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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Na tua multidão ou na minha?

Por: Rute Sousa Vasco

Esta semana começa o campeonato de futebol. Mas, mesmo que o que se segue lhe pareça vagamente familiar com o pior do futebol, não tem nada a ver. Até porque para os verdadeiros fãs, o futebol é o melhor pretexto para se ser um selvagem, mas sempre com princípios. Que é exactamente o que não se passa com os hooligans, no futebol, na política e no governo do mundo.

 

As multidões sempre me impressionaram e quase sempre pela negativa. Na presença de muitas pessoas, o indivíduo tende a fundir-se no colectivo e há um efeito de contágio imprevisível que me assusta. Os políticos adoram multidões – só isso explica o fascínio da popular arruada, coisa que qualquer ser humano no estado normal dispensaria. Alguns políticos, os mais perigosos, adoram o ecstasy das multidões – e são especialistas em elevar as suas multidões ao nível seguinte.

 

Esta semana foi notícia que Erdogan conseguiu reunir em Istambul a maior multidão de que há memória nos últimos anos. Três milhões de pessoas, estima-se. Muitas bandeiras nacionais, caras pintadas com as cores da Turquia, coros inflamados que sequenciavam as palavras de comando de quem comanda. "Se o povo quiser a pena de morte, os partidos respeitarão a sua vontade", disse Erdogan. E o povo respondeu em coro: "pena de morte!”. A pena de morte não existe na Europa, diz Erdogan. Mas, isso não significa avanço civilizacional, conclui. Porque nos Estados Unidos, na China ou no Japão existe.

 

Em multidão, não há discussão moral de certo ou de errado. Não há errado. São factos. E os factos que Erdogan exibe mostram que quem está mal são os que pensam diferente de nós. Neste caso, essa Europa fraca que tantos desprezam. Segundo a Amnistia Internacional, 140 países aboliram - por lei, ou na prática – também a pena de morte, o que contabiliza pelo menos mais 112 do que aqueles que fazem parte da União Europeia. Mas tudo isso são detalhes quando se tem um microfone na mão, se é projectado num palco e se tem um público de três milhões de fãs.

 

Que é mais ou menos o clima que Trump tem desfrutado nos seus get-together pelos Estados Unidos. Esta semana, provou que podemos esperar sempre mais dele. Começou em Wilmington, na Carolina do Norte, com o incentivo aos partidários da manutenção e posse de armas a que travem Hillary Clinton. “Hillary quer essencialmente abolir a segunda emenda, aliás, se ela puder escolher os juízes [do Supremo Tribunal] não há nada que vocês possam fazer, pessoal. Se bem que para as pessoas da segunda emenda talvez ainda exista [algo que possam fazer], não sei. Mas digo-vos, esse será um dia horrível”. Tome-se boa nota do tom: “não há nada que vocês possam fazer, pessoal”. Pessoal, multidão, gente que me segue de forma cega, surda e …ruidosa. Depois do apelo a que pessoas com armas possam travar Hillary – e Trump deixou à imaginação de todos o que pode querer dizer “travar” – o delírio continuou. Desta vez, em Fort Lauderdale, na Flórida. "Obama é o fundador do ISIS! O ISIS honra o presidente Obama. E diria que a co-fundadora é a vigarista Hillary!". E o que grita a multidão de Trump cada vez que ouve a palavra Hillary: “Lock her up” (prendam-na). Sob a bruma dos gritos da multidão, Trump apenas acena e sorri.

 

Algures em Moscovo, alguém assiste a tudo isto com um sorriso silencioso e gelado. Chama-se Vladimir Putin. Esta semana recebeu Recep Erdogan num palácio da era dos Czares, em São Petersburgo. Há dois meses, Putin e Erdogan disputavam o título de melhores inimigos. Hoje, Erdogan tem no currículo uma oposição dominada, milhares de adversários presos e mais de 240 pessoas mortas na sequência da tentativa de golpe de estado. A Europa e os Estados Unidos não gostam do que vêem – Putin diz-lhe que “todos nós queremos recomeçar o diálogo”.

 

Michael Morell trabalhou 33 anos na CIA e dirigiu a agência interinamente na qualidade de vice-diretor. Na semana passada escreveu uma coluna de opinião no New York Times em que expressava o seu apoio a Hillary Clinton a par com a sua preocupação com Donald Trump. E também aquilo que escreveu constitui um novo nível na forma como olhamos para eleições em países democráticos, e para a manutenção de um status quo nas relações internacionais. Diz Morell: "Putin explora as fraquezas de Trump, fazendo-lhe elogios. Nos Serviços de Inteligência, diríamos que Putin recrutou Trump como agente involuntário da Federação Russa".

 

O mesmo New York Times avançava, no editorial de ontem, com a possibilidade de Trump estar simplesmente a testar uma estratégia impensável em democracia. A de ganhar pelo tumulto o que já percebeu que não poderá ganhar pelo voto. “Neste momento, Mr. Trump está a perder e possivelmente isso aterroriza-o. Talvez ele não se saiba controlar ou perceber porque o deveria fazer. Ou talvez esteja apenas a satisfazer a sua necessidade ilimitada de atenção. Mas o seu comportamento nesta semana coloca ainda uma hipótese mais perturbadora. Talvez ele tenha desistido de ganhar através dos meios civis e não queira saber das consequências da sua campanha de incitação”.

 

Eu nunca gostei de multidões, foi aquilo que comecei por vos dizer.

 

Tenham um bom fim-de-semana

 

Outras sugestões:

 

São 19 minutos que valem a sua atenção. Primeiro porque é o John Oliver. E depois porque é o John Oliver a explicar porque é que o jornalismo não é apenas um problema dos jornalistas.

 

É impossível resistir a tanta beleza, graça, destreza e qualquer coisa que efectivamente faz parte do Olimpo. Chama-se Simone Biles e entrou nas nossas vidas esta semana, arrisco-me a dizer que para sempre, tal como a sua antecessora, Nadia Comaneci.

 

E esta noite há jazz na Gulbenkian e é ao ar livre e com sorte talvez tenhamos uma chuva de estrelas.

publicado às 10:47

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