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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Afinal quem inventou esse negócio da Cultura?

Por: José Couto Nogueira

 

É esta a pergunta que muitos fazem ao dia de hoje num Brasil dividido entre o amor às artes e aos seus artistas e a factura social de uma economia que nunca foi realmente o que se esperava. Cineastas, músicos, escritores e, em geral, as pessoas das artes não gostam do novo presidente brasileiro. Mas, nas redes sociais, o cidadão anónimo critica os artistas que vivem "à conta" do Estado, num desabafo entre a razão e a inveja. E é neste clima que Temer liquidou o Ministério da Cultura para meia dúzia de dias depois o voltar a reerguer.

 

Quando Michel Temer assumiu a presidência do Brasil, uma das primeiras medidas foi reduzir o número de ministérios. Baralhou as 39 pastas criadas durante o governo de Dilma Rousseff e atirou para a mesa apenas 24. A medida de redução do número de ministérios tem dois objectivos claros: primeiro, tornar o conselho de ministros operacional – ninguém imagina que uma reunião com 39 titulares seja sequer possível, quanto mais produtiva; segundo, cortar nas despesas, uma vez que cada ministério tem uma estrutura orgânica complexa, fora os departamentos, dependências e mordomias.

A razão porque Dilma tinha 24 ministros, mais dez secretários de Estado e cinco órgãos com estatuto ministerial não era por causa da eficiência, evidentemente. Tratava-se da necessidade de ter cargos disponíveis para a complicada teia de partidos (legendas) que formavam a coligação (base) governamental.

 

Temer eliminou alguns pelouros que até tinham nomes curiosos, como o Ministério do Combate à Fome, ou a Secretaria dos Direitos Humanos. Embora tenha havido protestos e críticas quanto a certas extinções ou incorporações, nada causou tanto barulho como a eliminação do Ministério da Cultura, que passou a ser uma Secretaria de Estado do Ministério da Educação. Apesar da Cultura e Educação viverem juntas em muitos países civilizados, e a Cultura estar amarrada a outras competências noutros, esta amálgama de Temer levantou imediatamente uma tempestade sem precedentes.

Em parte, isto deve-se a que a Cultura, no Brasil, tutela os espectáculos, e portanto todos os artistas, desde actores a cantores, realizadores, produtores, etc. Este grupo, que alinha maioritariamente com as teses do PT, é muito mais vocal e visível do que, por exemplo, os esfomeados, que nada disseram sobre a perda de estatuto ministerial. Deve-se também ao facto de a Cultura, mesmo neste sentido lato, ser uma bandeira do PT, o que parecia confirmar o carácter retrógrado e anti-cultural (“direitista”) do Presidente interino. Foi tal a gritaria que ninguém se lembrou de que o Ministério da Cultura nem sequer é uma invenção do Partido dos Trabalhadores, antes pelo contrário; foi criado em 1985 pelo odiado e ultra-direitista José Sarney, e já esteve ligado à Educação em governos posteriores.

 

Por outro lado, os movimentos populares anti-PT (classificados de classe média ou, pejorativamente, de “coxinhas”, pelos petistas) ficaram muito satisfeitos, uma vez que há muito tempo andam a criticar o facto de os artistas viverem à conta do Estado, graças aos benefícios da Lei Rouanet, coordenada pelo Ministério da Cultura. Ou seja, a Lei Rouanet era a maneira de o PT “comprar” toda a gente da indústria cultural, desviando dinheiro da educação, da saúde e do saneamento básico, três áreas em que o país tem índices terceiromundistas. Comentários do género “Olha o Chico Buarque a viver em Paris graças à Lei Rouanet enquanto as pessoas morrem nos hospitais” inundam as redes sociais, acompanhados com fotografias do elegante Chico a tomar um café no Deux Magots, e as pessoas deitadas no chão dos hospitais públicos, embrulhadas em sacos de plástico.

 

No ambiente de alta tensão que se vive no país, também ninguém se lembrou de verificar exactamente como funciona a tal Lei dos croissants para os vendidos ao PT. Também não é uma invenção petista; foi criada durante o governo do igualmente odiado e neo-liberal Collor de Melo, em 1991. Veja-se como são as coisas. O autor é o aristocrático Sérgio Paulo Rouanet, diplomata, filósofo e, na altura, secretário de Cultura. Entre outras políticas culturais, a Lei estabelece que empresas e cidadãos podem doar parte de seu IRS/IRC - 4% para pessoas jurídicas, 6% para pessoas físicas - para apoiar projectos culturais.

 

Uma lei de mecenato, igual à de tantos países, inclusive Portugal. Quando se diz que um projecto foi aprovado pela Lei Rouanet, isso significa que o Governo autorizou a pessoa que propôs aquele projecto a receber patrocínio privado, descontável nos impostos. O Governo não dá dinheiro directamente. Se não houver patrocinador interessado, o projecto não se viabiliza. Representa uma perda de receita do Estado, mas muito pequena, que seria uma gota de água nas misérias da saúde e nas lacunas da educação. Contudo, retrucam os críticos, o mecanismo “é mais uma maneira de os artistas petralhas mamarem nas tetas do governo”, isto para usar a colorida terminologia das redes sociais brasileiras. Pois só no Governo Dilma foram autorizados benefícios fiscais de cinco mil milhões de reais.

 

Mas não é fácil receber dinheiro via Rouanet. Primeiro, o projecto – sim, tem de haver um projecto concreto, o Chico Buarque, ou outro do mesmo nível, não se pode candidatar só porque é famoso e quer viver em Paris – o projecto tem de passar pela burocracia de vários ministérios até ser considerado susceptível de mecenato. Depois, o artista tem de procurar o mecenas, alguém que tenha um IRS ou IRC tão altos e uma tão grande necessidade de Relações Públicas que lhe valha a pena patrocinar as artes. E pode dar lucro? Podia, mas não muito, porque desde Fevereiro, ainda na vigência Dilma, o Tribunal de Contas decidiu que projectos com alto potencial lucrativo não são elegíveis.

 

Quanto ao facto de a Lei Rouanet só beneficiar os “petralhas”, também é difícil de admitir. Quem dá os incentivos e recebe o benefício fiscal são grandes empresas, geralmente pouco amigas do PT. Precisamente, um dos maiores mecenas é a Rede Globo, considerada como a arqui-anti-PT, além de bancos como o Bradesco, extremamente conservador e anti-sindicatos (a sede fica na Cidade de Deus) e o Itaú, pertencente às dinastias Setúbal e Moreira Salles. Também muitos artistas e produtores em nada ligados com o PT, e até hostis, como o Rock’inRio, têm beneficiado da lei. Finalmente, há um tecto definido no Orçamento de Estado que impede que valores descomunais – os que seriam necessários para as necessidades básicas da população – sejam desviados para a Lei Rouanet.

 

Ora bem, Rouanet ou não Rouanet, grande parte das figuras mediáticas brasileiras não gostam, mas não gostam mesmo, do Presidente Temer. E aqui entra o “Aquarius”.

Trata-se de um filme do realizador Kleber Mendonça Filho, protagonizado pela insuperável Sónia Braga, que era a grande esperança do Brasil no Festival de Cannes deste ano. No lançamento do filme, desfazendo o protocolo rígido do festival, a equipa postou-se na escadaria do Grand Théâtre Lumière para a tradicional bateria de fotos e sacou de dentro dos bolsos e bolsas cartazes com frases como “O Brasil vive um golpe de Estado” e “54.501.118 votos estão sendo queimados”, em inglês e francês. Depois, deram entrevistas a explicar como a democracia se finou no país, que Temer é um corrupto, etc. etc. Sucesso mundial. Não há nada que agrade mais à comunicação social que cobre Cannes do que um protesto pró-democrático feito por pessoas bonitas e bem vestidas. Saiu no “Guardian”, no “Le Monde”, nos jornais portugueses.

No Brasil, a atitude dos artistas foi como gasolina na fogueira. A parcela da população que defende o governo de Temer achou anti-patriótica a exposição internacional duma opinião unilateral. Pelas redes sociais, apoiantes de Temer chegaram a propor um boicote da sua estreia brasileira.

Ainda por cima, Kleber Mendonça é coordenador de cinema na Fundação Joaquim Nabuco, tutelada pelo Governo que ele chama de ilegítimo. O MEC, por sua vez, disse que reconhece o direito de expressão do cineasta, mas lá vai dizendo que ainda não sabe qual será o destino do cargo que ele ocupa.

 

Entretanto, as manifestações dos artistas brasileiros continuavam por todo o país. Caetano, Gil e amigos deram um enorme concerto. O Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, foi ocupado para manifestar apoio à mobilização de artistas contra a extinção da pasta. Doze instalações do Ministério em todo o país foram igualmente ocupadas em permanência.

Assim sendo, Michel Temer resolveu tomar uma atitude: no último sábado anunciou que o Ministério da Cultura volta a existir. Marcelo Calero, que tinha sido nomeado secretário de Estado, fica como Ministro.

Certamente que mais esta reviravolta não irá acalmar as hostes. Os “coxinhas” vão continuar a bramar contra a Lei Rouanet. E os artistas a protestar contra o “golpe”. Aguarde os próximos capítulos, que seguem sem intervalo.

publicado às 09:23

O que procuram os turistas numa cidade? A resposta pode estar escrita nas paredes

O que procura um turista quando visita uma cidade? Vida cultural pulsante, gentes genuínas, monumentos, centros históricos ou uma boa gastronomia. A pergunta pode ter uma centena de respostas, mas há uma delas que está escrita nas paredes: a arte urbana.

Por: Alice Barcellos

 

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Mural sobre o fado, em Lisboa. Foto: AFP

 

Apesar de ainda existir em algumas cabeças a ideia de que a arte urbana é vandalismo ou uma expressão artística de menor valor, a verdade é que a maioria das pessoas já se deixa tocar e impressionar por este género de arte, conseguindo distingui-la bem do puro (e mau) vandalismo.

 

Quem nunca observou com cuidado um grande mural pintado num edifício ou guardou uma frase escrita naquela esquina a caminho do trabalho? Esse é um dos trunfos da arte urbana: passar mensagens e fazer-nos pensar. Quer seja em obras de maiores dimensões ou em pequenos stencils espalhados pela cidade.

 

De Inglaterra para o mundo, Banksy conseguiu pôr a arte urbana ao mesmo nível das obras mais conceituadas, presentes nas galerias, museus e leilões. Vários dos seus trabalhos foram vendidos por quase meio milhão de dólares. Com os seus desenhos provocativos e inteligentes, Banksy marca uma viragem na percepção que temos da arte urbana. Ao mesmo tempo, o artista continua a manter o anonimato, o que ajuda a adensar o mistério e a curiosidade sobre a sua identidade e, por conseguinte, as suas obras.

 

Por cá, os artistas que fazem das paredes e muros as suas telas têm cada vez mais visibilidade e cidades como Lisboa e Porto têm apostado numa crescente política “amiga” da arte urbana. A identidade de uma cidade também se desenha nas suas paredes. E as histórias que lá vão sendo contadas chamam a atenção de locais e turistas.

 

Em Lisboa, a arte urbana ganhou um novo impulso no início desta década com o programa Crono. Com o objetivo de dar uma nova a cara a zonas da cidade que estavam degradadas, artistas de renome, nacionais e internacionais, intervieram em vários edifícios. Algumas das obras deste projeto, pintadas na Avenida Fontes Pereira de Melo pelos artistas brasileiros Os Gémeos e pelo italiano Blu, ganharam visibilidade mundial através de fotos partilhadas na internet e entraram para o top 10 do The Guardian, entre os melhores trabalhos de street art do mundo.

 

Desde então, a arte urbana vem conquistando os lisboetas e não só. Prova disso, é o surgimento de empresas e serviços que organizam visitas guiadas às várias obras da capital. Aí, é possível ver trabalhos pintados em zonas menos turísticas e também conhecer um pouco da história do artista e da própria obra.

 

300 quilómetros mais acima, o Porto vive um período fértil neste campo. Após anos mais complicados, em que a câmara tanto apagava trabalhos de artistas de renome, como rabiscos sem valor, a cidade decidiu, agora, abraçar esta manifestação artística e facilitar o processo para quem queira expressar-se numa parede. O primeiro mural legal de arte urbana, junto à estação de metro da Trindade, pintado no ano passado pelos artistas Hazul e MrDheo, marca esta nova fase.

 

Depois disso, outras ações têm acontecido. Desde o primeiro festival de arte urbana e ilustração da cidade, o Push Porto, até ao mais recente projeto Locomotiva, que apoiou várias intervenções de arte urbana, entre elas o maior painel comunitário de azulejos da cidade – ideia do artista Miguel Januário, criador do maismenos.

 

São 3.300 azulejos, pintados por portuenses e turistas, de várias idades e quadrantes sociais, que foram afixados num edifício na Rua da Madeira, junto à estação de São Bento. O projeto foi o culminar de um trabalho de meses e tenta responder à pergunta “Quem és, Porto?”. E se os turistas interessam-se cada vez mais pelas histórias que contam as nossas paredes, também nós podemos encontrar respostas sobre a nossa identidade urbana nestas mesmas paredes. Basta olhar com cuidado e parar para pensar.

 

Alice Barcellos é jornalista de profissão e poeta de coração. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1986, mas trocou a cidade Maravilhosa pela cidade Invicta há 15 anos. Adora contar estórias, quer seja em texto, fotografia ou vídeo. Quando não está a trabalhar no SAPO (e em outros projetos que vai participando), gosta de ter a cabeça voltada para o mar e para os livros, para os seus gatos e cadela ou deitar conversa fora com amigos.

publicado às 10:17

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