Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Estamos quase todos em espera. O paciente europeu resiste?

Por: Francisco Sena Santos

Estamos quase todos à espera e o sentimento é mais de ansiedade ou até de temor do que de ilusão e esperança. Nem me refiro ao que se vive dentro de Portugal onde, apesar de tendências para alguma baixeza assaltar o espaço de discussão pública, as tensões dos últimos anos parecem atenuadas. O sobressalto é o que está à nossa volta, fora de portas, mas a determinar a vida de todos.

 

Andámos muitos anos a ouvir falar de integração europeia – e isso trouxe aos portugueses desenvolvimento e incomparavelmente melhor qualidade de vida. Agora constatamos a desintegração europeia. Até uma voz de topo como é a da chanceler Merkel assume que a Europa vive fase crítica. A Europa tornou-se um condomínio onde todos discutem, onde uns têm poderes que escapam aos outros e onde não há a solidariedade nem o melhoramento social que foi o fundamento da União. A atmosfera não está propícia para a boa convivência nem para os ideais.

 

Há uma pergunta fundamental: como é possível que o ideal europeu, que chegou a ser tão entusiasmante, se tenha transformado em algo que gera tanta repulsa que já levou os britânicos a votarem pelo divórcio enquanto em muitas partes da Europa crescem as forças nacionalistas e anti-europeias? As causas são certamente muitas. Algumas passam pela memória que se apaga, outras por desconfortos na vida de agora.

 

Na memória, efeito de décadas de prosperidade e paz, está a diluir-se o sentimento de insegurança bélica do pós- Segunda Grande Guerra (39-45) que tinha levado Churchill, há precisamente 70 anos (setembro de 1946), a pronunciar em Zurique o famoso discurso em que, com o estatuto de vencedor moral e material do nazismo, apelou à criação dos Estados Unidos da Europa. Esse esquecimento do fantasma da guerra tende a ser um erro perigoso, até porque as últimas décadas têm mostrado, dos Balcãs à Ucrânia, como a guerra permanece como ameaça dentro do continente europeu. E crescem fricções que podem gerar mais faíscas.

 

O desconforto da vida europeia de agora passa pelas sucessivas crises. Há culpas atiradas sobre a mal planeada introdução do Euro no 1º de janeiro de 2002. Há o desastre que veio com o colapso financeiro de 2007 e as políticas de dura austeridade impostas a seguir, penalizando em especial as pessoas dos países da Europa do Sul com desemprego, involução da qualidade de vida e crescendo da desesperança. Há a crise suscitada pelo acolhimento – que é nosso dever – dos refugiados e a amálgama que mistura tradições diferentes com terrorismo. Também há a reconhecida grande falta de estadistas, políticos visionários capazes de instalar confiança e futuro.

 

Woody Allen disse uma vez que a vocação do político de carreira é fazer de cada solução um problema. Talvez se tenha inspirado em Ezra Pound que teorizava que governar é a arte de criar problemas cuja solução é um enredo que agarra os cidadãos. Imagino que o caso presente na Europa nem tenha tanta sofisticação, tão medíocres têm sido várias das personagens de topo. Merkel revelou-se no último ano, para muitos (sou um deles) com surpresa, uma estadista que respeita o valor fundamental da tolerância, com a sua corajosa política de acolhimento de refugiados. É uma opção com alto preço político: há duas semanas caiu para terceiro lugar e foi ultrapassada pelo pior adversário, o partido xenófobo AfD, no seu estado natal de Meclenburgo-Pomerânia, e neste domingo caiu cinco pontos descendo para 18% em Berlim, a capital governada pelo SPD. Não perdeu a calma nem o discurso, repetiu que a Alemanha não pode abandonar a Grécia e a Itália sozinhas com os refugiados, embora não possa voltar a receber um milhão de migrantes num só ano.

 

Merkel representa neste desafio do acolhimento o melhor do espírito europeu. É o oposto de Marine Le Pen. É de notar que são mulheres quem lidera as duas frentes políticas que se confrontam sobre valores fundamentais na Europa. E ambas têm eleições cruciais no ano que vem.

 

A prova das urnas, quando sopram corrosivos ventos nacionalistas, parece estar a ser um condicionamento para a procura de soluções europeias. A França tem presidenciais e legislativas em abril do ano que vem: Hollande está com muito pouco espaço, o confronto tende a ser entre o moderado Juppé e a populista le Pen. A Alemanha tem legislativas daqui a um ano e Merkel pode perder o poder. No horizonte mais imediato está o referendo anti-refugiados promovido por Orban na Hungria (é tempo de a Europa seguir a sugestão luxemburguesa de afastar a Hungria do clube europeu, não partilha os ideais fundamentais) e a repetição da finalíssima das presidenciais na Áustria, com o líder da extrema-direita à frente nas sondagens. A direita populista também tem promessa de avanços nas eleições holandesas. Acresce para este frustrante bloqueio europeu o referendo constitucional em Itália, decisivo para o governo de Renzi, um dos líderes – com Costa e Tsipras - de uma alternativa da Europa do Sul e o impasse político em Espanha.

 

Quando Merkel falou de Europa em estado crítico talvez não quisesse chegar ao ponto de dizer que a Europa está em coma assistido. Mas o tempo da União Europeia pode estar a esgotar-se.  O risco sério é o de desintegração mas ainda há esperança, pode haver energia e sonho para uma refundação. A dúvida é: quem pode liderar e como uma ambição assim?

 

A atual União Europeia está estilhaçada. De modo simplista há quatro partes principais: há o diretório franco-alemão que às vezes integra a Itália e que pretende impor a sua vontade muito germânica; há a linha dura do Norte encabeçada pela Finlândia e vários acólitos; há o grupo EuroMed que envolve os países do sul agora governados à esquerda, de Portugal à Grécia, incluindo França, Itália, Malta e Chipre – também a Espanha que, invocando estar com governo interino, mandou um secretário de Estado para a representar na cimeira de Atenas; e há o grupo de Visegrado, quatro países do Leste, Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia, que levantam um muro contra os migrantes.

Vários destes países da Europa Central e de Leste agem como se a União Europeia já não contasse – embora tenham sido grandes beneficiários dos fundos europeus. Funcionam com modelos assentes no baixo custo do trabalho e salários reduzidos. Grande parte da força económica dos tigres da Europa de Leste decorre de terem beneficiado do calendário: tiveram o fôlego dos fundos de solidariedade quando o resto da Europa apanhou com os apertos orçamentais do Pacto de Estabilidade.  As economias de Leste crescem todas acima dos magros 1,6% da média da zona euro. A Polónia cresceu 3,7% e a Roménia 4,2% no ano passado. É facto que a Irlanda, nossa parceira nos resgates, cresceu 4,8% em 2014, beneficiando dos amplos incentivos fiscais.

 

São economias que cresceram com a solidariedade europeia. Mas várias não retribuem com o respeito dos valores e direitos fundamentais. É assim que nesta ocasião extremamente delicada a Europa precisa desesperadamente de líderes com ideais e vontade. O paciente europeu requer um tratamento de choque. O problema é que a espera se prolonga e está difícil vislumbrar alguma esperança. Mas não é impossível voltarmos a uma Europa de partilha de culturas, de convivência em solidariedade e de melhoramento social. A Europa precisa tanto desse novo e grande impulso, pensado para as pessoas e não para os mercados. Sem solidariedade a democracia perde a alma.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

 

O que é que foi mais explosivo, as bombas ou a cobertura mediática das bombas em Nova Iorque? É uma atmosfera que dá pontos a Trump? Uma amostra com primeiras páginas de hoje nos EUA. Também no Reino Unido.

 

 

Está a chegar o automóvel sem condutor.

 

 

Entra em cartaz a competição pelos Óscares de 2017.

 

 

Uma primeira página escolhida no SAPO JORNAIS.

publicado às 08:20

Cidade em lume brando

Por: Pedro Rolo Duarte

Esta semana, na véspera do jogo do Benfica com o Besiktas, o treinador Rui Vitória tinha marcado uma conferência de imprensa para o final da tarde. Eu estava no carro, parado no trânsito, quando liguei o rádio e ouvi o jornalista, que esperava a chegada do técnico, lamentar o atraso no começo da sessão: “Rui Vitória está bloqueado no trânsito da cidade, e por isso a conferência de imprensa vai começar mais tarde”.

 

 

Poucos dias antes, tinha lido uma notícia que dizia que a Área Metropolitana de Lisboa denunciara a degradação dos transportes públicos na capital, admitindo que a oferta global teria descido, nos últimos cinco anos, 25 a 30%. Demétrio Alves, da dita AML, falava de políticas desastrosas “que levaram o sistema de transportes a ter um nível de qualidade muito baixo e inaceitável”. Como exemplo, revelava que o Metro de Lisboa perdeu mais de 300 trabalhadores nos últimos anos. Dois ou três dias depois, soube-se que a Fertagus cancelou mais 5 ligações entre as duas margens do Tejo (todas nas chamadas horas de ponta) por falta de trabalhadores para as cumprirem…

 

 

Como se de uma bomba-relógio se tratasse, tudo parece “combinado” para que o caos se instale na capital, e para que os mais bonitos sonhos do presidente Fernando Medina se transformem no pesadelo dos lisboetas. Na verdade, o estaleiro em que a cidade se transformou, e que em muitos casos merece aplausos, elogios, reconhecimento, está assente sobre pressupostos que podem ter pés de barro - ou, pior ainda, nem sequer terem pés.

 

 

Não adianta embelezar a cidade, resolver pequenos quistos que a deformam (o Cais do Sodré é um bom exemplo…), forçar os cidadãos a deixar o carro em casa e utilizarem transportes públicos, incentivar o uso da bicicleta ou mesmo a caminhada a pé - e depois não ter resposta adequada às condições já criadas.

 

 

Leio no Facebook de Teresa Leandro: “Há mais de um mês que diariamente, às horas a que viajo de metro, que são as de ponta, há "perturbações" numa linha qualquer. Todos os dias. Ontem calhou-me a mim, com a amarela. Uso a linha verde da estação de Alvalade até ao Campo Grande, onde tomo a amarela até ao Marquês de Pombal. Em condições normais, 20 a 25 minutos costumavam chegar para fazer todo o percurso, mesmo com mudança de linha. Não no último mês e meio. Resignei-me a começar a sair de casa mais cedo, já a prever a forte probabilidade de atrasos”.

 

 

É neste quadro que a “rentrée” se faz na cidade de Lisboa. É certo que temos dezenas de eventos culturais e desportivos, vivemos na cidade mais animada do planeta. Mas, ao mesmo tempo, sofremos os problemas de sempre, as deficiências de sempre, as impossibilidades de sempre.

 

 

Agora, com esses “complementos” inesperados: em vez de ruas, estaleiros. Em vez de alcatrão, pó. Em vez de horas de ponta, horas perdidas todo o dia. Quando começar a chover a sério, o caos passará a Inferno. Espero que a impaciência não dê lugar à violência - e a cidade não se torne palco de batalha campal…

 

 

15 anos depois, três links sobre o dia negro de 11 de Setembro…

 

 

São quatro minutos arrepiantes, produzidos pela revista Time, que contam a história de uma das fotografias mais marcantes do 11 de Setembro de há 15 anos, em Nova Iorque. “The Falling Man” é, simbolicamente, o que todos sentimos naquele dia: estávamos entre a vida e a morte.

 

 

O ainda vivo “Usa Today” - epifenómeno da imprensa dos anos 80 de que deixámos de ouvir falar há tanto tempo… - recupera na sua edição digital dez questões esquecidas, ou pouco debatidas e investigadas, sobre aquele dia negro de 2001…

 

 

Algo me diz que vamos ter saudades de Barack Obama. Talvez por isso, não resisto a deixar aqui o link para que possam ver/ouvir o extraordinário discurso com que assinalou o 15º ano sobre os atentados de Nova Iorque.

publicado às 11:45

Quem decide o que aparece no Facebook? O debate já começou

Por: Paulo Ferreira

A pedagogia, a pressão e denúncia públicas e a liberdade de escolha dos utilizadores serão, no fim do dia, os meios mais eficazes para prevenir os excessos de zelo e as práticas abusivas das plataformas electrónicas na selecção de informação

 

 

Perdoem a heresia de me citar a mim próprio mas, como verão, a realidade é que se atravessou descaradamente no caminho. A propósito de algumas propostas para limitar a divulgação de informação relacionada com atentados terroristas, perguntava aqui mesmo há pouco mais de um mês se a icónica fotografia da miúda vietnamita, nua, a fugir do napalm seria hoje publicada.

 

A resposta chegou nos últimos dias e teve como protagonista o Facebook: essa publicação estaria hoje, no mínimo, seriamente ameaçada. Numa era marcada pela ditadura do politicamente correcto e pela paranóica tentativa de higienização de todo o espaço público começamos a deixar de distinguir a essência de cada coisa tomando tudo pela aparência, pelo embrulho, pelo seu valor facial. Se parece, é. Mas pode não ser.

 

Uma criança nua numa foto não é necessariamente um incentivo à pedofilia da mesma forma que a nudez não pode ser confundida com pornografia.

 

O problema não está apenas no Facebook, nos seus cegos algoritmos - haverá algoritmos que não sejam cegos? - ou nos seus colaboradores ignorantes, sem referências históricas e culturais. Basta ver o pudor hipócrita com que os meios de comunicação tradicionais americanos tratam tudo aquilo que seja a nudez ou o calão.

 

Mas, pela dimensão e predominância que adquiriram na distribuição da informação, as plataformas electrónicas são uma parte importante de um problema que as sociedades ocidentais terão que discutir abundantemente: o controlo, hierarquização e formas mais ou menos veladas de censura da informação.

 

É verdade que estas empresas não são órgãos de comunicação social no seu sentido tradicional porque não produzem elas próprias informação ou entretenimento. Não têm redacções próprias com jornalistas, não estão sujeitas aos seus códigos de ética e deontológicos nem a leis que regulam a comunicação social. No entanto, e como já se percebeu, enquanto plataformas de distribuição elas têm poder para decidir que conteúdos produzidos por outros podem ser publicados por eles e vistos pelo público.

 

 

A primeira tentação de muitos será a imposição de regulação administrativa, proibindo algumas práticas e criando regras para outras. Esse é o caminho perigoso. É isso que fazem os regimes autoritários que olham para a liberdade de expressão e de informação como uma ameaça às sociedades. E será tão estúpido tentar travar administrativamente estes novos meios electrónicos e a forma como funcionam como seria proibir a Uber, para citar o exemplo mais à mão de um avanço tecnológico que está a desafiar velhas formas de fazer negócio e servir clientes.

 

Hoje, graças à internet e às redes sociais, há muito mais gente a ler notícias, a reter alguma informação e a perceber o que se passa no mundo do que há duas ou três décadas. Fazem-no entre um vídeo de gatinhos e outro de acidentes de automóvel? Sim, mas fazem-no.

 

A pedagogia, a pressão e denúncia públicas e a liberdade de escolha dos utilizadores serão, no fim do dia, os meios mais eficazes para prevenir os excessos de zelo e as práticas abusivas.

 

Foi isso que aconteceu agora mesmo com o Facebook neste caso da fotografia da criança vietnamita. A censura da foto foi noticiada e partilhada em todo o mundo também através do próprio Facebook. A empresa percebeu o erro e recuou. Certamente que nunca até hoje tanta gente tinha visto a foto icónica da Guerra do Vietname, o que ela representou e o horror que retrata. O passo seguinte, em muitos meios de comunicação internacionais, foi o debate sobre a necessidade do Facebook ter editores capazes de seleccionar e hierarquizar informação de uma forma sensata e conhecedora, para além dos automatismos do algoritmo.

 

Mas o tema é muito mais complexo. Há uns meses o debate nos Estados Unidos era o inverso e a acusação era que os editores que trabalham os “trending topics” do Facebook teriam um enviesamento que estaria a privilegiar informação e temas mais favoráveis aos democratas por oposição aos republicanos. O debate levou a empresa a alterar a sua prática, automatizando o que era até então feito por pessoas. Muitos duvidam que isso resolva alguma coisa. Mas a discussão está em curso e a aprendizagem colectiva também. A vigilância e os alertas públicos são instrumentos mais poderosos do que muitas vezes podemos pensar. Para já, fizeram a devida justiça à foto de Kim Phuc. E provavelmente preveniram que um destes dias alguém sentado em frente a um computador em Silicon Valley trate por igual os frescos da Capela Sistina e uma performance de Cicciolina.

 

 

Outras leituras

 

Pode o estado de saúde de um candidato ajudar a decidir a eleição presidencial norte-americana? O certo é que em cerca de um ano Donald Trump passou do fanfarrão que iria apenas animar as primárias republicanas a candidato com séria chance de chegar à Casa Branca.

publicado às 03:46

A ilusão perdida em Roma

Por: Sena Santos

Há cidades a que se deseja sempre voltar e Roma é uma delas. Mary Beard, prestigiada especialista em Clássicos da Antiguidade, catedrática em Cambridge, tem escrito livros fascinantes sobre a Roma Antiga que modelou muito da nossa civilização. Ela explica como os pensadores e políticos dessa Roma de há vinte e um séculos, mestres de sabedoria, refinamento e estratégia, tiveram a visão para abrir caminhos, levantar pontes, construir aquedutos, definir bases do Direito e de tanto mais, deixaram-nos em herança um pensamento que é bússola, mas ao mesmo tempo eram violentos com o seu brutal e disciplinado poder de ataque e saqueadores com cruel rapina na terra conquistada pelo império que se estendia da Península Ibéria ao Médio Oriente.

 

A Roma de há 2100 anos é descrita por Mary Beard como uma cidade com mais de um milhão de pessoas que viviam numa mistura de liberdade e exploração, luxo e lixo. Há qualquer coisa desse retrato antigo que encaixa na Roma de hoje, à beira dos três milhões de residentes. Roma é encantadora para quem a visita mas quem lá vive está farto: embora sempre fiéis ao estilo e à elegância, os romanos perderam a paciência com a degradação da qualidade de vida na sua cidade onde o trânsito é um suplício, o pavimento das ruas está mal tratado, os transportes públicos estão em colapso, os monumentos à mercê da penúria de recursos e cuidados, o lixo com frequência fica vários dias amontoado nas ruas, as águas e margens do Tibre parecem de há muito uma lixeira. Há um vídeo gravado por um estudante que mostra o vai e vem das ratazanas por entre montanhas de lixo no Largo Ferruccio Mengaroni. Há imagens de lixo que sobe à altura de um adulto no bairro Tor Bella Monaca.

 

É o que resulta do que chamam de “Mafia Capital”, redes da máfia tradicional que, infiltradas nas engrenagens do poder municipal, designadamente o serviço de recolha de lixo, usando o sistema de corrupções instalado, com a cumplicidade de gente de todos os partidos, tiram proveito de tudo aquilo onde metem a mão.

 

É assim, com a promessa de limpar a cidade do lixo e das máfias, que Virginia Raggi, uma advogada com 37 anos e escassa história política se tornou uma loba à conquista de Roma. Ela tinha aparecido na internet a promover campanhas pela Educação e pelo Ambiente.  Era elogiada por iniciativas de voluntariado. O Cinco Estrelas (M5E), movimento político que se define “antipolítica”, liderado pelo comediante Beppe Grillo, escolheu-a para liderar a candidatura à presidência da câmara de Roma. A imagem dela é sedutora e o discurso surgiu poderoso contra as desgastadas castas políticas italianas. Virginia Raggi avançou sobre Roma e conquistou-a nas eleições de 19 de junho: arrasou, foi eleita com 67,2% dos votos. Tornou-se a primeira mulher a governar em Roma e gerou enorme ilusão com a utopia de uma Roma finalmente, décadas depois, governada de modo imaculado com ideias e projetos, fantasia e paixão, visão e eficiência com, claro está, mãos limpas.

 

Ainda nem passaram três meses e Virginia Raggi é uma presidente à beira de um ataque de nervos. “Onestá, onestá!” e “Transparenza!” tinham sido os dois gritos mais fortes da campanha Raggi, mas tudo parece em colapso. Ela escolheu para dirigir setores fundamentais para a regeneração da cidade gente nova e com etiqueta de alto nível, inovadora e competente. Parecia ter bom programa e boa equipa. Mas, ao fim de 70 dias, a equipa Raggi está à deriva.

 

A crise eclodiu na madrugada de 1 de setembro, com o anúncio da demissão da chefe de gabinete, Carla Rainieri, uma magistrada que tinha sido escolhida por, com os seus critérios éticos e sociais, ser considerada uma muralha implacável frente às infiltrações mafiosas na engrenagem municipal de Roma. Demitiu-se por não estar disposta a aturar as intrigas de gente do M5E por ela ter um salário de uns 10 mil euros por mês. A demissão de Rainieri precipitou a queda, como peças de um dominó, de outras quatro figuras de topo entre as escolhidas por Raggi. Beppe Grillo, líder do M5E meteu-se na polémica para dizer que “a Virginia (Raggi) às vezes parece-me louca”. Percebeu-se que as heterogéneas fações do M5E não queriam deixar Raggi com mãos livres. Começou a comentar-se que os novos políticos afinal são iguais aos outros, ou ainda pior, por cometerem erros de inexperiência.

 

Tudo a precipitar-se: quase ao mesmo tempo é revelado que Raggi sabia que dois dos seus principais escolhidos estavam a ser investigados por ligações com personagens mafiosas, mas encobriu-os. O M5E saltou a defendê-la mas ficou exposto à acusação de dupla moral: exige a demissão dos adversários sob suspeita, condescende com os seus. O cartaz após a vitória eleitoral em junho, dominado pelo rosto de Raggi, enquadrado pela proclamação “Ora cambia tutto, ora tocca a noi” perdeu sentido porque afinal eles não escapam às mesmas derrapagens. A atmosfera ficou penosa para Raggi. Muitos que tinham ficado enamorados pela imagem que ela tinha passado não escondem a desilusão. Mas a maioria ainda parece querer dar à “loba de Roma” uma oportunidade para corrigir os erros e tentar voltar a criar ilusão.

 

O M5E que aspirava usar a governação municipal em Roma e Turim para mostrar que é capaz de tomar o governo do país sai desta crise mais debilitado do que Raggi. Cai nos erros, nas superficialidades, nos amiguismos, nas omissões e nas mentiras tal como os outros que tanto critica no teatro político. O movimento que se proclamava cristalino e que tinha alimentado a promessa de mudar o tempo e o modo da comunicação política com o povo a decidir na internet, afinal, quando ficou acossado mostrou-se burocrático, entrou em guerras internas e passou a esconder os debates. Não acrescenta honestidade e qualidade ao sistema político.

 

Os novos movimentos e partidos surgidos com as ondas de indignação populista e contra o sistema tradicional confrontam-se agora com a deceção. Em Itália, o M5E tem rombos no casco. Em Espanha o Podemos e o Ciudadanos, agarrados a intransigências e incapazes de negociar acordos viáveis, estão em contínuo retrocesso nas intenções de voto.

 

Fica o risco de sucessivas desilusões levar a mais abstenção.

 

 

TAMBÉM A TER EM CONTA

 

O momentâneo desfalecimento de Hillary Clinton diante das câmaras no domingo, 11 de setembro, colocou a saúde da candidata como tema da semana na campanha americana. The Huffington Post insurge-se contra o tratamento do caso pelos media. A pergunta é legítima: este caso pode mudar a dinâmica da campanha e, eventualmente, a história do mundo? Só um acontecimento fora do previsto pode levar a uma extraordinária reviravolta e travar a eleição de Hillary como Madam President. Os últimos dias, com gaffe e desmaio, correram mal a Hillary mas os estudos eleitorais garantem-lhe pelo menos 238 grandes eleitores (são eles quem decide), frente apenas 117 para Trump. Bastam mais 32 grandes eleitores para Hillary ficar presidente. Num cenário normal recolhe bastante mais.

 

 

A Hungria com a intolerância e a xenofobia de Orban é um problema na Europa. Ele é o primeiro-ministro que fala no regresso à pena de morte e que restringe a liberdade de imprensa. É uma maciça violação de valores europeus que leva o ministro luxemburguês dos estrangeiros a pôr em discussão o afastamento da Hungria da União Europeia. Como deve ser.

  

 

O Congresso brasileiro derruba o homem que mais se empenhou no impeachment de Dilma. O capítulo final da queda política de Eduardo Cunha é o tema para a primeira página escolhida hoje no SAPO JORNAIS.

 

 

Renoir para quem viajar a Madrid ou Barcelona.

 

 

Os media portugueses costumam fazer bom acompanhamento dos festivais europeus de cinema, de Berlim a Veneza, passando por Cannes e Locarno. Vale não perder de vista o que passa pelo excelente TIFF em Toronto.

publicado às 10:02

Sim, e o contrário também

Por: Pedro Rolo Duarte

Ou muito me engano, ou Álvaro Cunhal deu algumas voltas na tumba no fim‑de‑semana passado. Coerente, firme, implacável, teimoso, julgo acertar se disser que não lhe passaria pela cabeça engolir a “geringonça”, obrigando-o - como obrigou Jerónimo de Sousa - a, num único discurso, dizer que sim e que não, isto e o seu contrário, estamos mas não estamos.

 

 

Cito: “As opções do PS e a sua assumida atitude de não romper com os constrangimentos externos são um grave bloqueio à resposta aos problemas do país. O futuro de Portugal exige a ruptura com as imposições e chantagens que visam perpetuar a submissão, a exploração, o endividamento e o empobrecimento”.

 

 

Mas, e ao contrário, nem por isso o PCP deixará de viabilizar um Orçamento para 2017, assim ele mantenha o “compromisso de reverter direitos e rendimentos”, garantindo que vai “inverter o curso para o desastre económico e social que vinha sendo imposto”.

 

 

Ou seja, desde que os mínimos olímpicos se mantenham, o PCP engole o sapo (maior do que o das famosas presidenciais com Mário Soares…).

 

 

De passagem, Jerónimo de Sousa insiste na tecla da saída do euro como parte da solução dos problemas nacionais, quer cunhar a moeda portuguesa, e sublinha a necessidade da nossa autonomia económica, financeira, cambial e fiscal, numa claríssima demarcação da União Europeia e de tudo o que o PS (…e o PSD, e até o CDS) manifestam como essencial e fundador.

 

 

Se eu fosse militante do partido e estivesse naquela tarde escaldante de domingo a ouvi-lo, acharia que estava a sofrer os efeitos de uma insolação. É possível estar contra a essência, a raiz, a “causa das coisas” de um governo e de uma política, e ao mesmo tempo votar e caucionar esse mesmo governo em nome de magras recuperações de direitos para os trabalhadores, em geral, e a função pública, em particular? Como se concilia o voto num orçamento com a firme defesa do abandono da moeda única? Como se fala da “política de direita e de submissão à União Europeia e ao Euro”, ao mesmo tempo que se aceita, na Assembleia da Republica, as traves mestras que a suportam?

 

 

A lista de perguntas é tão grande como o discurso de Jerónimo de Sousa. Mas, ao ouvir o líder do PCP, interroguei-me sobre o que será, política e eticamente, mais sério e correcto: deixar um país à deriva, como está a suceder em Espanha, porque não se cede ao que se julga essencial; ou ceder no essencial, mesmo que para isso o discurso contradiga a acção?

 

 

Não tenho uma resposta taxativa (há muito que me deixei disso…). Mas uma coisa sei: Jerónimo de Sousa e o PCP estão claramente a viajar na maionese. Neste caso, numa maionese talhada pelas contradições entre o que defendem e o que depois fazem. Estarão a ficar iguais aos “outros”?

 

 

Rentrée em três actos…

 

 

Enquanto por cá os canais de televisão apontam as suas armas pesadas para o horário nobre - novelas, séries, reality-shows… -, nos Estados Unidos da América as séries continuam no trono do rei, destronando filmes e concursos e programas de informação. Neste link, a lista da revista Time para as 12 séries imperdíveis da estação. Entre o cabo, os canais clássicos e o Netflix, mais tarde ou menos cá chegarão…

 

 

É seguramente a transferência do ano na imprensa portuguesa: Vasco Pulido Valente deixa o Público - e por esta via, o papel impresso - e entra no mundo digital, já em Outubro, com duas crónicas semanais (sábado e domingo) no jornal Observador. Antecipando a transferência, deu uma longa entrevista a Vítor Matos que, embora publicada no jornal em Junho, vale a pena reler agora, quando o seu regresso se aproxima…

 

 

Não houve jornal que não lhe dedicasse umas linhas, nem rede social onde não fosse referida a toda a hora: a síndrome pós-férias, quase classificada como mais uma doença na já longa lista das estranhas patologias psicológicas, mereceu do nosso vizinho digital El Español uma matéria que vale a pena ler. Por um lado desmascara uma invenção que nos dava imenso jeito, por outro explica o fenómeno pelo lado cientifico.

publicado às 11:49

Se Ferreira do Amaral falasse em inglês…

Por: Paulo Ferreira

O deslumbramento por declarações de economistas estrangeiros não faz sentido, sobretudo quando, por regra, esses economistas conhecem o país e a nossa economia muito pior do que os seus colegas portugueses e não têm qualquer capacidade de decisão sobre o país.

 

 

Um francês pode estar apenas a ler um folheto de supermercado que a mim parecerá sempre que está a dizer coisas interessantíssimas e muito profundas num programa de Bernard Pivot. E um alemão, ainda que esteja de livro de instruções da máquina de lavar na mão, soará sempre a um filósofo discípulo de Hegel ou Heidegger. Talvez, neste caso, esteja a ser condicionado por Caetano Veloso para quem “está provado que só é possível filosofar em alemão”. E estas coisas, cantadas em português com sotaque do Brasil marcam muito mais.

 

 

Ou então é simplesmente um traço de provincianismo semelhante ao que marca a nossa relação com a tribo dos economistas.

 

 

Em Portugal temos, felizmente, economistas para todos os gostos, feitios e utilidades e é fácil encontrar dois que discordem sobre uma qualquer matéria e que defendam as suas posições com competência. É a vantagem das ciências sociais, como a Economia: todos têm a enorme vantagem de estar potencialmente certos até se passar da teoria à prática. Quando se passa.

 

 

Mesmo as propostas mais arrojadas dentro do “status quo” e das opções estratégicas que o país tomou encontram competentíssimos defensores, que nos fazem sempre pensar e até vacilar sobre aquilo que temos como certezas económicas - se é que tal coisa existe.

 

 

A velha questão da entrada e da permanência de Portugal no euro é um desses temas. João Ferreira do Amaral é a voz mais audível que sempre foi contra a adesão do país à moeda única, numa fase em que o caminho estava só no início. Mas também Miguel Cadilhe, por exemplo, discordou dessa opção política.

 

 

 

Hoje, Ferreira do Amaral mantém que o país teria vantagens em deixar a moeda única. Publicou, inclusive, o livro “Porque devemos sair do euro” há três anos onde explica tim-tim por tim-tim porque é que, no seu entender, deixar o euro é imperioso para que o país saia da crise - ou para que a crise saia do país. E é acompanhado nessa sua teoria por muitos economistas, sobretudo mais à esquerda.

 

 

Mas Ferreira do Amaral, como a generalidade dos economistas portugueses, tem dois problemas em nada relacionados com a sua competência, lucidez e seriedade intelectual: não se expressa normalmente em inglês e nunca ganhou um Nobel.

 

 

Não fosse assim e as suas ideias seriam certamente muito mais destacadas e debatidas. Prova disso foi o que aconteceu esta semana com a entrevista dada por Joseph Stiglitz à Antena Um. O economista americano defendeu também que a saída do euro é, no seu entender, o caminho a seguir. Ora, isto dito em inglês e ainda por cima “por um Nobel da economia” ganha logo outro peso na agenda.

 

 

Este deslumbramento por declarações de economistas estrangeiros - sejam eles de direita ou de esquerda, alemães ou americanos - não faz sentido, sobretudo quando associado a outras duas características: por regra, esses economistas conhecem o país e a nossa economia muito pior do que os seus colegas portugueses e não têm qualquer capacidade de decisão sobre o país. Neste sentido, é muito mais importante para nós - porque pode mexer verdadeiramente nos nossos bolsos - a opinião de um qualquer analista anónimo de uma agência de rating ou de um banco de investimento que transaciona dívida portuguesa do que todos os Nobel da Economia juntos.

 

 

Tivesse Ferreira do Amaral falado em inglês há duas décadas e provavelmente o nosso destino teria sido diferente. Melhor? Nunca saberemos porque essa contra-prova nunca poderá ser feita. Que o desenho do euro está inacabado desde o início é consensual. Que, apesar disso, a nossa vida teria sido mais fácil e mais próspera fora da moeda única como ela existe é que levanta muito mais dúvidas. Os modelos económicos podem indicar que sim, que conseguiríamos mais crescimento, mais emprego e mais prosperidade se tivéssemos usado a liberdade da política económica que o facto de ficarmos fora da moeda única nos teria permitido.

 

 

A questão é que os modelos económicos não incorporam a vontade e qualidade das lideranças políticas. E o que temos assistido ao longo da nossa relativamente curta vida democrática é que os graus de liberdade da política económica são, por regra, utilizados para a asneira imediata ou a prazo.

 

 

Com liberdade cambial e monetária não é descabido imaginar que hoje poderíamos ser uma pequena economia carregada de inflação, com degradação constante do poder de compra e uma competitividade refém da desvalorização cambial. Foi assim durante toda a década de 80 e mesmo no início dos anos 90, quando o país começou a preparar-se para a entrada no euro, não faltaram vozes contra a chamada “política do escudo forte”. Uma delas foi até a de Braga de Macedo, então ministro das Finanças, e levou à demissão de um na altura jovem vice-governador do Banco de Portugal, António Borges.

 

 

De então para cá, a nossa incapacidade para nos governarmos está à vista, apesar da boleia que apanhámos das taxas de juro muito baixas por empréstimo da credibilidade alemã e dos abundantes pacotes de fundos comunitários. A oposição a políticas de rigor que cumpram o objetivo de ter um orçamento equilibrado são, a esse nível, um sinal que só nos pode deixar muito desconfiados.

 

 

Outras leituras

 

Está em curso mais um dos casos clássicos das “zangas de comadres”, desta vez entre Fernando Lima, que durante décadas foi a “sombra” de Cavaco Silva, e o ex-Presidente da República. Tudo para nos recordar que é demasiado cedo para fazer balanços completos da vida política do homem que mais tempo nos liderou nas últimas três décadas.

 

A Lego é um interessante caso-estudo. Na era da electrónica para os mais novos, a resistência, a reinvenção e o crescimento de um dos mais clássicos brinquedos mostra que há um caminho paralelo aos apelos tecnológicos.

publicado às 12:25

Alguém consegue fazer a chave espanhola?

Por: Sena Santos

Na Utopia, escrita há 500 anos, Thomas More descreve a organização política e social de uma ilha composta por 54 cidades onde funciona a igualdade entre todos. A ilha está dotada de um governo central cuja principal missão é a de repartir com equidade os recursos. Na Utopia não há pobres nem ricos, vive-se em igualdade material. O modelo concebido por Thomas More – certamente como contra-modelo de outra ilha, a Inglaterra do século XVI -  tem o pecado da uniformização, da submissão do indivíduo ao bem comum e, a par de ampla liberdade religiosa, muitas restrições nos costumes.

 

 

Thomas More ganhou lugar em dois panteões, em Moscovo e no Vaticano: Lenine proclamou-o percursor do comunismo e mandou dedicar-lhe um obelisco, ao lado dos de Marx e Engels; a Igreja Católica declarou-o em 1935 santo mártir (tinha sido esquartejado por se recusar a reconhecer Henrique VIII como chefe da igreja de Inglaterra) e, no ano 2000, João Paulo II designou-o patrono dos estadistas e políticos.

 

 

O livro, requisitório contra as injustiças sociais e políticas da Inglaterra de então, não é um tratado de filosofia política, mas a ideia de utopia passou à posteridade como ideia de ideal. Aparece nos dicionários como um sonho ou uma quimera.

 

 

Muita gente na Espanha dos últimos anos acreditou na utopia de uma sociedade melhor. Foi evidente o renovado interesse de novas gerações pela participação política e isso traduziu-se na criação de novos partidos resultantes dessas movimentações profundas na sociedade. Muitos eleitores, à esquerda como à direita ou ao centro, fartos de um sistema desgastado, acreditaram ser possível que a condução do país fosse tarefa para os melhores, gente capaz de visão com amplos horizontes, generosidade, tenacidade e valentia, como requer a tarefa de governar um país, neste caso a Espanha.

 

 

O que há para tratar em Espanha tem muito a ver com o que também importa em Portugal. A economia. A educação. O financiamento da saúde e das pensões. A salvaguarda de um Estado de bem-estar sustentável. O apoio à criação de emprego e à promoção do conhecimento e da cultura. Tanto mais. No caso espanhol há o imbróglio das autonomias, com especial tensão no caso da Catalunha, onde a escalada independentista está a ter como resposta, não a procura de harmonias mas o agravamento do conflito entre Madrid e Barcelona.

 

 

Os espanhóis votaram e decidiram pôr fim à ordem anterior, assente em dois partidos, o PSOE e o PP. Escolheram um parlamento mais plural, fragmentado, sem a hegemonia dos dois grandes partidos.  Naturalmente, esperavam que os políticos conseguissem fazer acordos e pactos, concretizando em ação a vontade dos eleitores. Os eleitores espanhóis votaram em 20 de dezembro, mas os políticos não souberam ter audácia para acordar um governo. Foi preciso voltar a votos em 26 de junho. Mas o impasse continuou, são políticos mas não conseguem entender-se, estão incapazes de imaginação para um compromisso plural no labirinto parlamentar.

 

 

Um dos novos partidos, o Ciudadanos, ainda deu uma mão ao PP de Rajoy e, acrescentado o voto de uma deputada das Canárias, chegaram assim a somar 170 lugares no parlamento de Espanha. Mas a maioria é aos 176, por isso fracassaram. Agora o Ciudadanos até já rasgou o acordo que celebrou com o PP. É facto que há uma maioria absoluta nas Cortes de Espanha, mas é de recusa: está formada pelo PSOE, pelo Podemos e por mais seis partidos nacionalistas: juntam 180 votos, ultrapassam portanto a maioria absoluta, mas só estão unidos para a recusa de um governo PP, não para formar uma plataforma de governo, porque o PSOE não se entende nem com o Podemos nem com os independentistas catalães, e o Ciudadanos ainda menos.

 

 

Assim, com a Espanha política encalhada há já nove meses, num fracasso que ninguém assume – cada um atira a responsabilidade para o outro - já está no ar a hipótese de novas eleições, as terceiras, um ano depois das primeiras, outra vez em cima do natal. É como se estivessem a esgotar os eleitores: votam, em repetições eleitorais, até ficar conseguido o arranjo que interessa.

 

 

Como alternativa a essa hipótese de terceiras eleições está em curso um jogo de pressões que passa pelas eleições autonómicas, marcadas para 25 de setembro, no País Basco e na Galiza.

 

 

No País Basco, o Partido Nacionalista Basco (PNV), com 27 dos 75 deputados autonómicos, governa através de acordos com o PSOE (16 deputados). Se o PSOE retroceder perante o provável crescimento da esquerda mais à esquerda (Unidos Podemos e Bildu), o PNV pode vir a precisar do PP para governar. Seria o bingo para Rajoy: dá apoio ao PNV no País Basco e exige em troca o voto dos 5 deputados PNV em Madrid.

 

 

O voto na Galiza também conta para o jogo nacional. A maioria absoluta no parlamento de Santiago de Compostela é atingida com 38 deputados e o PP governa com 41. A confirmação ou perda da maioria absoluta em 25 de setembro concorre para a legitimidade de Rajoy. O presidente do governo há nove meses em funções espera que esta conjunção permita fazer quebrar a intransigência do socialista Sanchez.

 

 

Rajoy parece de braços cruzados à espera do que possa vir a acontecer. Seja como for, sem a coragem de um amplo acordo político, a governabilidade de Espanha fica muito precária, em incertezas constantes.

 

 

Dos políticos espera-se que saibam mover-se e encontrar caminhos para transformar a realidade para melhor. Quando passam nove meses e não são capazes de avançar e explorar por entre a realidade e a utopia, fica-se a olhar para eles com desconfiança. O país que tinha alimentado a ilusão entra na desilusão por estarem a ser barradas as saídas e ninguém ousa fazer uma chave.

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

O land de Mecklenburg lá no Leste da Alemanha parece um território insignificante. Sucede que é por lá que está a terra natal da chanceler Merkel, e que foi lá que, pela primeira vez na história da Alemanha unificada, um partido populista e xenófobo, o AfD, suplantou a poderosa democracia-cristã da CDU. As frustrações e ressentimentos estão a levar a este crescendo de forças populistas. Os eleitores castigam Merkel por há um ano ela ter tomado a corajosa decisão de abrir portas aos refugiados. Merkel pode perder eleições mas colocou-se como estadista à altura da história.

 

 

Que futuro pode ter a Esquerda? Oportuna reflexão aberta pelo Guardian.

 

 

Estamos habituados a ouvir falar em “Estado de direito”. O presidente das Filipinas, Duterte, declarou o país “Estado de não direito”. A inquietação com este vale-tudo que sacrifica as liberdades fundamentais generaliza-se. Leia-se o alerta no NYT e a denúncia de um fundador da Human Rights Watch.

 

 

 As capas de duas revistas escolhidas no Sapo Jornais: a Veja vê a morte do PT, o L’Espresso confia na boa reconstrução após o terramoto no centro de Itália – mas reclama que não deixem a máfia meter mãos na obra.

publicado às 09:44

Querida Apple: eu compro-te um iphone e tu pagas os teus impostos

Por: Rute Sousa Vasco

Quando as empresas encontram a forma mais eficaz de pagar menos impostos, os legalistas dizem que se trata apenas de planeamento fiscal. E para muitos, é quanto baste. Mas o caso Apple/Irlanda versus Comissão Europeia é bem mais que uma discussão legal. É política, é moral, é global e um iPhone não vale isto tudo. Nem muitos milhões deles.

 

 

No terceiro trimestre de 2016 (Abril-Junho), a Apple vendeu 40,4 milhões de iphones, o seu produto-estrela, e facturou 42,4 mil milhões de dólares. Os lucros do trimestre foram de 7,8 mil milhões de dólares. São números difíceis de dimensionar pela sua grandeza, mas ainda assim ligeiramente abaixo daqueles que a empresa registou no mesmo período de 2015. O que não é forçosamente uma má notícia porque estão acima do que, na realidade, os analistas esperavam – o que provocou aquela onda de comoção que os mercados traduzem em subida no valor das acções.

 

A Apple é uma empresa amada, admirada, odiada e cobiçada. É isto tudo, como são as grandes empresas, as grandes marcas e as pessoas de excepção. Ame-se ou odeie-se, é uma empresa sem problemas financeiros e, sobretudo, sem problemas de mercado à data de hoje. Quem é que não quer ter um iPhone, aqui ou na China?

 

E isto tudo leva-nos ao tema desta semana. Os 13 mil milhões de euros que a Comissão Europeia pediu à Apple que devolvesse por considerar que a Irlanda concedeu um apoio ilegal ao nível dos impostos à empresa americana. Para quem não assistiu à novela, fica um resumo rápido. A Irlanda é um dos países  da União Europeia com regime fiscal mais atractivo para multinacionais. O IRC é de 12,5% versus 21% em Portugal, ou 25% em Espanha ou mesmo 29,7% na Alemanha.

 

Na Irlanda, a política fiscal low cost tem sido entendida como um motor de desenvolvimento do país e tem trazido frutos, sobretudo no investimento americano que gosta da vista, da língua e dos impostos a bom preço. Em 20 anos, a Irlanda teve um investimento directo americano de 277 mil milhões de dólares. Há 700 empresas americanas na Irlanda, que empregam no seu conjunto 130 mil pessoas.

 

A Apple é uma delas. Tem uma longa relação com a Irlanda, iniciada nos anos 80 por Steve Jobs. E beneficia de um estatuto especialíssimo no que respeita ao imposto sobre os lucros – aliás, cada vez mais especial. No início deste milénio, pagava entre 1% e 2% sobre os lucros. Há cerca de cinco anos, passou a pagar metade desse valor: 0,5%. E, em 2014, ano em que registou lucros recorde, obteve um novo desconto especial para 0,005%.  O equivalente a 50 euros de imposto por cada milhão de euros de lucros.

 

Vamos recordar que a taxa de IRC na Irlanda, para ser competitiva e atrair investimento, já é de 12,5%. Uma das mais baixas da União Europeia.

 

A decisão da comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, de pedir a devolução dos 13 mil milhões de euros surge após dois anos de investigações e foi baseada, afirmou a própria, em factos. Factos que resultaram dos números apresentados pela Apple em audiências fiscais nos Estados Unidos, pátria-mãe da empresa onde a taxa de IRC é de 35%.

 

Avizinha-se uma longa batalha política e legal em torno deste tema. Para que um benefício fiscal possa ser considerado uma ajuda ilegal de Estado tem de cumprir com quatro critérios: tem de ser dado pelo Estado usando recursos próprios do Estado, tem de configurar uma vantagem, a vantagem tem de ser selectiva e não global, e tem de distorcer a concorrência. Face ao que se ouviu nesta semana, e considerando alguns precedentes, a procissão ainda nem saiu do adro.

 

O governo americano que agora veio em defesa da sua empresa-estrela teve, em 2013, dúvidas sobre se estaria ou não a ser driblado fiscalmente pela Apple. E, provavelmente, estava. Como? Através da Apple Sales International e da Apple Operations Europe, empresas com as quais a Apple regista as suas vendas na Europa e também parte dos lucros de propriedade intelectual, inclusive os facturados nos Estados Unidos (razão pela qual, em primeiro lugar, o senado americano se interessou pelo tema). As duas empresas protagonizam um acordo fiscal – dizer altamente favorável é dizer pouco – com a Irlanda, sem sustentação económica. Sim, a Apple emprega 6000 pessoas na Irlanda e planeia empregar mais 1000. Mas estas duas empresas são instrumentais – não têm escritórios nem empregados, apenas um número fiscal.

 

Na realidade, é mais sofisticado que isso.

 

 

Regressemos a 2013, e ao testemunho registado de Tim Cook, CEO da Apple, perante o senado americano num inquérito à política fiscal da empresa. Nesse processo, ficaram a saber-se várias coisas. Que a maior parte das operações da Apple eram geridas através da Apple Operations International, sediada na Irlanda, e que não tinham empregados. Segundo a Apple, essa decisão remontava a 1980 e tinham-se perdido todos os registos que pudessem ajudar a clarificar de que forma as vendas internacionais tinham sido canalizadas por essa via.

 

Entre 2009 e 2011, a mesma Apple Operations International que representou 30% dos lucros mundiais da Apple não pagou impostos de todo, em qualquer parte do mundo, dos Estados Unidos à Irlanda ou à China. Como? Parafraseando o Quartz, que aqui reproduz de forma detalhada os vários movimentos, de uma forma demoniacamente brilhante. Os Estados Unidos taxam uma empresa pela sua localização. A Irlanda taxa uma empresa com base na localização das pessoas que a gerem. Se a empresa está na Irlanda mas as pessoas estão nos Estados Unidos, não pode ser taxada em lado nenhum. Fiscalmente invisível. Ou demoniacamente brilhante, como se queira.

 

Por tudo isto é difícil ficar sensível à postura de dama ofendida assumida pela Apple. Tim Cook tentou divergir a discussão. Disse que não se tratava de saber se a Apple pagava ou não o valor justo em impostos, mas sim de saber quem cobrava esses impostos. Isto para poder argumentar que o acordo com a Irlanda é legal, transparente e que os irlandeses estão satisfeitíssimos com o mesmo.

 

Se calhar estão. O ministro das Finanças irlandês, Michael Noonan, já se mostrou bastante aborrecido com este contratempo que a Comissão Europeia levantou. Não se mostrou nada interessado em recuperar 13 mil milhões de euros, o equivalente a 5% do PIB da Irlanda, o suficiente para, por exemplo, baixar a sua dívida de 94% para 85% do PIB. Na sua perspectiva – e de muitos outros – trata-se de uma ingerência da UE na política fiscal de um país.

 

Michael O’Leary, o patrão da Ryanair, foi mais longe, até porque não é ministro. Disse que a decisão da Comissão era bizarra e que a Irlanda devia simplesmente mandar a UE “fuck off”. Assim mesmo.

 

E, na realidade, Estado e empresários até podem pensar assim. E, na realidade, os números até podem estar do seu lado (ainda que não seja uma evidência). Mas imaginemos que os 13 mil milhões de poupança fiscal à Apple representam mais para a Irlanda do que para a empresa: que valem 10% ou 50% a mais na criação de riqueza? Imaginemos que, feitas as contas, compensa beneficiar largamente uma empresa multinacional em nome do impacto na criação de riqueza e de emprego que essa medida traz ao país. É uma opção que um Estado tem direito de avaliar e de decidir no seu melhor interesse e dos seus cidadãos (mesmo que, no caso da Apple, os 102 mil milhões de dólares das operações no estrangeiro estejam bem guardados em bancos americanos, nomeadamente via o braço financeiro da multinacional com sede no Nevada).

 

Mas, para que esta opção seja transparente deve ter números que a ilustrem – de forma cristalina. Números que inclusive poderiam ou poderão fazer repensar a forma como a Europa no seu conjunto olha para a taxação de empresas e de pessoas.

 

 

E para ser transparente deve também abrir a discussão a outros fóruns. Por exemplo, as startups, a nova esperança da economia europeia e mundial de onde se espera que nasçam as futuras Apples, Googles e Facebooks. Não deveriam usufruir de um regime fiscal altamente competitivo a pensar nos impactos futuros da inovação na criação de emprego e na melhoria global da vida nas nossas sociedades?

 

Sendo transparente e aberta a outros actores, esta opção política não pode descurar o impacto social. Quanto dos valores generosamente subtraídos à factura fiscal das multinacionais sediadas na Irlanda, no Luxemburgo, na Holanda ou noutros países com regimes competitivos resultou em melhoria de condições sociais, no sistema de saúde, nos apoios aos mais carenciados?

 

Estas são questões que os Estados devem responder em nome da liberdade – que devem ter – para de forma transparente atrair investimento que possa gerar riqueza e emprego.

 

Mas tudo isto em nada melhora o que a Apple e outros gigantes tecnológicos são hoje. Empresas sem as quais não imaginamos viver, presentes na nossa vida em qualquer parte do mundo, com uma riqueza que o comum dos mortais não consegue imaginar, mas sem uma ideia  efectiva de comunidade ou de sociedade. Estão em toda a parte, facturam em qualquer lado, mas não pertencem a sítio algum. Têm fundações, apadrinham causas, mas num dos mais elementares actos de cidadania – o de pagar impostos – não são mais que vulgares artistas da contabilidade que dançam a balada da Floribela.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões:

 

Da moral e da lei. Numa semana marcada pela destituição de Dilma Roussef, vale a pena ler este retrato do Brasil feito por Paulo Cardoso de Almeida.

 

Da matemática. Perceber o fascínio da matemática é em grande parte perceber o desafio que representa. É disso que nos fala este artigo do El País.

 

 

publicado às 19:17

Revolução na escola

Por: Pedro Rolo Duarte

É bem mais do que uma notícia, é uma revolução, ou pelo menos o começo de uma revolução: o Governo decidiu oferecer os manuais escolares a todos os alunos do 1º ano de escolaridade.

 

 

Daqui a dias, 80 mil crianças vão começar a vida estudantil com uma aprendizagem dupla: a ler, escrever e contar; mas também a pensar no seu semelhante, na conservação, na sustentabilidade. E nos custos que os seus familiares suportam com a educação.

 

 

Não foi manchete de qualquer jornal, mas devia ter sido. É a primeira medida efectivamente relevante e transversal que vejo tomar-se para começar a pôr alguma ordem na desordem geral do sistema educativo. Não apenas porque se inicia um processo de reutilização de manuais (ninguém espera que funcione a 100% nos primeiros anos…), que beneficia toda a gente - a começar no ambiente e a acabar na bolsa dos pais… -, como se desenha, por fim, a ideia de um programa educativo coerente, consequente e com alguma durabilidade no tempo de aplicação dos programas escolares.

 

 

Claro que a medida teria de ter oposição, a começar na Comissão do Livro Escolar da APEL, que veio argumentar com a liberdade de escolha, com os abatimentos no IRS de quem compra livros escolares, e até mesmo com uma estapafúrdia comparação com os gastos das famílias em roupa… Não surpreende, se pensarmos que esta Comissão é formada por elementos pertencentes aos dois grupos editoriais líderes no comércio dos manuais escolares. O negócio pode derrapar…

 

 

Como não surpreende uma reportagem que revelava o trabalho de propaganda destes grupos editoriais, no momento da escolha dos livros recomendados, juntos dos professores. Presentes de toda a espécie misturam-se com pressões directas, em acções que em tudo se assemelham às que, no passado, levaram os médicos a ter de regular fortemente o trabalho dos famosos “delegados de propaganda médica”.

 

 

Pelos vistos, no mundo da educação há muito por fazer para tornar transparente a política do manual escolar. E nesse sentido, a medida do Governo, que promete ir alargando, no futuro, aos anos seguintes, é não apenas certa e revolucionária - é, ela própria, pedagógica e higiénica para o gigantesco universo que, daqui a poucos dias, começa mais um ano lectivo.

 

 

Às vezes penso que só há más notícias pela manhã. Mas afinal não é sempre assim.

 

 

A ler. Para ler. Lido.

 

 

Em poucas semanas, deixaram-nos dois dos mais relevantes nomes da edição literária das últimas décadas: André Jorge, o homem da “Cotovia”, e agora Fernando Guedes, a alma da antiga “Verbo”. Entre os obituários que lhe fizeram, gostei especialmente daquele que o também editor Jorge Colaço deixou no jornal Observador. É ler…

 

 

Eu já sabia que era viciado em café. Mas agora percebo porquê. E querem saber a verdade? Por mim, pode ser…

 

 

O Facebook e os seus famosos algoritmos continuam a dar que falar. Nesta matéria publicada pelo The Guardian não apenas se conta o que pode acontecer quando se deixa à solta a máquina tecnológica como, em anexo, se publica o testemunho de quem trabalhou justamente no departamento que define o que vemos e não vemos…

publicado às 11:47

Eu ainda sou do tempo em que o Bloco e o PCP…

Por: Paulo Ferreira

Começamos a ter saudades dos velhinhos PCP e Bloco de Esquerda, sempre atentos e vigilantes a tudo o que tivesse um aspecto mais duvidoso nos negócios, fossem eles públicos ou privados. Mas o poder está a “normalizá-los”.

 

 

A grande diferença entre o resgate em curso da Caixa Geral de Depósitos e o de um banco privado é que neste último caso os accionistas podem decidir não ir “a jogo”, recusar o aumento de capital e, com isso, atirar o banco para o colo - e o bolso - dos contribuintes.

 

 

Com a Caixa, banco público, fica tudo em família logo à partida. Os accionistas finais e os contribuintes são uma e a mesma entidade e, portanto, as duas opções são apenas uma: ou pagam ou pagam.

 

 

Dir-se-á que, no caso da Caixa, estamos pelo menos a capitalizar uma empresa que “é nossa”. Isso só em parte é verdade. No passado a Caixa foi mais “deles” do que “nossa”. Deles, entenda-se, empresários, políticos e amigos de políticos que fizeram do banco público o bordel financeiro que se sabe, de agência de emprego a balcão de financiamento a fundo perdido.

 

 

Vamos ter a esperança que a classe política queira, pelo menos para efeitos de registo histórico, perder um pouco de tempo a separar o trigo do joio desse passado para percebermos quem, como e em quanto beneficiou do banco público para interesses privados.

 

 

É precisamente nestes momentos que começamos a ter saudades dos velhinhos PCP e Bloco de Esquerda, sempre atentos e vigilantes a tudo o que tivesse um aspecto mais duvidoso nos negócios, fossem eles públicos ou privados. E, convenhamos, ocasiões não faltaram para deixar a extrema esquerda carregada de razão quando falava da “economia de casino” e das “negociatas do grande capital”. Os capitalistas estão a conseguir em poucos anos o que o marxismo não conseguiu em dois séculos: destruir o capitalismo.

 

 

Mas o poder produz estes milagres. Mudam-se as posições e tudo muda com elas. A brandura e a compreensão com que comunistas e bloquistas aceitam agora que vá mais dinheiro para a banca chega quase a ser enternecedora. Sim, é para a Caixa, banco do Estado. Mas não exigem sequer saber porque é que o banco do Estado precisa de quase 4.000 milhões de euros dos contribuintes? Não era suposto que o banco público, só pelo facto de o ser e com todas as virtudes daí decorrentes, dispensasse estas ajudas típicas de “gangsters financeiros”? Não vão querer apresentar facturas a Joe Berardo, Manuel Fino ou Armando Vara?

 

 

E o envolvimento de capitais privados no plano de capitalização? São mil milhões de euros em obrigações subordinadas. É dinheiro que virá dos grandes grupos financeiros mundiais - até pode vir do Goldman Sachs, quem sabe… -, de fundos de investimento “agiotas”, de fundos de pensões privados que transformam a Segurança Social “num negócio”. Vamos todos pagar juros a esta gente por eles colocarem capitais especulativos na Caixa e ajudarem a viabilizar o plano de recapitalização?

 

 

Aguarda-se também uma posição forte contra os 700 milhões de euros que estão reservados para pagar indemnizações na dispensa de trabalhadores. Sim, serão saídas negociadas que poderão chegar a 3000 funcionários, mas sempre nos habituámos a ter no Bloco de Esquerda e no PCP dois intransigentes defensores do emprego, da manutenção dos postos de trabalho existentes e da criação de mais. Ainda que patrões e empregados possam estar aparentemente de acordo sobre a rescisão dos contratos, restam sempre dúvidas sobre a pressão e a eventual coação que possam existir para reduzir a folha de salários.

 

 

E é assim que vamos assistindo à “normalização” do Bloco e do PCP.

 

 

 

Nos últimos anos, quando havia um crescimento económico de 1,1% o PCP dizia que isso era “apenas o abrandamento do ritmo da recessão”. Agora o PIB cresce um quarto desse valor e não se ouvem os comunistas. Quando a taxa de desemprego começou a cair dizia-se que “os números do desemprego reflectem cada vez menos a realidade do mercado de trabalho”. Imagina-se que agora, por mágica, os números que são calculados da mesma forma pelas mesmas entidades, já sejam verdadeiros.

 

 

E a forma como ambos os partidos reagiram ao caso das viagens de membros do governo a convite da Galp são, nesta matéria, o teste do algodão: o exercício do poder desfigura muita gente.

 

 

É “realpolitik”, dir-se-á. Alguns fins considerados mais importantes obrigam a muito contorcionismo nos meios. É possível. Mas não deixa de ser perturbador que padrões éticos e de separação de águas que pareciam tão exigentes e tão diferenciadores dos partidos do “arco do poder” possam cair, afinal, à primeira necessidade de circunstância.

 

 

Provavelmente, a grande diferença que nestas matérias nos habituámos a constatar entre o BE e o PCP, por um lado, e o PS, o PSD e o CDS, por outro, não está na ideologia nem na “massa” de que são feitos os homens e mulheres. Está apenas no poder que se tem ou não.

 

 

Outras leituras

 

 

Aqui ao lado, em Espanha, há quase um ano que não há um governo em plenitude de funções. E, olhando para a economia, até não está a correr mal de todo…

publicado às 11:16

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2015
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D