez mais os estudos que comprovam que as crianças que cresceram a sentirem-se mais especiais do que os seus pares, acabam por se transformar em adultos que esperam, simplesmente, atingir o “sucesso” fácil e rapidamente – em conjunto com a fama e com o dinheiro que lhe é inerente – que se ofendem à mínima afronta relativamente à sua suposta superioridade e que, de forma rotineira, se consideram a exceção de qualquer que seja a regra.
Narciso, Freud, Ayn Rand, Greenspan, Breivick e Lance Armstrong?
Mais recente, num registo diferente, mas com algumas temáticas em comum, é o livro “The Life of I: The New Culture of Narcissism”, publicado em 2014 por Anne Manne, jornalista australiana e filósofa social, que cita igualmente um corpo crescente de pesquisa que demonstra o aumento do culto do narcisismo nos países ocidentais. Por exemplo, e tendo mais uma vez os estudantes universitários dos Estados Unidos como universo privilegiado de estudo, a autora garante que são cada vez mais os jovens que elegem a fama e a fortuna como os seus principais objetivos de vida e não, por exemplo, o bom caráter e o bem que faz fazer bem aos outros, mais consentâneos com as gerações mais velhas. Para a jornalista, o ‘umbiguismo’ atual está, também, a tornar-se num “novo normal”. E, em sintonia com Twenge e Campbell, também Anne Manne concorda que o narcisismo é estimulado por pais indulgentes, que não sabem estabelecer limites e que incutem nos filhos um sentimento de autoestima exagerado.
Apesar de o narcisismo ser terreno propício ao estudo por parte de psicólogos e psiquiatras, esta jornalista, mas também filósofa social, sempre se interessou por este “distúrbio de personalidade” e, no livro em causa, não só revisita as ideias de autoridades na matéria, como por exemplo as de Sigmund Freud, pioneiro no estudo sobre a temática, como dá exemplos de criaturas atuais que tão bem vestem as roupagens de Narciso - o jovem caçador que se apaixonou pelo seu reflexo – e que haveria de dar o nome, curiosamente pedido emprestado por Otto Frank, um colega do próprio pai da psicanálise, a todos aqueles que sentem “um apetite enorme e constante de serem admirados, que revelam sentimentos de superioridade, uma predisposição para a exploração, impulsividade e ausência de empatia e, talvez mais importante que tudo, uma agressividade retaliatória quando sentem que o seu ego inflacionado é, de alguma forma, ameaçado”.
Na sua cruzada de rever o trabalho de muitos investigadores académicos, entre outros apaixonados pela temática, Anne Manne garante que o narcisismo está em genuíno crescimento um pouco por todo o lado e, mais preocupante que tudo o resto, são os seus impactos tóxicos na comunidade, na cultura, na política, na economia e até no ambiente. Para a autora, a ideologia prevalecente do neoliberalismo alimenta a cultura do narcisismo e as consequências deste repasto são globais. Apontando o dedo às crenças e práticas construídas em torno da idolatria dos mercados e da glorificação da ganância, é na cultura do auto interesse, particularmente em voga a partir dos anos de 1980, que os comportamentos narcisistas encontraram terreno fácil para crescer e se multiplicarem.
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Para exemplificar as múltiplas dimensões narcísicas do neoliberalismo, a jornalista australiana utiliza como exemplo uma das mais influentes defensoras do individualismo no século XX, a escritora, dramaturga e filósofa norte-americana (apesar de nascida e educada na Rússia) Ayn Rand. Tendo como base a filosofia aristotélica, Ayn Rand é a fundadora do objetivismo, que elege a razão e a lógica como a única forma de observar o mundo, ao mesmo tempo que defende fervorosamente que o indivíduo tem o direito de viver por amor a si mesmo e sem ser obrigado a se sacrificar pelos outros. Admiradora do egoísmo ético, do capitalismo do laissez faire, e do sistema que definiu baseado no reconhecimento dos direitos individuais, a filósofa que condenava, entre variadíssimas coisas, o altruísmo, haveria de servir de inspiração a muitos americanos, contando, no seu círculo íntimo de amigos e admiradores, com um acólito muito especial: o economista Alan Greenspan. Aquele que viria a ser presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos é, para Anne Manne (e não só), um dos grandes responsáveis pelos fundamentos da crise financeira global de 2008.
Um outro exemplo de como o narcisismo tem consequências e impactos globais negativos está relacionado com as alterações climáticas. Para a autora, o ceticismo persistente no que respeita ao aquecimento global é, também, um claro sintoma de um narcisismo crescente. A nível individual, a relutância em se alterar comportamentos em prol de um bem maior ou a inexistência de qualquer preocupação face ao planeta que iremos deixar às gerações futuras constituem sintomas claros de um narcisismo crescente. E, é claro, a nível político e económico, os interesses instalados da indústria dos combustíveis fósseis e o amor sem limites aos lucros de curto prazo encaixam igualmente bem nas características do mesmo.
Em “The Life of I”, e entre outros exemplos bem conhecidos, a autora traça o perfil do assassino em massa Anders Breivick, mas também do famoso ciclista americano, entretanto caído em desgraça, Lance Armstrong. No primeiro caso e recordando que apesar do termo “narcisista” não ter, na linguagem popular, uma conotação assim tão negativa, Anne Manne recorda que o mesmo é reconhecido como uma desordem da personalidade que inclui traços patológicos.
Recordando a publicação online do manifesto de “auto grandeza” com 1500 páginas escritas pelo assassino norueguês, a 22 de Julho de 2011, dia do massacre dos 69 jovens na ilha de na ilha de Utoya, o qual expressava a superioridade do mesmo face ao ódio visceral que manifestava contra muçulmanos, feministas ou multiculturalistas, e que acabou por resultar na morte de 77 pessoas no total, a autora elenca um conjunto de traços facilmente reconhecíveis nos narcisistas mais “psicologicamente desordenados”: a ideia de grandiosidade, a obsessão com a aparência, o culto da superioridade e a total ausência de empatia face aos demais.
Já o caso de Lance Armstrong é apresentado como um bom exemplo do “narcisismo no desporto”, acompanhado de corrupção e erosões de caráter, sendo que o que a autora pretende sublinhar é a ideia de que “não importa quem está no caminho, nem o como se chega lá, o que interessa é ganhar”. Ao questionar se a corrosão do caráter no desporto é emblemática de um sistema social mais alargado, Manne leva-nos a perguntar a nós mesmos se o narcisismo não é, afinal, o “caráter” dos nossos tempos ou o tal novo normal que muitos parecem defender.
Importante sublinhar é o facto de o narcisismo não constituir, simplesmente, “egoísmo ou vaidade exacerbados”. Citando Christopher Lasch, autor do livro “The Culture of Narcissism”, publicado em 1979, Manne recorda o que Lasch descreveu há quatro décadas e que tão bem parece encaixar em muitas das caracterizações que comummente são aplicadas à tão falada geração Y da atualidade: “superficialidade, incapacidade para o compromisso, uma autopreocupação alimentada pela ‘sociedade do espetáculo’ na qual as pessoas se comportam como ‘se as suas ações estivessem a ser gravadas e simultaneamente transmitidas a uma audiência invisível’”.
O que parece indicar que Lasch era um visionário ou não vivêssemos nós hoje num permanente espetáculo, ao vivo e em transmissão contínua, não só protagonizado por uma praga de Kardashians, mas também por especialistas em selfies, egocêntricos palradores e vaidosos em excesso que, a todo o momento, nos querem convencer de que não existe vida melhor que a deles.
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Uma pesquisa rápida no Google e chovem estatísticas, acompanhadas de inúmeros sites que “ensinam” a obter os melhores resultados de exposição possível comparativamente aos nossos pares. Mas fiquemo-nos pelos números: os utilizadores do Instagram partilham cerca de 70 milhões de fotos por dia; no Facebook, o upload de fotos chega aos 300 milhões diários, em cada 60 segundos são atualizados 293 mil estados, “postados” 3,5 mil milhões de likes num só dia e todos os dias são cerca de 1,4 mil milhões de pessoas – qualquer coisa como 20% da população mundial – que publicam detalhes da sua vida na ainda mãe de todas a redes; por último e no Twitter, 310 milhões de utilizadores enviam, diariamente, 500 milhões de tweets, 83% dos líderes mundiais têm aqui conta e Caitlyn Jenner foi a personalidade que mais rapidamente atingiu um milhão de seguidores (em apenas quatro horas).
todos os dias são cerca de 1,4 mil milhões de pessoas – qualquer coisa como 20% da população mundial – que publicam detalhes da sua vida na ainda mãe de todas a redes
Que terreno mais fértil do que este para acolher narcisistas e, consequentemente, para alimentar dezenas de estudos sobre a ligação direta entre o aumento do narcisismo e as redes sociais? Apesar de não existir um consenso generalizado sobre o fenómeno, inúmeras investigações têm sido levadas a cabo para comprovar que o aumento do Distúrbio da Personalidade Narcisista (ou transtorno, ou desordem, dependendo dos autores) está intrinsecamente relacionado com a ubiquidade dos media sociais. Comportamentos como as tentativas obsessivas de atrair o maior número possível de seguidores, a tendência exagerada de expor os pormenores da vida privada (desde que positivos, é claro) e a necessidade de se projetar uma imagem perfeita continuamente, têm sido descritos pelos investigadores como exemplos inequívocos da exibição de traços de personalidade narcisista nas redes sociais.
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Curioso é, contudo, o facto de em 1987 – e uns bons anos antes do boom da Internet – os psicólogos Hazel Marcus e Paula Nurius terem defendido a existência, em cada um de nós, de dois “eus”: um “eu agora” e um “eu possível”. Pois bem, seria então a Internet a possibilitar a qualquer pessoa optar pelo seu “eu possível” ou, pelo menos, apresentar uma versão desse “eu” tão desejado.
Num excelente artigo publicado pelo The New York Times, intitulado “Narcissism is Increasing. So You’re Not So Special”, o autor que o assina recorda o filósofo francês Jean-Jacques Rousseu e os seus escritos sobre o amour-propre, uma espécie de auto-amor baseado nas opiniões dos outros. Considerando-o como não natural e não saudável, Rousseau acreditava que a comparação social arbitrária levava as pessoas a desperdiçarem as suas vidas tentando parecer e soar atrativos para os demais. E isso, como sublinha o autor, é uma boa forma de descrever esta aparente epidemia que tanto debate está a causar. Como escreve “na mitologia grega, Narciso não se apaixonou por si mesmo, mas sim pelo seu reflexo”. E se transpuséssemos o mito grego para a sua versão moderna, “Narciso iria apaixonar-se pelo seu próprio feed no Instagram e morreria à fome devido à contagem compulsiva do número dos seus seguidores”.
Ora, comportamentos compulsivos desta natureza são comuns em muitas pessoas que conhecemos, em particular nos casos em que uma selfie “perfeita” é publicada e existe uma verificação contínua do número de likes que a mesma vai gerando. Em linha com algumas das investigações que negam a relação direta entre o aumento do narcisismo e a utilização dos media sociais, o autor do artigo defende que não é o Instagram, ou os seus similares, que criam um narcisista, mas e tal como defendem também outros estudiosos do assunto, as redes sociais podem, sim, agir como um “acelerador”desta desordem, na medida em que oferecem a plataforma ideal para facilitar aquilo que os psicólogos denominam como o “exibicionismo da grandiosidade”.
De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais, nos Estados Unidos, o narcisismo é uma patologia bem definida, sendo claro que os narcisistas procuram os locais ideias nos quais podem ganhar a sua tão necessária audiência. E, no que a esta necessidade diz respeito, são as plataformas online que melhor palco oferecem para os que sentem uma urgência contínua de se autopromover, comportamentos estes exemplificados pela atualização do “estado” a cada cinco minutos, com a publicação frequente de fotografias de si mesmos, das festas que frequentam, das viagens que fazem, dos restaurantes exóticos que experimentam, dos feitos das celebridades que admiram, e de citações e mottos que servem para se auto glorificar.
Face à multiplicação de estudos sobre o aumento de narcisismo nas plataformas sociais, a versão online da famosa revista Psychology Today, lançada em 1967, efetuou um excelente trabalho de compilação dos mais importantes, sendo que alguns são merecedores de especial atenção. De acrescentar ainda que a maioria destes estudos tem como “alvo “ principal os representantes da geração Y, apesar de, em alguns casos, as conclusões baterem também nos egos dos mais “adultos”.
"o problema é que o Facebook oferece-nos uma visão limitada das vidas dos nossos amigos, sendo que essa mesma visão tende a ser irrealista" – e exibida sempre como muito mais positiva do que na verdade é
Apresentado na convenção anual da American Psychological Association, um estudo da responsabilidade de Larry Rosen, da California State University, demonstrou que os jovens que mais tempos passam no Facebook têm uma maior probabilidade de exibir tendências narcisistas, em conjunto com outros problemas comportamentais. O psicólogo em causa afirma também que os efeitos negativos relacionados com uma utilização abusiva dos media sociais incluem uma maior propensão para a vaidade, para comportamentos agressivos e antissociais, e que estes excessos podem resultar numa performance académica mais pobre.
Por seu turno, Dilney Gonçalves, da IE Business School em Madrid, conduziu um estudo que argumenta o que há muito é comummente sabido: a tendência que todos temos em avaliar o nosso sucesso na vida comparando-o com o dos outros. Como escreve “o problema é que o Facebook oferece-nos uma visão limitada das vidas dos nossos amigos, sendo que essa mesma visão tende a ser irrealista” – e exibida sempre como muito mais positiva do que na verdade é. O investigador acrescenta ainda que quanto mais amigos se tem, maior é a propensão para se passar o dia a ler, invejosamente, sobre as férias paradisíacas de um, a nova e gira namorada de outro ou a promoção fantástica que um outro ainda teve no seu já fantástico emprego.
Já os investigadores Laura Buffardi e W. Keith Campbell (o co-autor do livro “The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement”) acima mencionado, levaram a cabo também um estudo, publicado no Personality and Social Psychology Bulletin, que comprova dados já previamente existentes. Como explica Buffardi, “concluímos que as pessoas mais narcisistas utilizam o Facebook com vista à sua autopromoção e de uma forma que pode ser facilmente identificada pelos outros”. O número substancial de “amigos” e a forma como os posts aparecem nas suas páginas correlacionam-se facilmente com as características identificadas nos comportamentos narcisistas, garantem ainda os dois psicólogos. E, se por um lado, sabemos que o Facebook se transformou numa parte normal da vida social – mesmo que virtual – de jovens e adultos, por outro, “os narcisistas usam-no exatamente da mesma forma com que se relacionam com os demais na vida real – para a autopromoção e com um especial ênfase na quantidade em detrimento da qualidade”.
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Um outro estudo, da responsabilidade de Elliot Panek, da Universidade do Michigan, optou por analisar não só o Facebook, mas também o Twitter. De acordo com Panek, “através do Twitter, os jovens tentam alargar os seus círculos sociais e transmitir as suas opiniões”, sendo que ao longo do processo sobrestimam também o valor e importância das suas opiniões. Todavia, e de acordo com as conclusões do estudo, o resultado mais interessante cifra-se no facto de “entre os jovens adultos e estudantes universitários, termos concluído que aqueles que resultados mais expressivos tiveram para certas tipologias de narcisismo são mais adeptos do Twitter, ao passo que entre os adultos de meia-idade, os narcisistas elegem antes o Facebook para os seus posts de autopromoção”.
Muitos mais exemplos poderiam ser dados para ilustrar a ideia de que as redes sociais atraem os narcisistas como as abelhas são atraídas pelo pólen e, citando mais uma vez o trabalho de Laura Buffadi, existe um consenso alargado que “os narcisistas utilizam o Facebook e outras redes sociais porque acreditam que os outros estão realmente interessados nas suas vidas, ao mesmo tempo que é seu desejo inato quererem que os outros saibam tudo sobre as suas vidas também”. Consensual é também a ideia de que as redes sociais encorajam a autopromoção, na medida em que são os seus utilizadores que geram os conteúdos que as alimentam. Keith Campbell explica ainda que muitas pessoas utilizam estes meios para se “mostrarem importantes, se sentirem especiais e para ganharem atenção, status e autoestima”. Mas o problema, e mais uma vez, reside no facto de quase toda a gente que tem esta necessidade excessiva de mostrar o quão perfeita é a sua vida apresentar retratos irrealistas de si mesmos. Tal como as pessoas selecionam as suas melhores fotos para constarem no seu perfil (pelo menos, uma grande maioria), a tendência para povoarem os seus newsfeeds com os mais atraentes pedaços das suas vidas é exatamente a mesma.
A culpa é do Facebook?
Kim Kardashian e Kanye West num evento social: um casal que está e faz por estar sempre no centro das atenções
Mas se o Facebook, e seus similares, são indubitavelmente plataformas por excelência para muitos narcisistas, é impossível afirmar taxativamente que são as redes sociais as “culpadas” deste “pico narcísico”. E como afirma Shawn Bergman , um reconhecido psicólogo que estuda a geração Y, “existe uma significativa quantidade de pesquisa psicológica que demonstra que a personalidade de cada um de nós está quase completamente ‘estabelecida’ aos 7 anos de idade”. Assim, e dado que a política do próprio Facebook e de outras redes conexas não permite o registo de utilizadores com idades inferiores a 13 anos, “os traços de personalidade dos seus utilizadores estão já bem enraizados na altura em que as visitam pela primeira vez”.
Será que isso significa que, afinal, são os pais indulgentes os culpados desta pretensa epidemia? Não sabemos. Mas e já agora, aceite o convite para testar o seu nível de narcisismo. A não ser que se sinta demasiado especial para se dar a este trabalho.
Nenhum país sobrevive se apenas puder optar entre velhas ilusões e novas privações. Mas é com isso que governo e oposição de direita estão a confrontar o país.
Se o povo se alimentasse de narrativas éramos o país mais obeso do mundo. E se as narrativas significassem prosperidade seríamos o farol das civilizações.
Tudo, hoje, está reduzido a narrativas. Não há confronto de propostas políticas. Há uma guerra de narrativas. Não há governação nem alternativas. Há argumentários que têm como único objectivo sacudir a água do respectivo capote.
A indigência reinante tem um problema: as narrativas colocam-nos sempre a discutir o passado e não se vê ninguém preocupado com o futuro e com os caminhos que possam resgatar-nos da enrascada permanente em que nos vamos acostumando a viver.
O mais largo que os agentes políticos conseguem ver são três meses: como vai ser o Orçamento para 2017? Vai ter mais austeridade? Como vai ser apresentado a Bruxelas? Antes ou ao mesmo tempo que entra no Parlamento? E como se convence, de uma assentada, Wolfgang Schauble, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa?
Certo, certo é que, aconteça o que acontecer, por alturas do Natal teremos em cena duas narrativas alternativas sobre o que entretanto se passar.
Desde o famosíssimo PEC IV que as narrativas tomaram o centro do palco político. A culpa foi tua. Não, foi tua. A esquerda atirou-nos para o “buraco”. A direita está a escavar o “buraco”. Uns porque chamaram a troika depois de levarem o país à bancarota. Outros porque foram além da troika.
Não há paciência. Banif, Novo Banco, Caixa Geral de Depósitos, sanções de Bruxelas, crescimento económico, desemprego, investimento, exportações, consumo privado, execução orçamental, défice público, dívida, credibilidade externa, emigração, tudo, mas rigorosamente tudo, está reduzido a longas disputas sobre culpados e graus de culpa.
Claro que toda a esta discussão é estéril de qualquer proveito para o país. Primeiro porque o rigor dos factos é, por regra, a primeira vítima neste tipo de algazarras. Depois porque a honestidade intelectual de alguns dos principais protagonistas partiu há muito para parte incerta, se é que alguma vez ali habitou.
E ainda que isto fosse conduzido com o mínimo de elevação, teria apenas o valor de uma autópsia: com o mal irremediavelmente consumado, resta apurar causas. Só para que conste.
Este ambiente podre tomou conta da prática política porque as coisas estão a correr mal. Correm mal ao governo, herdeiro legítimo da delinquência orçamental socialista. E tudo servirá para justificá-lo. Será culpa da herança, do estado da banca, do Brexit, de Bruxelas, da economia internacional, dos mercados, das agências de rating ou dos empresários que estão contra esta solução política. Será culpa de tudo menos da acção e das opções do próprio governo, claro está.
Este é mais um projecto de comunicação do que de governação, à procura de criar na generalidade da população uma sensação de melhoria enquanto se esperam eleições.
Do lado da oposição a prática não é melhor. Tudo também preso a narrativas, uma tentativa de ditar posições apenas para que fiquem registadas em acta. Mas não se vê ali a construção de qualquer alternativa estruturada que vá além do “a culpa é do governo”.
Nenhum país sobrevive se apenas puder optar entre velhas ilusões e novas privações. Mas é com isso que governo e oposição de direita estão a confrontar o país.
Isto está a correr mal ao governo mas também à oposição. Mas sobretudo corre mal ao país, que não vê como vamos sair daqui. E não há guionistas que consigam fazer disto uma boa narrativa porque neste campeonato não há vitórias morais.
Outras leituras
Orban e Trump, ambos muito bem acompanhados um pelo outro. Nada de bom se pode esperar quando o populismo e o radicalismo assumem os comandos.
Tudo indica que vem aí multa para Portugal, embora relativamente leve. O Governo já anunciou que vai processar a Comissão Europeia. Chegará para mostrar serviço aos parceiros que apoiam o Governo ou o Bloco cumpre a ameaça e propõe formalmente um referendo sobre a Europa?
Daqui até novembro vai ocorrer-nos muitas vezes que deveríamos poder participar e votar nas eleições principais nos Estados Unidos da América. Faria sentido não ficarmos à margem na escolha daqueles cujas decisões afetam o nosso modo de vida, por exemplo ao avançarem para guerras e invasões que desencadeiam trágicas consequências, como ficou despoletado no Iraque.
Se os europeus também votassem a presidência dos EUA, apesar da vaga populista que por aí anda, Hillary Clinton teria assegurado que em novembro ficaria Madam President e nós ficaríamos menos inquietos. Mas nós não temos esse voto e, tal como as coisas estão, não se pode excluir um cenário de President Trump na Casa Branca de Washington. Perturba imaginar o planeta liderado por gente como Trump, Putin e Erdogan – só faltaria juntar Marine Le Pen, mas é de confiar que os franceses não lhe entreguem o poder nas presidenciais de maio do ano que vem. O que é que explica a adesão de tantos americanos à campanha de Trump?
Um livro agora publicado, Hillbilly Elegy: A Memoir of A Family and Culture in Crisis, escrita autobiográfica de J.D. Vance, ajuda-nos a entender. Ele explica-nos, e consegue fazê-lo com humor, o declínio do sonho americano num lugar da América lá de dentro. Através da história de uma tradicional família branca cujos avós desceram da pobre pacatez rural na cordilheira dos Apalches para o trabalho nas então, a meio do século XX, pujantes fábricas do Rust Belt, a cintura da ferrugem nas periferias urbanas do Ohio. Viveram a ilusão de um futuro próspero mas, com a recessão dos anos 80, essa indústria colapsou, muitas fábricas fecharam e as comunidades fragmentaram-se. Tudo viria a agravar-se muito no começo deste século e com a depressão de 2007. O desemprego disparou, as falências sucederam-se, a frustração de quase todos atirou muitos para o limbo. Até a religião tradicional perdeu a influência que tinha e muitos procuraram refúgio em drogas. O que o livro nos mostra é como irrompeu e cresceu essa decadência social e a crise cultural e psicológica que afeta milhões de pessoas assim desenraizadas. É o drama da falta de dinheiro mas, ainda mais, a sensação de impotência de uma vasta população branca alarmada com o declínio do sonho e o assalto do pesadelo.
Trump, “The Donald”, aposta nesta gente branca frustrada para com o voto dela conseguir a eleição em novembro. Estrela da tele-realidade, conseguiu fazer quebrar a coluna vertebral do Partido Republicano. Explora os medos das pessoas, exacerba sentimentos identitários nesta América onde a população branca está a tornar-se minoria e um país que funciona com a força de trabalho dos imigrantes. Trump usa uma estratégia de comunicação assente na manipulação dos factos e da verdade. Atiça o descontentamento populista.
As mentiras de Trump são evidentes mas há uma grande massa de eleitores que parece não querer reconhecê-las. Por exemplo: Trump denuncia um problema de imigração ilegal tão grave que o leva a querer colocar um muro para barrar a entrada nos EUA de “gente violenta” oriunda do México e de outros países da América Latina. No entanto, de facto, como atesta a Customs and Protection Border Agency, a imigração ilegal nos EUA está no nível mais reduzido desde os anos 1960. Baixa continuamente desde 2008 e a razão está bem à vista: a crise económica que cortou as esperanças e as oportunidades.
Trump também explora a sensação de insegurança física, perante roubos, violações e assassinatos. Mas os números oficiais do FBI mostram a queda forte da criminalidade violenta em todo o país, fica por um terço dos níveis registados nos anos 1970. O fenómeno que cresce nos EUA é o das atrocidades em massa, com dimensão de facto alarmante: só no ano passado, 372 casos em que o número de mortos em cada incidente foi superior a quatro. É uma tragédia para a qual contribui a facilidade de acesso a armas de fogo nos EUA. Mas esse é um problema para o qual “The Donald” não aponta soluções.
O rendimento da classe média dos EUA está estagnado ou em retrocesso há uma década. Mas Trump também não mostra soluções para inverter esse quadro preocupante que se repercute na Europa. Parece evidente que a economia americana e o emprego melhorou nestes anos de Obama, mas ao egomaníaco Trump só interessa a desgraça.
Viu-se na semana passada, na Convenção Republicana, em Cleveland, como Trump, em vez de propor esperança (como incitava Reagan, como tentou Obama, ambos sempre com mensagens aspiracionais positivas), explora o máximo negativismo político, o desdém e o ódio. O ódio a Hillary, o rancor contra o “establishment” que diz ser representado por Hillary. Especialista em designações de desprezo, Trump rebatizou-a “Crooked Hillary”, ou seja, “Hillary a Desonesta”. Trump quer transformar os medos, as frustrações e os ódios em votos.
Hillary tem nesta semana uma oportunidade essencial para combater essa tormenta de Trump na América ultra-polarizada. Depois de na semana passada o palco ter sido para Trump na Convenção Republicana, em Cleveland, agora são os quatro dias de Convenção Democrata, em Filadélfia. É a oportunidade para fazer pontes e lançar compromissos poderosos de esperança cultural e política. Não vai ser fácil a Hillary conseguir galvanizar o eleitorado. Mas é vital que seja capaz de entusiasmar com uma visão cosmopolita, otimista e tolerante da América.
TAMBÉM A TER EM CONTA:
Erdogan está imparável a sufocar a democracia. Bem avisa Baltasar Garzón. O sultanato turco é o último dos desastres que área balcânica e mediterrânea atravessa.