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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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A verdade e outras mentiras

 

Por: Rute Sousa Vasco

 

Antes do Twitter e mesmo no princípio do Facebook, o programa de jornalismo com mais pergaminhos na América levou para o ar uma reportagem sobre o passado militar de George W. Bush. O programa chamava-se 60 Minutes, era então conduzido por Dan Rather e a reportagem foi emitida nas vésperas das eleições que opuseram Bush a Kerry, em 2004. Dan Rather, a sua produtora Mary Mapes e uma equipa de jornalistas do programa investigaram os factos referentes ao período em que George W. Bush prestou serviço militar e sobre a forma como alegadamente teria conseguido escapar à guerra do Vietname.

 

A reportagem foi para o ar na CBS em plena pré-campanha das eleições presidenciais de 2004 e tinha matéria de facto para poder influenciar o desfecho dessas mesmas eleições – um presidente que fugiu à guerra e que levou, anos depois, milhares de americanos para outra guerra é tudo menos um tipo simpático, além de outras idiossincrasias próprias da honra e glória ianque. Mas, acabou, na realidade, por simplesmente destruir a carreira de um dos mais conceituados jornalistas, da sua produtora e por prejudicar severamente todos os envolvidos na investigação jornalística.

Tudo começou com o ataque de alguns bloggers à reportagem, evoluiu para uma verdadeira caça às bruxas, quer a quem tinha dado testemunho aos jornalistas, quer aos próprios jornalistas, e acabou com Dan Rather, o rosto do 60 Minutes, a pedir desculpa, assumindo que a sua equipa tinha sido induzida em erro. É uma história minuciosa sobre factos, processos de trabalho em jornalismo e também sobre erros que se cometem em jornalismo.

A CBS contratou um grande escritório de advogados para escrutinar todos os envolvidos - uma espécie de comissão parlamentar de inquérito mas com consequências para os visados. Dan Rather abandonou o 60 Minutes, Mary Mapes não voltou a trabalhar em jornalismo – e já lá vão 12 anos – Bush foi reeleito e a CBS manteve o seu estatuto de empresa de media que influencia e é influenciada pelos políticos.

 

«Da mesma forma que Os Homens do Presidente não era sobre Nixon, Truth não é sobre George W. Bush (…) É muito mais sobre a interseção entre a América corporativa, o sistema político e os media. E também sobre o processo de compor uma reportagem. Creio que a única razão para voltar atrás no tempo, por mais recente que o ano de 2004 possa parecer, é se tem relevância ou interesse hoje, e eu creio que ainda há muitas questões acerca da forma como recebemos as notícias que não foram realmente publicadas. Creio que ainda não processámos na realidade a diferença entre factos e opiniões, portanto parece-me um filme bastante relevante e pertinente». Isto foi o que Cate Blanchett, que interpreta Mary Mapes no filme "Truth", disse em entrevista ao Notícias Magazine a propósito da história que protagoniza.

E, à parte da discussão sobre os factos que suportam o filme, esta é a discussão que interessa mais do que nunca: o que é hoje uma notícia, como consumimos as notícias, a diferença entre factos e opinião e, por inerência, a diferença entre o trabalho de fazer notícias e o hobby de produzir comentário avulso, seja em que meio ou rede social for.

 

Só essa distinção permite que passemos à discussão seguinte e que é sobre se precisamos de jornalismo e de jornalistas e, se sim, como deve esse trabalho ser realizado numa era que o conteúdo nos explode nas mãos e nos ecrãs a cada segundo. Só para nos situarmos: há imensos conteúdos e há poucas notícias, uma ‘história’ ou ‘estória’ não é forçosamente jornalismo (nem tem de ser) e optimizar audiências com técnicas de engadgment, analytics e gurus que ensinam quais as palavras certas a colocar num título também não é igual a jornalismo. Jornalismo tem implícita essa coisa fora de moda que é a ideia de serviço público e, contrariamente ao que muitos pensam, não é a profissão de quem tirou Comunicação Social ou de quem escreve posts a toda a hora. É a profissão de quem está disposto a comprometer-se com um conjunto de regras e de quem não se esquece, mesmo quando trabalha matérias mais ligeiras, que notícia é, em muitos dos casos, aquilo que alguém não quer que se saiba e que só importante se afectar a vida de terceiros. Senão é só coscuvilhice e má língua e disso estão as caixas de comentários assinadas por ‘anónimos’ e nick names cheias.

 

Para se ser jornalista hoje é importante perceber o negócio de media? Na minha opinião, é indispensável e os jornalistas, além de parte interessada, estão especialmente bem posicionados para entender o que está em jogo e promover a discussão pública. E sim, implica perceber de tecnologia, implica perceber de publicidade e de receitas obtidas com o trabalho jornalístico, implica saber ler indicadores e implica não ter medo de experimentar novas formas de fazer jornalismo. Mas, serve de muito pouco, se não se souber para que serve o jornalismo.

 

Para quem se interessar pelo tema, recomendo a leitura do livro “Salvar os Media”, escrito por Julia Cagé, professora assistente de Economia no Institut D’Études Politiques de Paris, e com prefácio do célebre Thomas Piketty. Que escreve a certo ponto “cada um de nós convirá que um jornal vivo e maltratado vale porventura mais que um jornal morto e respeitado”. Uma frase com um quê de Lili Caneças mas com bastante mais substância. Deste livro, importa reter várias outras pistas de discussão e alguns dados objectivos. Como, por exemplo, o valor das receitas de todos – todos – os jornais americanos versus as receitas de uma só empresa, seja o Google ou o Facebook. Ou sobre a vertigem do instantâneo e o valor que tem para os leitores. “Os jornais despendem uma crescente energia a publicar o mais depressa possível despachos de agências nos seus sítios na internet como se a capacidade de resposta no copia-e-cola tivesse mais importância que a recolha de informação original”.

 

A história de Dan Rather e Mary Mapes é sobre informação original e relevante. O filme resulta da adaptação do livro de memórias de Mary Mapes, Truth and Duty: The Press, the President, and the Privilege of Power e tem vários momentos de antologia. Deixo-vos com um. Mike Smith, um dos jornalistas da equipa do 60 Minutes, pergunta a Dan Rather por que se tornou jornalista. “Curiosidade”, é a resposta. Dan Rather devolve a pergunta a Mike Smith: “E tu, porque te tornaste jornalista?”. “Por tua causa”, é a resposta.

 

Tenham um bom fim-de-semana

 

 

Outras sugestões:

 

 

Para nos mantermos sintonizados no tema. Os jornalistas deixaram ontem Pablo Iglesias, a falar sozinho, depois do líder do Podemos ter feito um conjunto de acusações às alegadas motivações e dependências da classe jornalística. Nos comentários de redes sociais e das notícias percebe-se que muitos leitores concordam com o politico – precisamente por razões que também passam pela análise ao filme “Truth” e que ultrapassam em larga escala apenas os jornalistas. O que só reforça a importância de discutirmos quem escrutina os media, mas, tão ou mais importante, se também se escrutina todas as opiniões elevadas a factos.

 

E para aligeirar a sexta-feira, um belo trabalho da BBC sobre o clube-conto-de-fadas que está à beira de ganhar o campeonato inglês de futebol, o Leicester.

Começa assim: "Lie-kester."

"No, Leicester."

"Less-ester?"

"No, Leicester. As in Lester."

"Oh. Why is it pronounced like that?"

 

 

(*) Onde se lê agora ecrãs estava numa primeira versão cabeças. 

(...) Só essa distinção permite que passemos à discussão seguinte e que é sobre se precisamos de jornalismo e de jornalistas e, se sim, como deve esse trabalho ser realizado numa era que o conteúdo nos explode nas mãos e nos ecrãs a cada segundo.

publicado às 11:38

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