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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

Isto não é um país, é um campeonato de narrativas

Por: Paulo Ferreira

Nenhum país sobrevive se apenas puder optar entre velhas ilusões e novas privações. Mas é com isso que governo e oposição de direita estão a confrontar o país. 

 

 

Se o povo se alimentasse de narrativas éramos o país mais obeso do mundo. E se as narrativas significassem prosperidade seríamos o farol das civilizações.

 

 

Tudo, hoje, está reduzido a narrativas. Não há confronto de propostas políticas. Há uma guerra de narrativas. Não há governação nem alternativas. Há argumentários que têm como único objectivo sacudir a água do respectivo capote.

 

 

A indigência reinante tem um problema: as narrativas colocam-nos sempre a discutir o passado e não se vê ninguém preocupado com o futuro e com os caminhos que possam resgatar-nos da enrascada permanente em que nos vamos acostumando a viver.

 

 

O mais largo que os agentes políticos conseguem ver são três meses: como vai ser o Orçamento para 2017? Vai ter mais austeridade? Como vai ser apresentado a Bruxelas? Antes ou ao mesmo tempo que entra no Parlamento? E como se convence, de uma assentada, Wolfgang Schauble, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa?

 

 

Certo, certo é que, aconteça o que acontecer, por alturas do Natal teremos em cena duas narrativas alternativas sobre o que entretanto se passar.

 

 

Desde o famosíssimo PEC IV que as narrativas tomaram o centro do palco político. A culpa foi tua. Não, foi tua. A esquerda atirou-nos para o “buraco”. A direita está a escavar o “buraco”. Uns porque chamaram a troika depois de levarem o país à bancarota. Outros porque foram além da troika.

 

 

Não há paciência. Banif, Novo Banco, Caixa Geral de Depósitos, sanções de Bruxelas, crescimento económico, desemprego, investimento, exportações, consumo privado, execução orçamental, défice público, dívida, credibilidade externa, emigração, tudo, mas rigorosamente tudo, está reduzido a longas disputas sobre culpados e graus de culpa.

 

 

Claro que toda a esta discussão é estéril de qualquer proveito para o país. Primeiro porque o rigor dos factos é, por regra, a primeira vítima neste tipo de algazarras. Depois porque a honestidade intelectual de alguns dos principais protagonistas partiu há muito para parte incerta, se é que alguma vez ali habitou.

 

 

E ainda que isto fosse conduzido com o mínimo de elevação, teria apenas o valor de uma autópsia: com o mal irremediavelmente consumado, resta apurar causas. Só para que conste.

 

 

Este ambiente podre tomou conta da prática política porque as coisas estão a correr mal. Correm mal ao governo, herdeiro legítimo da delinquência orçamental socialista. E tudo servirá para justificá-lo. Será culpa da herança, do estado da banca, do Brexit, de Bruxelas, da economia internacional, dos mercados, das agências de rating ou dos empresários que estão contra esta solução política. Será culpa de tudo menos da acção e das opções do próprio governo, claro está.

 

 

Este é mais um projecto de comunicação do que de governação, à procura de criar na generalidade da população uma sensação de melhoria enquanto se esperam eleições.

 

 

Do lado da oposição a prática não é melhor. Tudo também preso a narrativas, uma tentativa de ditar posições apenas para que fiquem registadas em acta. Mas não se vê ali a construção de qualquer alternativa estruturada que vá além do “a culpa é do governo”.

 

 

Nenhum país sobrevive se apenas puder optar entre velhas ilusões e novas privações. Mas é com isso que governo e oposição de direita estão a confrontar o país.

 

 

Isto está a correr mal ao governo mas também à oposição. Mas sobretudo corre mal ao país, que não vê como vamos sair daqui. E não há guionistas que consigam fazer disto uma boa narrativa porque neste campeonato não há vitórias morais.

 

 

 

Outras leituras

 

 

Orban e Trump, ambos muito bem acompanhados um pelo outro. Nada de bom se pode esperar quando o populismo e o radicalismo assumem os comandos.

 

 

Tudo indica que vem aí multa para Portugal, embora relativamente leve. O Governo já anunciou que vai processar a Comissão Europeia. Chegará para mostrar serviço aos parceiros que apoiam o Governo ou o Bloco cumpre a ameaça e propõe formalmente um referendo sobre a Europa?

publicado às 00:35

Portugueses e franceses: mas qu‘est-ce qu‘il se passe com os nossos íntimos vizinhos

 Por: Bruno Lorvão *

 

Somos campeões europeus de futebol há uma semana, e desde há dois dias que sofremos em francês com Nice. Esta é uma reflexão sobre portugueses e franceses, o que os une e o que os separa. Entre o conto de fadas e o filme de terror, há uma realidade feita de cumplicidade, oportunidade e algumas desinteligências.

 

 

Maus perdedores, arrogantes, condescendentes. Os qualificativos para depreciar este grande, e histórico, vizinho que é a França inundam a teia portuguesa. Como que para acrescentar valor à nossa sofrida, mas merecida, vitória, queremos acreditar que o desleal adversário nada fez para realçar e felicitar o talento dos nossos jogadores. Neste papel de David contra Golias, somos os pequenos lusos, mas bons, que derrubaram o vilão, muito vilão, gaulês. O franco-português que eu sou, fã incondicional da equipa das Quinas, não pode aceitar tão simples conto de fadas. Venho então pedir a todos os portugueses, que consideram que o adversário da final foi mal perdedor, muito bem, que sejam, por sua vez, bom ganhadores.

 

Deste simples evento desportivo sobressai por todos os lados a relação complexa, e cheia de complexos, que une os dois países. Os 1,200.000 portugueses, luso-descendentes, franco-portugueses que habitam o território francês são a prova evidente desta relação.

 

Não contesto que o olhar dos franceses sobre nós está repleto de caricaturas, como a da Linda de Suza e da sua mala de cartão, do português pedreiro e da portuguesa porteira, assim como a nossa alimentação que se limita a comer bacalhau ao pequeno almoço, almoço e jantar. É verdade que muitos dos nossos compatriotas foram recebidos em bairros de lata nos anos 60 e 70 e que foi com imenso espírito de sacrifício e humildade, longe de casa, que conseguiram oferecer uma vida aos filhos nascidos no país de exílio. Mas seria injusto limitar a nossa relação mútua a simplificações, alguns dirão mesmo racismo.

É necessário ir além do folclore.

 

Para dizer a verdade, o povo francês, na sua grande maioria, gosta de nós. Gosta de nós, por uma variedade de razões, e ficariam surpreendidos ao descobrir quão bem nos conhecem alguns franceses. A imagem de um povo trabalhador que é transmitida por uma comunidade coesa, a portuguesa, contribui muito para este sentimento positivo, mas este não se limita à presença dos imigrantes. Paris é, por exemplo e sem qualquer dúvida, o centro nevrálgico da produção de cinema português. Sem o público francês, autores como Manoel de Oliveira ou João César Monteiro nunca teriam conseguido a obra cinematográfica única que os define. Nos circuitos literários, Pessoa, Saramago, Lobo Antunes são lidos como autores de talento e de valor universal. O mesmo se passa com a música da esfera lusófona. Melhor, não é raro ouvir em França pessoas que pensam em emigrar para Portugal, e não falo só de reformados. Porto, Lisboa, a Costa Vicentina, o Alentejo são destinos que encantaram muito dos franceses que por ali passaram. Finalmente, e longe de ser um detalhe, não diria todos, mas quase todos os franceses tem um amigo português, e isto não engana.

 

Estes amigos luso-descendentes, filhos de pedreiros e porteiras, são hoje o orgulho da mãe e do pai. Formaram-se e hoje são engenheiros, banqueiros, mas também padeiros no pais do pão, políticos, ou mesmo pedreiros à frente de PME com êxito. A França ofereceu a estes filhos de imigrantes o que os pais não conseguiram em casa. Um exemplo, nascido em Cascais, emigrado aos 3 anos, o jornalista de investigação Paulo Moreira, uma referência na profissão, é a prova vigente que, no final a França, foi generosa com os filhos da nossa nação, e soube aproveitar os talentos dos recém-chegados.

 

 

Tocamos aqui num tema menos confortável da relação do português de Portugal com a França e, mais especificamente, com os imigrantes que por lá se instalaram, os “ça-vas” e os “avecs”. Estas mulheres e homens, filhas e filhos de portugueses fazem parte do mal-entendido que existe entre os dois povos. Todos os anos durante o mês de agosto, visitam a pátria das suas origens, têm como nome Céline ou Adrien, têm um português aproximativo, cheio de francesismos, falam alto, e ocupam de maneira brutal o espaço que deixaram os pais quando deram “o salto”. E isto incomoda.

 

Eles rememoram-nos, com muito desconforto, que a nação lusitana apesar da sua extraordinária e genuína Historia não soube reter as gerações futuras. E é sempre mais confortável pensar que por lá, onde criaram uma nova vida, voltaram menos portugueses e mal educados e arrogantes … como os franceses, claro. A França, sem querer, participa desta relação cheia de mágoa inter-portugueses. O lema escolhido pela Federação Portuguesa de Futebol para apoiar a seleção, “Não somos 11, somos 11 milhões”, é o exemplo mais notável da desconfortável relação de Portugal com os seus emigrantes que pelo mundo se encontram. Não há margem para dúvida que, bem feitas as contas, somos bem mais do que 11 milhões.

 

Durante mais de um mês, à frente da sede da seleção em Marcoussis, milhares de portugueses, filhos de portugueses, netos de portugueses e até mesmo amigos de portugueses foram apoiar os nossos 23 guerreiros. Para este povo bi-nacional, a equipa das Quinas é o eixo central da relação que os une a Portugal e que lhes dá orgulho de ser português em França. O pequeno Mathis, que foi reconfortar o adolescente francês destroçado pela derrota dos “bleus”, é o simbolo mais forte desta identidade mestiça que nasceu da nossa intíma história recente. Este pequeno luso-descendente francófono e seguidor da seleção é um belo exemplo do que une os dois países.

 

 

Voltando ao tema da final do Euro 2016. Tenho que admitir que os franceses reagiram com alguma (eufemismo) má fé depois da derrota contra Portugal. Não nos esqueçamos, no entanto, que o mesmo nos aconteceu há 12 anos. A seleção então chefiada por Luis Figo e Rui Costa tinha um dos melhores estilos de jogo daqueles anos. Os gregos chegaram com um implacável pragmatismo e “roubaram-nos” o nosso Euro. Foi exatamente a nossa tática este ano e deu resultado. Não tínhamos habituados os franceses ao nosso lado “germano-pragmático”. Para eles, a equipa de Portugal era a representante europeia do futebol samba. Perder contra um Portugal calculista fica-lhes na garganta. Mas isto são conversas de bola. Nada de grave.

 

Desde de domingo, tenho recebido dezenas de mensagens, dos meus tais amigos franceses, que me felicitaram pela vitória portuguesa, realçando o facto de ainda não termos nenhum título e que esta “anormalidade” tinha sido emendada. Por esta e outras razões, em cima assinaladas, deixemos aos nossos íntimos vizinhos gauleses “engolir” a derrota caseira e tudo voltará ao normal.

 

 

* Bruno Lorvão é português, realizador, e vive em França há 20 anos.

publicado às 10:09

A viver no “buraco” é que nós estamos bem

Por: Paulo Ferreira

 

Entretidos em discussões rascas e estéreis entre blocos partidários já perdemos o fio ao essencial (admitindo bondosamente que alguma vez o tivemos): como saímos desta enrrascada que se vai arrastando, uma vezes melhor e outras pior, mas sem que haja uma estratégia entendível que garanta o mínimo dos padrões europeus aos nossos filhos e netos?

 

Portugal e Espanha estão no mesmo barco das sanções europeias. Com números diferentes, é certo, mas sujeitos ao mesmo procedimento e à mesma pressão de Bruxelas para que tomem mais medidas para garantir a descida do défice do Estado.

 

Mas o alarido em Espanha tem sido incomparavelmente menor do que aquele que o tema tem suscitado em Portugal. Basta ver o tratamento e destaque que os principais órgãos de comunicação social espanhós têm dedicado ao assunto para perceber isso.

 

Neste caso, a diferença entre os dois países é simples: ao contrário do que aconteceu por cá, em Espanha não houve mudança de governo e o primeiro-ministro que falhou as metas nos últimos anos é o mesmo que agora está a lidar com as consequências (embora agora em governo de gestão).

 

A partidarização da discussão política em Portugal atinge a náusea por diversas vezes e este caso é um bom exemplo disso, com infantis trocas de acusações sobre quem é o culpado ou quem fez ou não fez o que devia para evitar as sanções.

 

Muito provavelmente, as eventuais penalizações de Bruxelas serão mais simbólicas do que financeiramente efectivas. Nesse sentido, elas terão mais importância para o ordenamento europeu do que para as contas de cada país. A Comissão Europeia está a tentar dar o sinal de que acabou a violação impune de regras, prática seguida em década e meia de limites ultrapassados sem penalizações aos faltosos. A partir daqui, só faltará que todos os países em situações semelhantes mereçam o mesmo tratamento.

 

A reprimenda oficial de Bruxelas pode, de facto, ser mais um prego no caixão da credibilidade do país junto dos mercados, dos analistas, das agências de rating e dos investidores. No fundo, junto de todos aqueles de que dependemos para financiar os défices e o cumprimento das obrigações da dívida.

 

Isto e as associadas condições de competitividade que o país tem ou não tem deviam preocupar-nos bem mais do que as brigas entre o PSD e o PS, que são apenas para consumo interno da opinião pública e mercado eletoral, ou entre o Governo e a Comissão Europeia sobre a necessidade de se avançar com mais medidas este ano que garantam o cumprimento das metas.

 

Neste caso, estamos perante o clássico braço-de-ferro mediático que terá sempre um desfecho, cedo ou tarde. Foi assim com a Grécia mas também com o esboço do orçamento português deste ano, que Bruxelas recusou e obrigou a rever. Com mais ou menos ilusão na execução orçamental, esse momento da verdade chegará sempre. Se não for agora será com a apresentação do orçamento de 2017, daqui a três meses.

 

Entretidos nestas discussões rascas e estéreis entre blocos partidários e com merecidos intervalos lúdicos pelo meio, já perdemos o fio ao essencial (admitindo bondosamente que alguma vez o tivemos): como saímos desta enrrascada que se vai arrastando, uma vezes melhor e outras pior, mas sem que haja uma estratégia entendível que garanta o mínimo dos padrões europeus aos nossos filhos e netos?

 

O mercado caseiro é curto e sempre o será, por mais rendimentos que se reponham mesmo sem que se faça a pergunta sobre como se pagam essas reposições.

 

O investimento, sobretudo estrangeiro e criador de novos projectos e empregos, não aparece. Não é a mesma coisa vender empresas instaladas a chineses ou angolanos ou atrair esses ou outros para construirem de raíz a fábrica, o centro de investigação e desenvolvimento ou o entreposto comercial e logístico para a Europa.

 

A Segurança Social é uma bomba relógio com que continuamos a brincar sem que haja um entendimento mínimo sobre o que fazer. Alegram-nos os 30 ou 40 cêntimos de aumento das pensões mínimas quando o debate devia ser sobre como vão ser pagas todas as pensões na próxima década e nas seguintes.

 

Da racionalização do Estado e da despesa pública deixou de se falar porque se acha que essa é uma conversa dos loucos ortodoxos de Bruxelas ou de alegados neo-liberais. É um erro. A racionalização do Estado não é um fim, é um meio. A margem de manobra fiscal que pode ser dada para atrair investimento virá dessa racionalização. Ninguém consegue pensar e executar uma estratégia se passa os dias focado no desenrascanço e na urgência do pagamento das contas que vão chegar amanhã.

 

É deprimente ir percebendo que não aprendemos com os erros nem nos inspiramos com exemplos que podemos ir buscar a muitos outros países. O mais clássico, salvaguardando as devidas diferenças estruturais, é a Irlanda. Foi resgatada como nós. Cresceu 26% no ano passado  quando contabilizado o fluxo de investimento estrangeiro. Mas mesmo descontando esse efeito atípico, o crescimento foi de 7,8% em 2015. Porque tem um IRC muito baixo e boas condições de competitividade? Claro. Mas são eles que estão errados ou seremos nós?

 

 

Outras leituras

  • Um exemplo do desleixo reinante. O mandato de Carlos Tavares na presidência da CMVM terminou há dez meses. Mas os governos não quiseram, não conseguiram ou não acharam prioritário até agora escolher e nomear um sucessor. Além do desrespeito pessoal, o que fica é o absoluto desprezo pelas instituições e pelo seu regular funcionamento, pelas condições dadas para definir e executar estratégias. Uma vergonha.
  • António Guterres na ONU seria, provavelmente, a pessoa certa no lugar certo. Menos bem remunerado, certamente, mas muito mais prestigiante do que um lugar no Goldman Sachs.

 

 

publicado às 11:45

O que podemos aprender com a seleção?

Por: António Costa

 

Portugal é campeão europeu de futebol, um destino que estava longe de estar nas estrelas, foi uma vitória improvável de uma equipa em que poucos acreditavam e de um líder – Fernando Santos – que deitou fora o que é a tradição de jogar bem e de ser o campeão moral. Uma equipa eficiente, produtiva e com objetivos definidos, exatamente o que o país precisa de ser.

 

Os portugueses são românticos, e também no futebol. Foi por isso que aos primeiros jogos, a relação entre os adeptos e a equipa era de puro interesse, sem qualquer amor. Portugal não tinha os melhores jogadores – bem, tinha um, Ronaldo, que não estava no seu melhor -, foi por isso construindo uma equipa. Jogo a jogo, Portugal jogou para ganhar, jogou até para empatar, porque pôs em primeiro lugar os objetivos e não a estética.  À medida que o campeonato avançava – foram sete jogos sem perder um único -, a equipa reconstruiu-se em função das suas próprias fragilidades, mas sempre com uma prioridade, a de chegar à final do Europeu.

 

O futebol é mesmo uma das atividades, muito poucas, em que Portugal aparece à frente dos rankings internacionais, já era, e mesmo assim a seleção nunca tinha ganho uma grande competição. Uma final europeia, duas meias-finais e dois quartos-de-final nos últimos 12 anos só servem para perceber que, no momento da decisão, os portugueses falhavam. Por várias razões, por incapacidade para sofrer, por inexperiência, por falta de foco, por ineficiência nos momentos certos, por correr muito e correr mal. Não é isto, também, do que padece a economia portuguesa?

 

Os rankings internacionais mostram, por exemplo, que Portugal é dos países em que os trabalhadores trabalham mais horas e são menos produtivos do que outros, até do que outros portugueses que estão noutros ambientes laborais. Quando analisamos o percurso desta seleção, a capacidade de sacrifício, a compreensão do que era a sua realidade e os seus meios, a definição de objetivos e de metas claras e a fixação de um plano de trabalho, percebemos que a economia portuguesa seria mais produtiva se aplicasse estes princípios de forma consistente e metódica.

 

As crónicas do dia seguinte – o novo dia desportivo da Nação, 10 de julho – sublinham o que é hoje claro para todos. Portugal não tinha os melhores jogadores, mas foi a melhor equipa, com carácter, mesmo e sobretudo quando todas as probabilidades apontavam no sentido contrário, logo aos 8 min quando Ronaldo foi afastado do jogo mais importante da sua carreira. Quando o que todos apelidavam de pior jogador da equipa se supera e marca o golo decisivo. A crueldade é bela, como escreve o jornal espanhol El Mundo.

 

E seria uma injustiça, neste dia, não recordar o que foram os últimos anos na Federação Portuguesa de Futebol, o planeamento, a preparação, as condições para as seleções mais jovens, até a nova casa das seleções, no Jamor. Faz tudo parte de uma forma de preparar uma equipa que deveria ter seguidores. É isto que podemos aprender com a seleção.

 

 

As escolhas

As primeiras escolhas, claro, só podem ser desportivas.  E se as vitórias são importantes, ganhar em França, aos franceses, tem alguma coisa de poético. Especialmente para os emigrantes, tantas centenas de milhar, de primeira, segunda e até já terceira geração, uma ‘gaiola dourada’ tão bem retratada no filme de Ruben Alves. Como pode ler em www.publico.pt.

 

É claro, a vida não é feita apenas de futebol, e hoje há uma primeira reunião do Eurogrupo, os ministros das Finanças do euro, que vão discutir eventuais sanções a Portugal e Espanha. Amanhã será a vez do Ecofin, o encontro dos ministros das finanças da União Europeia. Caberá agora a António Costa fazer de Fernando Santos, se quiser e souber.

 

Tenham uma boa semana.

 

publicado às 12:34

Todos diferentes, todos bons rapazes portugueses!

Por: Márcio Alves Candoso

 

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Vamos falar de futebol. Um português nascido no Brasil corta uma jogada perigosa da equipa adversária na sua grande-área. A bola é recolhida por um preto da Musgueira, que avança no terreno até ter a noção do melhor passe. Manda o esférico para um mulato da Amadora, que a mete num menino branco e pobre da Madeira. Este remata à baliza, mas o guarda-redes contrário só tem tempo de a defender para um espaço vazio. Nesse mesmo sítio, surge um cigano e marca golo.

 

A ocorrência é verídica. Aconteceu na semana passada, aos 117 minutos de um jogo que, normalmente, só dura 90, e chegou e sobrou para que a selecção nacional de Portugal derrotasse a perigosa Croácia. Esta é a história de 23 rapazes, entre os 18 anos e os trinta e muitos, que têm em comum vestir a camisola das quinas e a cruz da Federação Portuguesa de Futebol. Falam todos português, ainda que um ou outro o conjugue malzinho. Nas suas origens, está um país pequenino, que andou pelo mundo inteiro, muito coeso na sua diferença. São todos portugueses. A nenhum lhe passará pela cabeça meter uma bomba no Rossio. Agnósticos, ateus ou cristãos, não importa. Um tem antepassados judeus. Todos filhos da cultura lusitana.

 

Há gente de todo o lado. Rui Patrício é de Marrazes (Leiria), e divide a baliza com Anthony Lopes, que nasceu nos arredores de Lyon (França) e Eduardo, um trasmontano de Mirandela. Na defesa, Cédric Soares é o actual lateral direito. Veio da Alemanha, nascido mesmo ao lado da fronteira com a Suíça, mas chegou a Portugal – zona de Lisboa - com apenas dois anos, trazido pelos pais emigrantes. Divide o lugar com Vieirinha, um rapaz de Guimarães. À excepção do guarda-redes titular, que actua no Sporting, jogam todos no estrangeiro.

 

No meio da defesa está um mestiço que fala à Norte. E nem podia ser de outra maneira, já que Bruno Alves nasceu e foi criado na Póvoa de Varzim. É filho da antiga glória local, o brasileiro Washington. Tem estado no banco, dando o lugar a Ricardo Carvalho, o mais velho da selecção, que começou a carreira na sua terra natal – Amarante. Parece ter perdido a titularidade, por sua vez, para José da Fonte, um seu vizinho de Penafiel. Já Pepe – mais exactamente Képler Laveran Lima Ferreira – veio de Alagoas (Brasil) com 18 anos, para tentar a sua sorte no Marítimo. Depois de Deco, foi o segundo brasileiro a envergar a camisola da selecção nacional; mas, ao contrário do ‘mágico’, cedo aprendeu o hino que canta sempre antes do jogo começar.

 

No lado esquerdo da defesa, um açoriano mestiço e um branco nascido em França dividem o lugar. Eliseu nasceu num bairro de Angra do Heroísmo (Terceira), filho de pais cabo-verdianos, e é o primeiro jogador do arquipélago a tornar-se campeão nacional desde que Mário Jorge e Mário Lino o fizeram nas décadas de 50 e 70. Mas, ao contrário dos seus conterrâneos, não veste a camisola do Sporting – é benfiquista desde pequenino. Para encontrar um benfiquista açoriano campeão, é preciso recuar até aos anos 40, altura em que o faialense Joaquim Teixeira envergou a camisola do ’Glorioso’ e da selecção. Açoriano e benfiquista era o Mário Bettencourt Resendes, saudoso campeão de jornalismo; outras ‘guerras’...

 

Raphael Guerreiro – é mesmo assim, com ‘ph’ – nasceu canhoto perto de St.Denis, no nordeste de Paris. Jogar no Stade de France, se Portugal chegar à final, será para ele quase um regresso a casa, depois de ter passado os anos mais recentes na Bretanha e de agora rumar a Dortmund, na Alemanha. O pai emigrante também foi jogador de futebol. Gostava de actuar no Benfica, mas para já ainda não foi possível.

 

No meio-campo, a parte mais defensiva – a chamada ‘posição seis’ - é dividida entre dois rapazes de Sintra. Danilo Pereira veio de Bissau (Guiné) e William Carvalho tem ascendência angolana. Mais à frente aprece Adrien Sébastian Pérrouchet Silva, nascido em Angoulême e criado em Arcos de Valdevez. A 650 quilómetros de distância da terra minhota, nasceu João Moutinho,’marafado’ de Portimão. Já Rafael Silva, mais conhecido por Rafa, é um dos dois únicos lisboetas de gema a actuar na selecção.

 

No Porto, mais concretamente em Pedras Rubras, nasceu João Mário, que havia de tomar o avião para Lisboa para representar o Sporting. É de família angolana - os pais são de Luanda – e tem dois irmãos na alta roda do futebol – o bracarense Wilson Eduardo e o jogador de futsal do Belenenses, Hugo Eduardo. Seu vizinho de nascimento é André Gomes – Grijó, Gaia -, que cedo rumou ao Benfica de agora actua no Valência de Espanha.

 

O puto da selecção é uma obra do bairro da Musgueira, em Lisboa. Mas como tantos dos seus companheiros de infância, nasceu filho de africanos – uma cabo-verdiana e um são tomense. Renato Sanches acaba de ser vendido ao Bayern. Já Ederzinho António Macedo Lopes – cujo diminutivo é Éder – veio da Guiné com tenra idade para a zona centro do país. Distinguiu-se na Académica.

 

Sobram os três ases deste baralho de naipes coloridos. São também os mais conhecidos, neste desporto onde quem vai à frente e marca mais golos é menino querido das multidões. Luís Carlos Almeida da Cunha – mais conhecido por Nani – nasceu na Amadora e começou no Massamá, terra de descendentes africanos e de primeiros-ministros migrantes. Os pais são cabo-verdianos, onde nasceram igualmente os seus irmãos.

 

Já Ricardo Quaresma é mais que uma mistura, é várias. A mãe é uma angolana morena e o pai – de que há pouca memória – é cigano. Nascido e criado em Lisboa, é sobrinho-neto do grande Artur Quaresma, que foi campeão no Belenenses. O ’Harry Potter’ – nome que lhe vem da magia que faz com os dois pés – joga agora na Turquia.

 

Deixei para o fim o menino pobre que fez o passe para o golo no jogo contra a Croácia, e que no desafio com a Hungria tinha já marcado dois, um do tipo ‘mostra lá outra vez, que eu até troquei os olhos’ e outro de cabeça. A ‘primeira exportação da Madeira’ - bate a banana, segundo a mãe dele – está cotado como o melhor jogador do mundo. É também o desportista mais bem pago do planeta, e já bateu quase todos os recordes que há para bater. Hoje tem pela frente o recorde de Platini, o jogador que até hoje marcou mais golos em campeonatos da Europa de futebol. Falta-lhe um para igualar, com dois passa a ser o maior. Chama-se Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro.

 

Vêm de todo o lado. Não têm em comum a raça. Têm a raça portuguesa. E agora venha de lá a Polónia!

 

PS – Já que falamos de pessoas unidas na diferença, aqui fica uma anedota que os polacos contam. Uma vez, durante a II Guerra Mundial, as SS alemãs invadiram uma pequena vila polaca e fizeram refém toda a população. Um jovem conseguiu fugir à vigilância nazi, mas pouco depois tinha as SS no seu encalço. Um dos soldados apontou a arma com intenção de abater o rapaz. Mas do Céu chegou a voz de Deus. ‘- Pára, não podes fazer isso, esse rapaz vai ser Papa!’, falou lá do alto Deus. O soldado tremeu, baixou a arma e perguntou:’ – Senhor, e eu?’.. ‘- Tem calma tu vais a seguir!’…

publicado às 12:42

Todos diferentes, todos bons rapazes portugueses!

Por: Márcio Alves Candoso

 

Vamos falar de futebol. Um português nascido no Brasil corta uma jogada perigosa da equipa adversária na sua grande-área. A bola é recolhida por um preto da Musgueira, que avança no terreno até ter a noção do melhor passe. Manda o esférico para um mulato da Amadora, que a mete num menino branco e pobre da Madeira. Este remata à baliza, mas o guarda-redes contrário só tem tempo de a defender para um espaço vazio. Nesse mesmo sítio, surge um cigano e marca golo.

A ocorrência é verídica. Aconteceu na semana passada, aos 117 minutos de um jogo que, normalmente, só dura 90, e chegou e sobrou para que a selecção nacional de Portugal derrotasse a perigosa Croácia. Esta é a história de 23 rapazes, entre os 18 anos e os trinta e muitos, que têm em comum vestir a camisola das quinas e a cruz da Federação Portuguesa de Futebol. Falam todos português, ainda que um ou outro o conjugue malzinho. Nas suas origens, está um país pequenino, que andou pelo mundo inteiro, muito coeso na sua diferença. São todos portugueses. A nenhum lhe passará pela cabeça meter uma bomba no Rossio. Agnósticos, ateus ou cristãos, não importa. Um tem antepassados judeus. Todos filhos da cultura lusitana.

 

Há gente de todo o lado. Rui Patrício é de Marrazes (Leiria), e divide a baliza com Anthony Lopes, que nasceu nos arredores de Lyon (França) e Eduardo, um trasmontano de Mirandela. Na defesa, Cédric Soares é o actual lateral direito. Veio da Alemanha, nascido mesmo ao lado da fronteira com a Suíça, mas chegou a Portugal – zona de Lisboa - com apenas dois anos, trazido pelos pais emigrantes. Divide o lugar com Vieirinha, um rapaz de Guimarães. À excepção do guarda-redes titular, que actua no Sporting, jogam todos no estrangeiro.

 

No meio da defesa está um mestiço que fala à Norte. E nem podia ser de outra maneira, já que Bruno Alves nasceu e foi criado na Póvoa de Varzim. É filho da antiga glória local, o brasileiro Washington. Tem estado no banco, dando o lugar a Ricardo Carvalho, o mais velho da selecção, que começou a carreira na sua terra natal – Amarante. Parece ter perdido a titularidade, por sua vez, para José da Fonte, um seu vizinho de Penafiel. Já Pepe – mais exactamente Képler Laveran Lima Ferreira – veio de Alagoas (Brasil) com 18 anos, para tentar a sua sorte no Marítimo. Depois de Deco, foi o segundo brasileiro a envergar a camisola da selecção nacional; mas, ao contrário do ‘mágico’, cedo aprendeu o hino que canta sempre antes do jogo começar.

 

No lado esquerdo da defesa, um açoriano mestiço e um branco nascido em França dividem o lugar. Eliseu nasceu num bairro de Angra do Heroísmo (Terceira), filho de pais cabo-verdianos, e é o primeiro jogador do arquipélago a tornar-se campeão nacional desde que Mário Jorge e Mário Lino o fizeram nas décadas de 50 e 70. Mas, ao contrário dos seus conterrâneos, não veste a camisola do Sporting – é benfiquista desde pequenino. Para encontrar um benfiquista açoriano campeão, é preciso recuar até aos anos 40, altura em que o faialense Joaquim Teixeira envergou a camisola do ’Glorioso’ e da selecção. Açoriano e benfiquista era o Mário Bettencourt Resendes, saudoso campeão de jornalismo; outras ‘guerras’...

 

Raphael Guerreiro – é mesmo assim, com ‘ph’ – nasceu canhoto perto de St.Denis, no nordeste de Paris. Jogar no Stade de France, se Portugal chegar à final, será para ele quase um regresso a casa, depois de ter passado os anos mais recentes na Bretanha e de agora rumar a Dortmund, na Alemanha. O pai emigrante também foi jogador de futebol. Gostava de actuar no Benfica, mas para já ainda não foi possível.

 

No meio-campo, a parte mais defensiva – a chamada ‘posição seis’ - é dividida entre dois rapazes de Sintra. Danilo Pereira veio de Bissau (Guiné) e William Carvalho tem ascendência angolana. Mais à frente aprece Adrien Sébastian Pérrouchet Silva, nascido em Angoulême e criado em Arcos de Valdevez. A 650 quilómetros de distância da terra minhota, nasceu João Moutinho,'marafado' de Portimão. Já Rafael Silva, mais conhecido por Rafa, é um dos dois únicos lisboetas de gema a actuar na selecção.

 

No Porto, mais concretamente em Pedras Rubras, nasceu João Mário, que havia de tomar o avião para Lisboa para representar o Sporting. É de família angolana - os pais são de Luanda – e tem dois irmãos na alta roda do futebol – o bracarense Wilson Eduardo e o jogador de futsal do Belenenses, Hugo Eduardo. Seu vizinho de nascimento é André Gomes – Grijó, Gaia -, que cedo rumou ao Benfica de agora actua no Valência de Espanha.

 

O puto da selecção é uma obra do bairro da Musgueira, em Lisboa. Mas como tantos dos seus companheiros de infância, nasceu filho de africanos – uma cabo-verdiana e um são tomense. Renato Sanches acaba de ser vendido ao Bayern. Já Ederzinho António Macedo Lopes – cujo diminutivo é Éder – veio da Guiné com tenra idade para a zona centro do país. Distinguiu-se na Académica.

Sobram os três ases deste baralho de naipes coloridos. São também os mais conhecidos, neste desporto onde quem vai à frente e marca mais golos é menino querido das multidões. Luís Carlos Almeida da Cunha – mais conhecido por Nani – nasceu na Amadora e começou no Massamá, terra de descendentes africanos e de primeiros-ministros migrantes. Os pais são cabo-verdianos, onde nasceram igualmente os seus irmãos.

 

Já Ricardo Quaresma é mais que uma mistura, é várias. A mãe é uma angolana morena e o pai – de que há pouca memória – é cigano. Nascido e criado em Lisboa, é sobrinho-neto do grande Artur Quaresma, que foi campeão no Belenenses. O 'Harry Potter' – nome que lhe vem da magia que faz com os dois pés – joga agora na Turquia.

 

Deixei para o fim o menino pobre que fez o passe para o golo no jogo contra a Croácia, e que no desafio com a Hungria tinha já marcado dois, um do tipo ‘mostra lá outra vez, que eu até troquei os olhos’ e outro de cabeça. A ‘primeira exportação da Madeira’ - bate a banana, segundo a mãe dele – está cotado como o melhor jogador do mundo. É também o desportista mais bem pago do planeta, e já bateu quase todos os recordes que há para bater. Hoje tem pela frente o recorde de Platini, o jogador que até hoje marcou mais golos em campeonatos da Europa de futebol. Falta-lhe um para igualar, com dois passa a ser o maior. Chama-se Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro.

 

Vêm de todo o lado. Não têm em comum a raça. Têm a raça portuguesa. E agora venha de lá a Polónia!

 

P.S. – Uma vez, durante a II Guerra Mundial, as SS alemãs invadiram uma pequena vila polaca e fizeram refém toda a população. Um jovem conseguiu fugir à vigilância nazi, mas pouco depois tinha as SS no seu encalço. Um dos soldados apontou a arma com intenção de abater o rapaz. Mas do Céu chegou a voz de Deus. "Pára, não podes fazer isso, esse rapaz vai ser Papa!", falou lá do alto Deus. O soldado tremeu, baixou a arma e perguntou: "Senhor, e eu?". "Tem calma tu vais a seguir!"…

 

publicado às 12:34

O meu Euro é uma foto da Albânia

Por: Márcio Alves Candoso

 

Qual das duas melhores exportações da Madeira é a imagem mais adequada para Portugal? A pequena mas doce banana ou o grande e por vezes amargo Cristiano Ronaldo? O anúncio protagonizado por Dolores Aveiro, mãe do ‘melhor jogador do mundo’, faz-nos encarar um dilema. Mãe é mãe, e mesmo publicitária não tem dúvidas. Para ela é o seu ‘menine’, naquele foneticamente intransponível sotaque que, um dia, fez Herman José confessar os seus limites como imitador. Para nós… bem, tamanho – dizem – não é documento. Mais vale ser doce…

Só há 23 países no mundo com mais habitantes do que seguidores tem Cristiano no Facebook. Se a estes 60 milhões juntarmos os 15 do Twitter, então o número baixa para 18. Há mais ‘ronaldistas’ na rede do que franceses no planeta. Para quem não gosta de futebol, estas coisas deveriam fazer pensar.

 

Um dia, conheci um guarda-redes da Sanjoanense que tinha defendido um penalty de Eusébio. O homem tinha uma vida vulgar, mas haveria de levar para o túmulo – não sei o que é feito dele - um feito de que poucos se podem gabar. A partir de ontem, o poste direito da uma das balizas do ‘Parque dos Príncipes’, nessa segunda maior cidade portuguesa que é Paris, pode orgulhar-se de feito à altura do ’sapateiro’. Cristiano Ronaldo falha um penalty cada três anos. Aproveitou ontem para manter a regularidade…

 

Na noite quase de Verão que ontem apareceu por Lisboa, dizia a Isabel Tavares, minha querida camarada e novel colaboradora do ‘Sapo’, que não valia a pena escrever mais nada no FB, porque o melhor ‘poste’ tinha sido o do Ronaldo. Triste fado o da selecção portuguesa - atacámos como se não houvesse amanhã, e marcámos zero golos. Nem Quaresma de pés trocados – não há outro no mundo igual a ele, e acreditem que isto não é propaganda de cigano de feira - nem Nani de língua de fora nos valeram.

 

Mas talvez esteja na hora de mudar de fado. Kátia Aveiro, nascida Cátia Liliana, irmã do meio de Cristiano, e que começou sua carreira no ’music-hall’ como Ronalda, dá-nos hoje em dia uma visão muito diferente, e mais alegre, do que a triste melodia que carregamos em choro e mágoa, devaneio e realidade, silêncio, sombra e saudade, almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras.

 

O seu maior êxito proclama que ‘tu és a loucura que me faz vibrar/meu coração faz bum, bum sem parar’. É disto que a selecção precisa – um bater de corações, eventualmente apaixonado não pela Kátia mas por uma bandeira, um povo e um hino. Não vale a pena pedir menos a quem se propôs ser campeão da Europa.

 

Depois do jogo com a Áustria, estive a ver a actuação de Kátia no proverbial comício do PSD no Chão da Lagoa, e garanto-vos que pede meças e contornos roliços às melhores fintas do irmão mais novo. Com a vantagem, para apreciadores, de que a mini-saia é mais curta que os calções que a ‘Nike’ propôs à nossa selecção. Tenho para mim, aliás, que esta nova moda dos calções compridos afasta as senhoras das bancadas dos estádios e da televisão. Um assunto a rever…

 

Mas era suposto eu estar a falar de futebol. Opto pelos fãs, sem os quais não há 4-3-3 que resista. E os melhores do mundo são, com vossa licença, os irlandeses, que aliás, com grande pena minha, se arriscam a fazer as malas já no próximo jogo.

Faz-me confusão porque é que aquela gente se embebeda tanto ou mais que os ingleses, e em vez de distúrbios cantam o ‘Chiquitita’ dos ABBA com os seus opositores suecos. Deitam-se no chão às dezenas e o filme é passarem as pessoas aos semi-apalpões por cima deles. Toda a gente se ri. E fazem uma serenata a uma freira. E têm um cartaz, no tal jogo com a Suécia, em que convidam os fãs do adversário a ‘go back to your sexy wives’. Tem piada, só não sei se as irlandesas gostaram. Quantas Maureen O’Hara ainda há na ilha verde?

 

Enquanto isso, os russos arriscam-se a ser expulsos ainda antes de a sua frágil selecção ser eliminada, os ingleses fazem o que é costume – merda – e os croatas, turcos e albaneses estão na mira dessa impoluta agremiação que dá pelo nome de UEFA. Tudo jóia, se não fosse a vaca da Itália, que não joga uma pevide, mas ganha.

 

Voltando à história pátria, há coisas que não percebo. Estive a ver, todos ou quase todos os dias, os inquéritos da RTP aos tele-espetadores - segundo o acordo ortográfico, são os tipos que se espetam à frente da pantalha e que não a largam – e apontei os resultados. Seja a pergunta ‘Portugal vai ficar em 1ºlugar no Grupo F’, ‘Ronaldo é o melhor jogador dos últimos 20 anos’, ‘a actual selecção é melhor do que a de 2014’ ou ‘William Carvalho deve substituir Danilo’, o resultado é sempre o mesmo. Portalegre vota ao contrário do resto do País, às vezes acompanhado por Viseu e Évora. Não sei o que se passa com a interioridade, mas isto dava uma tese de Sociologia no ISCTE, eventualmente tutelada pelo Francisco José Viegas.

 

A verdade é que temos que ganhar aos húngaros. Até agora, o fado dos empates tem sido a sina que nos tolhe. A culpa, como dizia a minha amiga Magda Santos, é do ‘profeta’ Abrunhosa. ‘Tudo o que eu te dou, tu me dás a mim’, é a perfeita definição de um empate. Eu sempre disse que a canção, a ser uma do rapaz dos óculos, devia ser o ‘Talvez f.’, que bem traduzida para ouvidos austríacos haveria de lhes soar diferente da ‘Música no Coração’. Uma canção de amor não faz mossa. ‘Que mais te posso dar’? Quinze a zero, no mínimo, já lá dizia o grande Ricardo Araújo Pereira!

 

No entanto, está tudo em aberto. A esperança é a última a morrer. São onze para cada lado, se o árbitro não for italiano, e a bola é redonda. Prognósticos só no fim do jogo. Falho de mais lugares-comuns, vou contar uma história.

 

Eu já fui treinador de futebol. É verdade, tinha nove anos. O meu Pai tinha-me dado uma bola, o que me permitia ter alguma relevância no meio da rapaziada da 4ª classe da escola primária de Moncorvo. Torto de ambos os pés desde tenra idade, a única hipótese que tinha de jogar à bola era ser dono dela. Mas eu sempre gostei de ganhar e, graças a Deus, sempre tive a noção das minhas limitações.

 

Vai daí, fui ler um livro de táctica – acho que era do Heleno Herrera – que havia lá na biblioteca moncorvina. Os putos ranhosos, descalços ou aburguesados que me acompanhavam na escola, não tinham grande respeito por mim, no que concerne a andar à porrada, mas sabiam da minha enorme superioridade intelectual. O que, diga-se de passagem, em Trás-os-Montes nos anos 60 não era lá muito boa qualidade para ser chefe da malta. Mas convenci-os à custa de lábia – é assim que um gajo fraco e feio conquista, primeiro os miúdos e depois o resto…

 

Lembro-me dos nomes deles. Grandes craques, até ganhámos à 5ªclasse. O Meireles na baliza, como o pai dele também era nos seniores do Moncorvo. Nas laterais o Orlando, que era canhoto e rápido, e o Gomes, com um olho sempre no contra-ataque. No meio da defesa o Reis e o Teixeira, ou então o Olímpio, que era muito burro mas enorme; contava que lhe tinha caído um raio em cima, lá na quinta da Vilariça onde a família trabalhava, e que a partir daí tinha ficado taralhouco.

 

No meio-campo era o Artur, que depois viria a jogar a sério, e que era dos poucos que olhava para cima ao mesmo tempo que dominava a bola. A seu lado tinha o Mesquita, que não gostava de perder nem a feijões, e o Norberto que corria como Deus o dava pela extrema direita. Na frente, o Nélson Choça era uma espécie de Nené – nunca sujava os calções mas estava sempre à mama. O goleador por excelência. O Amândio era o distribuidor de jogo e eu, coitado, ficava para as dobras quando não havia mais ninguém.

 

Miúdos valentes. Lembro-me de dar uma sandes ao Norberto, o meu protegido, e a minha Mãe achar que eu era um alarve, porque chegava a casa cheio de fome. E do Branquinho, que não tinha sapatos e fugiu da escola na terceira classe para França, com o pai. E do Biló, que tinha como mãe uma senhora que não lhe sabia dizer quem era o pai. E do Salazar, que morreu de tuberculose ainda não tinha feito vinte anos. Coisas de antigamente.

 

Isto de jornalismo está pelas ruas da amargura. Só agora reparei que desleixei o título que dei a este texto. Então é assim: a foto mais partilhada, até agora, do Euro 2016, é a de duas albanesas bem nutridas e simpáticas, que fazem com as mãos o voo da águia que está na bandeira do seu país. Os homens, principais utilizadores desta coisa linda que se chama futebol, de vez em quando reparam no que é realmente importante.

publicado às 17:59

Assis tem coragem. E tem razão?

Por: António Costa

 

O congresso do PS – ou melhor, das Esquerdas que suportam o governo socialista – já estava rendido a António Costa antes mesmo de começar. Pudera, seis meses depois, a geringonça aguenta-se, o poder está nas mãos dos socialistas, o Estado também, e Costa revele-se o melhor, numa equipa em que é o primeiro-ministro e mais 16 ministros. Francisco Assis assumiu a rutura, sem dissidência, notaram a sua coragem, sim, o menos importante.

 

No congresso de Costa, não rezará a história, nem no primeiro, nem no último discurso do secretário-geral, nem sequer na proposta de revisão da organização do Estado, da descentralização. Ficou a estratégia para unir a Esquerda contra as sanções da União Europeia e para comprometer a Direita, que, nesta matéria, corre o risco de sair sempre mal na fotografia. E a comparação quase mórbida entre a morte de refugiados e os 0,2 décimas de défice. De resto, ficou Assis, e esse sim será recordado quando a realidade económica e financeira do país exigir uma resposta que o governo não poderá dar sem por em causa a sua própria existência.

 

António Costa, aliás, não falou de economia, foi uma espécie de fantasma que pairou sobre o congresso do PS. Simplesmente, porque os números não estão para festas. Preferiu centrar o discurso económico nas críticas à Europa por causa das sanções, sem perceber que é exatamente por causa do modelo de governo que arranjou. Portugal falhou o défice de 2015, acima de tudo o défice estrutural, que derrapou mais de seis décimas, responsabilidade do anterior Governo. Costa teria de apresentar um plano credível, a continuação de uma estratégia de mudanças e não de reversões. Prefere o “o vírus do radicalismo ideológico” anti-europeu, como diz Assis. No fundo, o estilo em relação a Tsipras é diferente, a forma não. E se a economia mantiver a tendência do primeiro trimestre, negativa, não vamos ter apenas um Retificativo, vamos ter a elevação a voz, nós contra eles. É fácil, é popular.

 

Francisco Assis olha para o passado, para o que o PS de Costa cedeu para montar a geringonça, e para o futuro, que governo é que o país precisa.

 

É preciso dizer que os primeiros seis meses de governação não mostraram assim tantas cedências deste PS ao BE e PCP, porque falam a mesma linguagem económica, ou quase. Quem controla quem? Mesmo na Europa, quando Costa diz-se europeísta, garante que o défice vai ficar abaixo dos 3% e, ao mesmo tempo, critica a austeridade europeia. Costa está confortável ao lado de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, e isso transparece.

 

Já sobre o futuro, a história é outra. Um governo com esta composição parlamentar, e a precisar dela para viver, não pode fazer o que o país precisa. Costa é pragmático, respira política, e apesar das suas convicções, fará as cedências que forem necessárias para segurar o governo. O ponto é outro, Portugal parou, e o investimento reflete isso mesmo. Quem pode investir, não acredita, lê os sinais, lê as medidas, e foge. A culpa, esta, não é da Europa.

 

Assis é um homem de coragem, sim, mais importante ainda, é um homem sozinho com (a nossa) razão.

 

As escolhas

 

Os suíços foram a votos, não para escolher um governo ou um presidente, mas para votarem em referendo. O quê? A atribuição de um Rendimento Básico Incondicional, uma espécie de rendimento mínimo, e a redução dos salários dos gestores públicos ao nível dos salários dos ministros. Em Portugal, se tal fosse referendado, a maioria seguramente apoiaria tais leis. Na Suíça, foram os dois chumbados. E com uma votação esmagadora. É uma lição. No primeiro caso, por mais bondosa que seja a intenção, os rendimentos incondicionais dão os incentivos errados à sociedade e os mais desfavorecidos têm de ser apoiados, não podem ficar para trás, mas de outra forma, a começar no regresso ao mercado de trabalho. No segundo, os gestores públicos têm de ser remunerados em linha com as práticas do privado, sob pena de sobrarem os piores a gerir os dinheiros públicos.  

 

A CGD é um dos ‘berbicachos’ do setor financeiro em Portugal, precisa de muito dinheiro, mais de quatro mil milhões de euros, e a Comissão Europeia exige regras para esse investimento público, comparáveis às que são impostas aos privados. Como não podia deixar de ser, apesar da retórica política que ocupou o espaço mediático. Em entrevista à TSF, a comissária da concorrência garante que essa decisão europeia não será política. Vamos lá ver então quanto é que isso (nos) vai custar.

 

Tenham uma boa semana

publicado às 09:25

Sexo, álcool e moléstias da vida militar (em 1912)

Por: Pedro Fonseca

 

Como era o estado da saúde pública no início do século XX, em Portugal? Uma cartilha militar ajuda a compreender o movimento de higiene que assolava a Europa.

"O exército vem do povo. Esta cartilha de higiene, destinando-se ao exército, - destina-se ao povo". É assim que se inicia a "Cartilha de higiene", uma edição em 1912 do Ministério da Guerra e que ajuda a entender a importância da saúde pública no início do século passado em Portugal.

 

A cartilha inscreve "muito ensinamento valioso e muito conselho útil" e "não é uma imposição da disciplina, é um dever da humanidade".

 

Para contextualizar o lançamento da obra, é preciso recuar quase um século para perceber a sua importância. Usando o texto "Factos relevantes da saúde militar nos últimos 200 anos", publicado em Janeiro de 2014 na Revista Militar, percebe-se que os militares tinham alguma importância nestes temas da sociedade.

 

Desde 1822, data da fundação da Sociedade de Sciências Médicas de Lisboa, esta teve até 1866 uma presidência "preponderantemente de médicos militares, como por exemplo Bernardino António Gomes (filho), médico naval e precursor da psiquiatria portuguesa" que, na década de 40 desse século, irá criar o primeiro serviço de psiquiatria no Hospital da Marinha.

 

Segundo o autor do artigo, Rui Pires de Carvalho, em 1837 ocorreu a criação do Conselho de Saúde do Exército para, mais de 50 anos depois, ser publicado o livro “Questões Médico-Militares – Estudos Militares sobre Serviços Sanitários de Campanha”, do cirurgião de brigada Cunha Belém, e "que lança a questão da necessidade de treino e formação do pessoal de saúde em ambiente operacional".

 

Os desenvolvimentos na higiene em ambiente militar decorriam em paralelo com o interesse na sociedade civil, devido aos avanços científicos internacionais (que apontavam como os germes podiam fomentar doenças e se reclamavam medidas de saúde pública), fomentado por personalidades como Florence Nightingale (1820-1910) no lançamento dos serviços de enfermagem, o casal Pasteur (dinamização da vacinação, entre outros) ou Robert Koch (1843-1910), na revelação das doenças transmissíveis, como a tuberculose.

 

"Aplicações da hygiene publica"

 

Em Portugal, este movimento é dinamizado por Ricardo Jorge. No instituto que agora tem o seu nome e de que foi fundador, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, recorda-se que foi em Junho de 1899 "que se dá a sua consagração em definitivo a nível nacional e a projecção internacional, quando, sem hesitações, chega à prova 'clínica e epidemiológica' da peste bubónica que assolou a cidade do Porto, sendo esta depois confirmada 'bacteriologicamente' por ele próprio e Câmara Pestana".

 

Mas "as operações profilácticas que liderou no sentido de eliminar a peste, como a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, entre outras, desencadearam a fúria popular que, incentivada por grupos políticos, obrigam Ricardo Jorge a abandonar a cidade".

 

Em Outubro "é transferido para Lisboa, sendo nomeado Inspector-Geral de Saúde e a seguir professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Em 1903, é incumbido de organizar e dirigir o Instituto Central de Higiene, que passaria a ter o seu nome a partir de 1929".

 

Ricardo Jorge é ainda lembrado pela organização geral dos serviços de saúde pública (Dezembro de 1899) e pelo Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública (1901). É desta "reforma" da Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública e do Instituto Central de Higiene (depois Instituto Superior de Higiene), que se irá "desempenhar um importante papel na educação, formação e investigação em saúde pública, nota Luís Graça na "História da Saúde no Trabalho".

 

A "preocupação essencial era então a protecção e a melhoria da saúde comunitária (e não propriamente a saúde do indivíduo)".

 

No referido regulamento, "os serviços de saúde pública tinham por fim 'vigiar e estudar quanto diz respeito à sanidade publica, à hygiene social e à vida physica da população, promovendo as condições da sua melhoria' e abrangiam:

- A defesa contra a invasão das moléstias exótico-pestilenciais (sic);

- A estatística demográfico-sanitaria;

- A prevenção e combate das moléstias infecciosas;

- A salubridade dos lugares e habitações;

- A inspecção das substâncias alimentícias;

- A higiene da indústria e do trabalho;

- A policia mortuária;

- O exercicio médico-profissional;

- E 'quaesquer outras aplicações da hygiene publica'".

 

É neste contexto que surge, em 1912, a "Cartilha de higiene" do Ministério da Guerra.

 

O que diz a cartilha militar

 

O objectivo do manual de saúde, apesar de se apresentar para toda a população, é naturalmente vocacionado para os futuros militares porque, como se explica inicialmente, "para se ser um bom soldado é preciso, antes de tudo, ser-se um homem são". Um doente será um "inútil" e "pode ser prejudicial".

 

O próprio recrutamento visava "os homens mais sãos e mais fortes", aliciando no entanto que iriam "encontrar no serviço militar melhor alimentação, melhor alojamento e melhores condições de vida", embora estivessem expostos a "um certo número de doenças", nomeadamente contagiosas, como "a tuberculose, a febre tifoide, as bexigas, o sarampo, a papeira (tambem chamada de trasorelho)".

 

Um homem com estas "moléstias, tudo o que o cerca se torna perigoso" por serem "doenças contagiosas" e "produzidas por germes invisíveis chamados micróbios" e que se espalham "no ar, na água e na terra".

 

Esses "micróbios, trazidos de fora do quartel por qualquer soldado, fácilmente passam para os seus companheiros de caserna". O potencial de epidemia ("ou andaço") gerava um "estado de abatimento" que podia facilitar o contágio - apesar de se considerar que "quási todas as doenças se podem evitar". Na ajuda aos colegas, os militares não se deviam "entregar a excessos (alcool, tabaco, mulheres, etc.) porque minguam de fôrças e ficam mais sujeitos às doenças".

 

Apesar do trabalho das autoridades militares, a responsabilidade da diminuição das doenças nesse ambiente dependia "da inteligência e do zêlo do próprio soldado", nomeadamente no seu "asseio do corpo".

 

"Para ter saúde é preciso ter a pele desengordurada e limpa de todas as impurezas" porque a mesma "está crivada de buraquinhos sem conta, que se não vêem, e pelos quais sai, com o suor, grande parte dos resíduos do organismo humano" - resíduos, aliás, "comparáveis aos que contêm as urinas e os excrementos" e que "são venenos". Explicava-se ainda que os "parasitas, uns pequenos bichos, como os piolhos, as pulgas, o bicho da sarna, etc." não existiriam "se houver asseio na pele".

 

O asseio do corpo devia ser garantido por "o soldado lavar-se com água fria e sabão", com a cabeça a "ser ensaboada pelo menos uma vez por semana". O banho ao corpo devia ocorrer "todas as semanas ou de quinze em quinze dias", fosse em "tina ou banheira, em tanques chamados piscinas, nos rios, ou no mar".

 

Este devia decorrer apenas durante 15 minutos e devia-se abandonar o banho com "qualquer arrepio de frio, ou que veja o corpo a cobrir-se de pintas vermelhas". No quartel, à falta do "banho de aspersão", os militares deviam usar o "banho de esponja", em que "qualquer bacia larga, ou alguidar", servia para o efeito. A recomendação era para a vida militar mas devia igualmente prosseguir "mais tarde, na vida de paisano, se tiver apêgo à saúde".

 

Na lavagem da cara, havia de se evitar o sabão "pegado à pele" muito tempo, porque "apodrece e, em vez de limpar, irrita". Fosse Verão ou Inverno, a água "há-de ser fria".

 

Cuidado paralelo é salientado para os ouvidos, onde "se produz uma matéria gordurosa, parecida com a cera, que às vezes endurece, tapa o canal e pode chegar a produzir a surdez completa".

 

Na lavagem da boca e dos dentes, era igualmente recomendado o uso do sabão. "A cária dos dentes pode parecer que não tem perigo" mas "é sempre molesta e desagradável", nomeadamente pelo "mau bafo", mas tendo "maus dentes, deve empregar tambêm na sua lavagem o sabão".

 

A boca merece outros cuidados e não se devem "levar aos beiços quaisquer objectos que não estejam limpos ou possam ser suspeitos, como bicos de lápis, canetas, palitos já servidos, pontas de cigarro, etc."

 

Nos pés, e quando o suor "é muito abundante e quando o seu cheiro é fedorento, deve a lavagem ser feita com água e vinagre ou água e aguardente, ou, ainda, com água na qual se tenha deitado um pouco de pó de alumen".

 

Quanto às unhas dos pés, recomendava-se o "preceito" de serem "aparadas rentes ao sabugo, mas cortadas a direito, em quadrado, porque, se as cortarem em redondo, encravam-se aos cantos e produzem feridas".

 

As "partes e o ânus" deviam ser lavadas "pelo menos, uma vez por dia", nem que fosse com uma toalha molhada. "Sendo asseado, o soldado corre muito menos risco de apanhar males de mulheres".

 

Calvície pelo vestuário

 

Ao nível da roupa, o soldado não devia usar o boné dos companheiros "porque se lhe podem pegar moléstias que fazem cair o cabelo". Mas devia usar "camisa e ceroulas, tanto de inverno como de verão. As ceroulas são úteis contra o frio, protegem a pele e evitam que as calças se sujem por dentro". O soldado não devia usar muito vestuário porque "homem que usa muita roupa é homem para pouco", apesar de não se poderem desabituar "de repente para não os resfriar".

 

Quanto às meias, que deviam ser mudadas de três em três dias, as melhores cores eram a branca ou a cinzenta, porque "as côres vivas são coradas com tintas irritantes ou venenosas".

 

O "soldado asseado" devia "mudar a roupa branca pelo menos de oito em oito dias", devendo sacudi-la diariamente.

 

Alimentação e "abuso da bebida"

 

A cartilha recomenda três princípios no que concerne à alimentação:

- Comer com regularidade, mas tendo em atenção que "o estomago tambêm precisa de descanso";

- "Comer devagar" porque "quem come sôfregamente come mal mastigado; o alimento aproveita menos; o estômago cansa-se mais", recomendando-se que "quando acabar de comer [o soldado] deve ficar ainda com vontade de comer mais";

- Por fim, comer com asseio e evitar "o mau habito de comer a carne, ou peixe, com os dedos, sôbre o pão".

 

Após ter-se alimentado, "o soldado guardar-se há de tomar banho", e "não usará de mulher, pelo menos nas primeiras três horas", bem como de beber líquidos ("o que prejudica a digestão"), evitando ainda "exercícios violentos" e "demasiado movimento", excepto "quando as obrigações do serviço o exijam".

 

A água, que devia ser a preferida dos soldados, só era "de boa qualidade" quando fosse "potável, quer dizer, quando é limpa e agradável à vista, quando desfaz bem o sabão e coze bem as ervas". Na caserna, não se devia beber pela torneira, na qual "ninguêm lhe deve tocar com os beiços, ou com as mãos sujas, sobretudo no bocal", devendo-se usar um púcaro pessoal e intransmissível. Nas marchas, podia usar-se água filtrada por "areia fina, ou do carvão, mas só em casos extraordinários".

A "água fervida" era a bebida recomendada - embora não devesse ser usada a dos poços ou dos pântanos "mesmo depois de fervida" -, enquanto "o vinho, a aguardente, o vinagre, ou o sumo de limão" também se podiam adicionar à água. Já "o vinho fraco e puro", tomado em "dois a três decilitros a cada refeição", favorecia "o trabalho da digestão e reanima o soldado", existindo no entanto o perigo das falsificações e o "abuso da bebida".

 

"A aguardente, os licores e outras bebidas chamadas brancas, alcoólicas ou espirituosas" só deviam ser tomadas por recomendação médica, embora a primeira pudesse ser bebida no Inverno "em pequena porção".

 

O "soldado, como todo o homem do campo, tem o hábito de frequentar a taberna". Este "mau costume" constratava com o potencial de que "o soldado ou qualquer homem, em boa saúde, pode beber por dia até sete decilitros de vinho", só então caindo na embriaguez - algo perigoso para a saúde, tanto mais que "a embriaguez repetida pode levar o homem ao crime, à loucura e à morte, em pouco tempo".

 

O álcool, visto como "prejudicial à pátria e à família", era igualmente olhado como potencial para o aparecimento da tuberculose e incentivava-se mesmo que não deviam existir tabernas junto dos quartéis.

 

Os filhos dos indivíduos alcoólicos herdam "os mesmos ou peores vícios", sendo "umas vezes, raquíticos e enfezados, outras vezes mostram tendência para o crime, se são homens, ou para a prostituição, se são mulheres, quando não nascem já dispostos para a loucura".

 

Os tratos com as mulheres, nomeadamente as "matriculadas"

 

As mulheres eram vistas como as responsáveis pelas doenças venéreas. No capítulo VII explica-se que "o mal venéreo, ou mal de mulheres, é uma moléstia que se péga, em geral, por ocasião do coito".

 

De forma pedagógica, em sete páginas, a cartilha explica que não é "vergonha para o soldado" ou "nenhum homem" contrair este tipo de doença ("não é moléstia que deva esconder-se, porque precisa de tratamento e de cuidados"). Mas, sabendo que a tem, "comete um crime" se depois "tiver comunicação ou trato com qualquer mulher".

 

Recomenda-se ainda que "quando, depois de ter tido uma moléstia venérea, o soldado sinta dificuldade em verter águas, logo deve apresentar-se ao seu médico". É ainda recomendado que não se case sem ter procurado um médico, para evitar uma "má acção" e de ter "filhos que veem já desde o berço tocados do mesmo mal, e que ficam toda a a vida aleijados e doentes, se não tiverem a boa sorte, que muitas vezes teem, de morrer à nascença".

 

A sifílis, ou "mal gálico", quando "mal curado, passa de pais a filhos e herda-se, como se herda o nome, ou como se herdam os bens".

 

O manual recomendava assim a segurança das "mulheres matriculadas", ao contrário das que "andam às sobras do rancho à roda dos quartéis", sendo "mais perigosas do que todas as outras".

 

publicado às 10:46

Vamos pôr Portugal no sítio

Por: Rute Sousa Vasco

 

Um dos argumentos que sempre me tirou do sério naqueles tempos em discutíamos a troika e que Portugal não era a Grécia residia, precisamente, na certeza acintosa e moralista com que esta frase era dita. Portugal não era a Grécia, porque a Grécia estava (e está) cheia de gregos e os gregos são aquele povo que inventou subsídios para cabeleireiras e alojou nas suas ilhas a maior perfídia fiscal. E tudo isto sem o requinte de um Luxemburgo ou de outras criações da Europa que não são a Grécia.

 

A frase “Portugal não é a Grécia” encerrava todo um conjunto de convicções que alguns portugueses têm sobre o nosso imenso Portugal. E que vão além da convicção linear de que se os gregos pediram dinheiro emprestado e não fizeram bem as contas, só têm é que pagar o que devem. Qualquer outra derivada, nomeadamente sobre os respeitáveis políticos europeus que desenharam, em parceria com os desonestos políticos gregos, os extraordinários planos que garantiram à Grécia uma ruína social e económica, não interessava para nada. Este tipo de análise vem das mesmas cabeças bem pensantes, cordatas e sempre em linha com os poderes dominantes que durante anos também não viram qualquer sinal de alarme nos negócios do BES ou tão pouco na expansão galopante da Ongoing. Enquanto se ostenta o ceptro, tudo está bem – porque se vive bem nessa doce harmonia das certezas inabaláveis.

 

Mas o que interessa isso agora neste tempo novo em que falar de troika e da Grécia é tão 2012? Tudo isto vem de repente à memória na semana em que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) consegue “pôr o Sequeira no sítio”, em que taxistas declaram nova guerra à Uber e em que se assinalou o 42º aniversário do 25 de abril.

 

Começando pelo 25 de abril. É um facto que a data não passa bem na garganta de uma certa direita. É um facto que é celebrada em regime de monopólio por uma certa esquerda. Descontando os desagravos pessoais, que é impossível não existirem numa História ainda tão recente, a diferença em qualquer uma das alas chama-se cultura política e cívica. Não se obtém com o grau académico nem por pertencer a uma casta. Cultiva-se ouvindo os outros, criando o hábito de discutir ideias e, em virtude destas duas premissas, acaba-se por ser menos binário e mais efectivamente interessado no país. E o país precisa de ter mais destas pessoas e menos do grupo histriónico, que vive de certezas inabaláveis e que sabe sempre o que vai dizer na segunda-feira.

 

Passando para a batalha entre taxistas versus Uber (mais uma). O mérito – e o dilema – da discussão está no raio deste mundo virado do avesso em que todos vivemos e onde todos procuramos reencontrar o nosso lugar. Não é um problema de taxistas – é de taxistas, de fotógrafos, de hoteleiros, de designers, de jornalistas, como provavelmente um dia destes será de outras profissões que se têm mantido a salvo da grande onda que tudo abala. Aquilo que é um problema de taxistas é a forma como este grupo confronta Portugal com a sua aspiração e a sua realidade. Aspiramos a ser um povo de pessoas educadas, honestas, inovadoras e bem-sucedidas. Não toleramos pensar que possamos ser malcriados, desonestos, preconceituosos e sempre a contar os tostões. Não somos taxistas, como também não éramos gregos.

 

Mas, esperem lá, quem são (também) os taxistas? São reformados, são desempregados, são algumas pessoas sem outra qualificação que não seja conduzir um carro. Ganham pouco, arriscam bastante, têm muitas contrariedades e poucas expectativas. Soa-vos familiar a Portugal? Nasce daí uma raiva contra esse Portugal que não queremos ser. Um Portugal herdado, um Portugal com um passado mal resolvido e logo agora que somos modernos, estamos na crista da onda do turismo e do empreendedorismo. Somos livres, não voltaremos atrás – não era assim que trauteava a música da gaivota em pleno PREC?

 

E chegamos assim a Domingos Sequeira e à (brilhante) campanha do MNAA em parceria com o Público, a Fuel, a RTP e a Fundação Millennium BCP intitulada Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo. Uma campanha que angariou, através de um crowdfunding bem comunicado, 600 mil euros para que o museu possa adquirir o quadro A Adoração dos Magos e assim ter aquela que é tida como a obra-prima do pintor.

 

Não será injustiça dizer que a esmagadora maioria dos portugueses não fazia ideia de quem foi Domingos Sequeira e, por inerência, da importância da obra em causa. O que fez com esta iniciativa fosse interessante por várias razões. Por um lado, trata-se de uma obra do século XIX, o que já permite que se fale de património e de História, deixando a esquerda/direita orfã de uma das suas discussões favoritas (deve ou não o Estado apoiar a cultura). Por outro lado, mediante a inteligência do MNAA e dos seus parceiros, a comunicação foi de tal forma envolvente e cativante que conquistou pessoas fora da franja da elite cultural que naturalmente seria a base de apoio – ou seja, democratizou a arte que é a única forma, efectiva, de a tornar património de todos. Pode parecer um movimento óbvio – só que não é. E, muitas vezes, porque essa franja ou elite cultural quer preservar o seu status quo, tornando a arte uma espécie de santo cálice impossível de alcançar pela plebe.

 

No balanço final, de acordo com os dados comunicados, participaram 15 mil cidadãos e 172 instituições, entre as quais escolas, associações, fundações e algumas, mas não muitas, empresas. Entre as grandes instituições, destacou-se uma: a Fundação Aga Khan com uma contribuição de 200 mil euros.

 

Pessoas, juntas de freguesia, alunos de escolas. Se calhar um, dois taxistas. Este foi, em boa medida, o Portugal que se mobilizou para por o Sequeira no sítio. Pobre Sequeira, que passou uma vida à procura de reconhecimento e que encontrou, brevemente, com os liberais de 1820 algum do conforto que tantas vezes lhe escapara. Quase 200 anos depois, não é o liberalismo que o traz ao sítio, no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Esse liberalismo à americana ou inglesa em que quem mais ganha, devolve à sociedade, não está na mesma prateleira do liberalismo que conhecemos por cá.

 

Na realidade, quando se defendeu que Portugal não é a Grécia talvez se quisesse defender que Portugal não é Portugal. E isso até tem um lado bonito. É aquele lado em que não nos deixamos encaixar em generalizações, nos esquecemos de ser de esquerda ou de direita, taxista ou empreendedor Uber, e fazemos simplesmente o que achamos estar certo.

 

Isto do 25 de abril já não ser a justa medida para todas as clivagens sociais é muito aborrecido. A vida era bem mais fácil antes.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões

 

Ricky Gervais em versão Netflix e com uma história mesmo à sua medida (não fosse ele autor e realizador além de protagonista). Fica uma frase para abrir o apetite: "As pessoas preferem ser famosas por serem idiotas do que não serem conhecidas de todo".

 

Os números do Facebook estão para o mercado dos media como as eleições americanas para o mundo: são bem mais que apenas os resultados de uma empresa. E o facto é que continuam a mostrar um negócio muito saudável. No primeiro trimestre de 2016, as receitas subiram 52%, para 5382 milhões de dólares.

publicado às 09:39

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