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SAPO24 Crónicas

Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

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Todos os dias um olhar mais atento a um tema que marca a actualidade. Artigos, análises e crónicas exclusivas no SAPO24.

O que leva a tanto ódio?

Por: Francisco Sena Santos

 

O que é que leva a tanto ódio? Que tempestade de raivas e frustrações pode desestruturar a cabeça de uma criatura ao ponto de a levar a matar a sangue-frio 50 pessoas e ferir outras tantas num tiroteio continuado ao longo de duas horas de atrocidade que teve por alvo minorias sexuais e étnicas? O que é que está a derrapar numa sociedade para suscitar uma tão brutal intolerância? Como é que um homem de 29 anos, desequilibrado homófobo e, supõe-se, militante jiadista auto-radicalizado, pode ter, como teve este matador, acesso fácil a armas de fogo assim letais? O que é que se passa com o sofisticado sistema de informações do FBI para, embora tendo aquela criatura no seu radar, não ter sabido parar a tempo alguém que é um inimigo assim tão perigoso? O que é que se sobrepõe à vontade de um presidente como Obama que o impede de, apesar de sucessivas terríveis matanças, com potencial contagioso, fazer impor um controlo eficaz à venda e posse de armas de fogo? Que papel poderão ter os media nesta tragédia americana? Que efeito poderá ter a carnificina de Orlando na eleição presidencial nos Estados Unidos? São tantas as perguntas, estas e muitas outras, e a tantas faltam respostas claras.

 

Na discoteca Pulse de Orlando, nos EUA, como há sete meses no Bataclan de Paris, as vítimas são pessoas que amam a vida. Foram condenadas à morte, pelos demónios que tomaram conta da cabeça de gente perturbada e infetada por uma onda de ódio que anda no ar. Morreram pelo crime de viverem a vida com paixão. Em Paris, um bando de terroristas movidos pelo fanatismo político-religioso, quis castigar quem se diverte, se diverte a sorrir, a cantar e a dançar a ouvir música. Em Orlando, um desequilibrado motivado por um confuso misto de ideologia religiosa e preconceito, atacou os que se divertem assumindo com orgulho que são homossexuais. O pai do matador conta que ele tinha ficado enfurecido ao ver dois homens a beijarem-se com carinho.

 

A diversidade é uma característica da nossa sociedade ocidental que cresceu capaz de se tornar liberal sobre as escolhas de cada pessoa. A tolerância é um modo fundamental de estar na sociedade que foi construída para nós. Uma mulher com véu, duas mulheres ou dois homens de mãos dadas e que se beijam na boca é uma liberdade que faz parte do modo de vida nesta nossa sociedade ocidental de liberdade. Alguns ainda podem sentir incómodo ao verem o que poderia ser apenas privado, mas o costume tende a tornar-se banal. É um assunto de cada pessoa, livremente. Mas há sociedades, com interpretações retorcidas de religião e ideologia, que ainda vivem num tempo passado em que essa liberdade é tomada como heresia.

 

A chacina deste último fim de semana nos EUA junta três ingredientes que são feridas abertas na sociedade americana: terrorismo, homofobia e posse indiscriminada de armas de fogo. Todos os políticos, quase toda a gente, expressa nestes dias horror pela matança.  Não falta hipocrisia nessa condenação.  

 

Muitos dos que lastimam são os mesmos que bloqueiam qualquer tentativa de controlo da posse e uso de armas de fogo – num país onde qualquer um consegue comprar e ter licença de porte de pistola ou espingarda, o que leva a que, em média, cada americano tenha consigo uma arma letal. São mais de 300 milhões. Supostamente, os americanos possuem armas para se protegerem, mas de facto são dos mais desprotegidos no mundo: no que vai de ano, até ontem, estavam registados nos EUA 5.931 mortos em casos com armas de fogo.

 

Ao mesmo tempo, muitos dos que agora condenam mais esta matança são os mesmos que apoiam uma plataforma política que propaga o clima de medo e ódio anti-islâmico e anti-gay que progride nos EUA e que são combustível para perturbados lobos solitários como o matador na discoteca Pulse de Orlando.

 

A tragédia de Orlando é um crime praticado por um perturbado que se deixou tomar pelo ódio homofóbico e pelo clima de hostilidade que está instalado na América em campanha. A consumação do crime foi facilitada pela legislação americana que permite que uma criatura vulnerável tenha acesso a máquinas de guerra como esta idêntica à que serviu para matar 14 pessoas em San Bernardino (dezembro de 2015), também para matar 26 pessoas na escola de Sandy Hook e 12 num cinema de Aurora (estes dois massacres em 2012). Agora, mais 49 na matança homofóbica em Orlando.

 

TAMBÉM A TER EM CONTA:

 

O único debate entre todos os que podem vir a entrar para o governo de Espanha mostrou um derrotado (Pedro Sanchez) e nenhum vencedor. É facto que quem resiste (Mariano Rajoy) pode safar-se, mas não será fácil. Será que as eleições de 26 de junho não vão servir para resolver o governo de Espanha?

 

As sondagens britânicas estão a apontar cada vez mais para o divórcio. Faltam nove dias para o referendo.

 

A Espanha perde para Itália o título anual de melhor restaurante do mundo nos óscares da gastronomia: a Osteria Francescana, em Modena, arrebata o topo do pódio ao catalão Celler de Can Roca.

 

Hoje é um dia para a seleção portuguesa de futebol e o talento de Cristiano Ronaldo mas não apenas o dele.

 

Duas primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS: esta e esta.

 

 

publicado às 09:33

Acredite se vir no Facebook. Ou se calhar, não

Por: Rute Sousa Vasco

 

Os adolescentes são a verdadeira medida do mundo nos dias que correm. Andam (alguns) adultos tão distraídos que lhes escapam os verdadeiros fenómenos contemporâneos. É possível que estes adultos não saibam quem é Candace Payne e isso só prova que estão mesmo distraídos.

 

O que os salva da total alienação é que, provavelmente, têm filhos, sobrinhos, afilhados ou filhos de amigos que são adolescentes. Eu sou salva diariamente pelos meus adolescentes. É por causa deles que sei coisas como, por exemplo, quem é Candace Payne. Mesmo que tenha demonstrado um desinteresse olímpico pelo tema e até alguma irritação pela sonoridade prolongada que lhe está associada. Claro que tudo isto durou apenas meia dúzia de horas até perceber que aquilo que me tinha sido mostrado através de uma rede social qualquer, era agora tema de notícias. E ainda muito antes de saber que Candace Payne se tornaria uma celebridade instantânea e que por causa de um vídeo de quatro minutos visto por quase 150 milhões de pessoas estaria no The Late Late Show de James Corden e seria apresentada a J.J Abrams e Mark Zuckerberg.

 

Para outros distraídos que ainda não sabem quem é Candace Payne, a história conta-se em poucas linhas. Candice é uma americana de 37 anos que decidiu comprar uma máscara do Chewbacca, o companheiro de Han Solo na Guerra das Estrelas, e experimentá-la no carro. Transmitiu essa “pequena alegria da vida”, como lhe chamou, para a sua rede de Facebook através do botão de “live” e as suas gargalhadas contagiaram pessoas em todo o mundo. O video tornou-se o live mais visto de sempre e Candice entrou nos trending topics da semana.

 

Há nesta nova ordem do mundo uma democratização que a torna, de alguma forma, justa mesmo que parva. Muitos dos conteúdos ‘virais’ são só parvos. Mas são vistos e partilhados por milhões de pessoas que os escolheram, recomendaram e elevaram à categoria de trending topic. Goste-se ou não, isto é democrático. Goste-se ou não, isto fura com o status quo dos suspeitos do costume, aquela meia dúzia que está sempre citada nas notícias, porque desde os tempos imemoriais prevalece entre (alguns) jornalistas o sentido de missão de, dia após dia, relatar que essas pessoas disseram coisas. É o chamado jornalismo do ‘disse que’ em detrimento do jornalismo do ‘fez o quê’.

 

Mas o video de Candice não é uma notícia. É outra coisa qualquer e conseguiu muito mais atenção do que as notícias, em média, conseguem. E essa alocação do nosso tempo disponível é que é um fenómeno que merece a nossa atenção. Numa conferência a que assisti recentemente, a Interact 2016, um dos oradores referiu que o tempo de atenção médio que hoje dedicamos a qualquer coisa que mexa online passou de 12 para 8 segundos. Estamos passos largos a caminho de sermos o peixinho vermelho no aquário redondo.

 

E, na selecção que fazemos, conta cada vez mais o poder da recomendação. As recomendações são uma indústria. Desenvolvem-se algoritmos nas mais diversas esferas para gerar recomendações, sugestões, listar mais populares, etc. Da precursora Amazon ao mais-querido do momento Netflix, este é um dos segredos do sucesso.

 

E, claro, há o Facebook. Essa rede de 1.6 mil milhões de utilizadores que se está a tornar, dia após dia, o editor de notícias favorito. Só que, na realidade, o Facebook não edita, tal como não escreve ou não produz conteúdo no sentido efectivo do tema. O Facebook escolhe, mediante critérios ou parâmetros que os seus engenheiros definem tendo como principal matéria-prima dados dos seus utilizadores, o que lêem, o que partilham, o que publicam. Esta é a parte benigna do processo – tão democrática, vista desta forma, como a possibilidade de Candice Payne se tornar uma celebridade do dia para a noite por causa de um vídeo com uma máscara do Chewbacca.

 

A parte mais obscura é aquela sobre a qual apenas podemos especular, porque certezas absolutas ninguém tem. O site Gizmodo trouxe essa discussão para a primeira linha de debate ao publicar acusações segundo as quais o Facebook omitia artigos com pontos de vista conservadores na sua seleção de histórias mais populares. Mark Zuckerberg percebeu que o assunto era sério e não perdeu tempo. Anunciou uma investigação interna, reuniu com os políticos da ala conservadora nos Estados Unidos e dias depois veio dizer que, mesmo sem qualquer sinal de enviesamento na selecção das notícias, o Facebook iria fazer mudanças para garantir a objectividade política.

 

Tudo isto mostra que o tema é sensível, sobretudo em ano de eleições nos Estados Unidos, sobretudo porque mexe com pessoas com poder de fogo. Mas, na realidade, todos os dias milhões de pessoas deixam-se editar pelas suas redes. Cada vez mais, vemos aquilo que os nossos amigos ou conhecidos nos mostram que estão a ver. Ou, sendo mais precisa, aquilo que as pessoas que gerem redes sociais dizem às máquinas para nos mostrar a partir do que os nossos amigos e conhecidos vêem.

 

Com uma particularidade deliciosa. Quando alguma coisa corre mal pode sempre dizer-se que a culpa é da máquina. Que é preciso ajustar o algoritmo. Esta é a desculpa que faz as delícias dos supremos manipuladores. Poder condicionar a opinião sem assumir qualquer responsabilidade na escolha, sem jornalistas a questionar orientações, sem editores a validarem informação. As acusações veiculadas no Gizmodo tiveram como fonte ex-colaboradores do Facebook, nomeadamente jornalistas ou “news curators”, que é uma forma moderna e, aparentemente, um termo de maior empregabilidade para designar editores.

 

Claro que os problemas tinham de vir daí. Os problemas vêm sempre das pessoas e, sobretudo, pessoas que trabalham com matéria tão sensível quanto a informação. Mas, mesmo que a maior parte da nação Facebook não se aperceba, o que a rede social se quer tornar é num gigantesco portal de notícias e de e-commerce. O maior, o mais influente, à escala global. E para servir notícias não basta apenas mastigar os dados da rede de cada um de nós. É preciso ter pessoas a seleccionar informação, a hierarquizar temas, a avaliar credibilidade de fontes. Deixem lá ver… a fazer jornalismo, mesmo que em modo menos convencional. Porque a alternativa é ter uma lista de “notícias” com muitos Chewbaccas e, infelizmente, para todos os que produzem informação, o Chewbacca até é um rei na selva de parvoíce que os indicadores de mais populares mostram em muitos sites.

 

As máquinas estão a ser ensinadas e estão a ficar melhores a cada dia.

 

As máquinas, tal como o Chewbacca, não têm culpa.

 

Só precisamos de não nos esquecer que, por trás das máquinas, estão homens e esperar que haja por aí uns quantos Han Solos quando os impérios contra-atacam.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões de leitura

 

Já que estamos em modo redes sociais, fica aqui uma sugestão de leitura sobre o direito à privacidade assinado pelo Pedro Fonseca.

 

O Márcio Candoso escreveu esta semana sobre touros e óperas e o local onde ambos convergem. Se estão a pensar que nada os liga, leiam a história e vão perceber que não é bem assim.

 

E para rematar, uma daquelas histórias que nos faz sorrir e que já deve ser um trending topic. Sobre uns óculos esquecidos que se transformaram, também eles, numa celebridade. Ou, neste caso, numa obra de arte.

publicado às 11:26

A primeira ópera no Campo Pequeno

Por: Márcio Alves Candoso

 

Aquele intenso mês de Junho de 1982 ficará sempre marcado pela morte do José João. Chegado a Lisboa nem sete meses passados, o meu tempo dividia-se entre a turma de ‘práticas’ do 3ºano jurídico, o grupo do Coro universitário e a malta das noites da Estrela. Fazia um calor de namoradas, de praias e de fogos na serra, ou de artifícios no Tejo. De exames à porta. E de garraiadas com o José João.

Foi ele, forcado das Caldas mas nascido em Monsaraz, que nos meteu a ideia de ir pegar um touro. ‘É um bezerro, nem chega a ser um touro, não há que ter medo’, dizia para convencer os rapazes da turma. Era, se bem recordo, a garraiada de Agronomia, no Campo Pequeno. Ele é que sabia, e ficámos dependentes da sua sabedoria e uso das práticas taurinas. Ele ia na frente, a gente de ajudas.

 

Nortenho pouco entendido destas coisas que mais se usam na lezíria ou no montado, garanto que só não disse que não porque tive a péssima ideia de contar a perspectiva de aventura a uma menina, que ficou embevecida com a hipótese de me ver na arena da tourada. Aos 20 anos não se promete coragem e fica-se nas covas. Não fica bem, e lá se ia a namorada.

 

Correu bem, aquilo para o José João era manteiga. O bicho é bem maior quando se está nas trincheiras, e as olheiras negras dos moços de forcados engendrados à pressa denotavam o receio de quem nunca se viu em tal alhada. Olhei para a bancada, e lá estava ela. Subiu o camarote, não lhe vi saia bordada.

 

O José João morreu uma semana depois, numa pega de caras em Albufeira. Touro corrido (que já participou em touradas, por isso avisado), disse-se na altura. Nunca foi provado. Foi a primeira e única corrida da minha vida. Isso e as saudades do José João, que era o melhor de todos nós.

 

***

 

Amanhã, a tragédia é bem outra. Na arena do Campo Pequeno quem vai morrer é Violetta Valéry, ‘La Traviata’. Como sempre que a ópera de Verdi, inspirada no drama de Alexandre Dumas, é levada à cena num qualquer palco por esse mundo fora. Amanhã a arena centenária, remodelada faz agora dez anos, estreia-se numa produção desta arte e tamanho, se exceptuarmos a cantata ‘Carmina Burana’ de há uns anos atrás. Trazida pela empresa de espectáculos UAU (ler Uau!), que há tempos colabora com o Campo Pequeno, a ópera será interpretada pela Orquestra Filarmonica del Mediterrâno, com sede em Valência. Hoje poderá ser vista no Porto, no Coliseu.

 

Porque o Campo Pequeno? ‘Há os grandes espectáculos de massas, que podem ir, por exemplo, para o Pavilhão Atlântico, e depois os de menor audiência, para salas de 600 a 1000 espectadores; no caso desta ópera, queríamos um palco intermédio, função que o Campo Pequeno cumpre, pois contamos com 4.500 espectadores’, frisa Rita Duarte, directora de Comunicação da UAU.

 

Porque o Campo Pequeno, onde já só se fazem 13 a 16 touradas por ano, mudou de têmpera. Na década que agora se comemora, por lá passaram 744 espectáculos, que contaram com a presença de 2,4 milhões de espectadores e visitantes. Nas touradas, os números são menores. Cerca de 744 mil espectadores, para 174 corridas. Mas ainda assim consistentes, dizem os responsáveis pela praça. É que depois de uma manifesta crise de audiências, comum aliás a todos os tipos de espectáculo durante a crise económica, no ano de 2015 já se assistiu a uma retoma, ligeira, de 1,8%.

 

As obras efectuadas neste recinto, inaugurado em 1892 depois do abate da arena do Campo de Santana, vetusta e perigosa, permitiram valências várias. De uma sala onde se lidavam touros, passou-se hoje a ter um centro comercial que, em dez anos, teve 34 milhões de visitantes, efectuando um volume de transacções de 259 milhões de euros, segundo dados fornecidos pela empresa. As salas de cinema contam já com um acumulado de 2,1 milhões de espectadores e só em viaturas no parque de estacionamento subterrâneo albergou 4,4 milhões.

 

O museu, inaugurado em Junho de 2015, teve até agora 15 mil visitantes, que se vão habituando a incluir no roteiro de visitas a Lisboa a praça do Campo Pequeno. Na maioria são estrangeiros, e se à partida se poderia pensar que os espanhóis lideravam por largos números, a verdade é que são os franceses quem mais se interessa pela arte e história ligada aos touros. Aliás, curiosamente, a França foi o primeiro país a certificar com o estatuto de património cultural as actividades tauromáticas. Em Espanha, esse país de contrastes, as touradas vão desde protegidas por lei - em Castela, La Mancha, Leão, País Basco ou Comunidade Valenciana - até à proibição, como no caso das Canárias e, em parte, da Catalunha, que neste momento aguarda uma decisão do Tribunal Constitucional sobre o assunto.

 

Há séculos que a tourada anda envolta em polémica. D. José I, que a apreciava, proibiu-a em Salvaterra de Magos, depois da morte do Conde de Arcos, filho do velho Marquês de Marialva, que aos setenta anos, emocionado, ainda havia de matar o touro que lhe tirou o primogénito. Fez-se a vontade do Marquês de Pombal, que não gostava nada de tauromaquia. Já no reinado de D. Maria II houve uma nova tentativa de proibicionismo. Durou nove meses porque o povo, revoltado, trocou as voltas à rainha.

 

Sobre os touros de morte, é outra conversa. Foram banidos das praças portuguesas em 1928, sobrevivendo hoje em dia, por decreto recente que apenas plasmou a tradição que então andava arredada da lei, em Barrancos e em Monsaraz. Proibições em Viana do Castelo, por exemplo, levantaram polémica que está longe de ser diluída na sociedade portuguesa. Mas a verdade é que, com excepção dos distritos de Braga e Vila Real e da região autónoma da Madeira, há espectáculos tauromáquicos em todo o território nacional.

 

Chega a esta altura e faz-se uma declaração de interesses. Quem aí em cima assina gosta de touradas. Vê nisso arte, bravura, cultura e tradição. E portugalidade, já que para ver touros de morte basta atravessar a fronteira. A tourada à portuguesa é, aliás, a única no mundo onde não se mata o touro na arena, permitindo uma sorte que ninguém mais pratica – a pega de caras.

 

Ainda se tentou exportá-la, sendo famosas as digressões de grupos de forcados no México, já lá vão uns anos. Reza a história que muitos espectadores não acreditavam que aquilo fosse possível, e foram mesmo tocar nos forcados para ver se eram de carne e osso, como eles. Na Indonésia – onde se terão levado a cabo as touradas com mais espectadores na História - foram idolatrados e passaram mesmo por semi-deuses. Mas a verdade é que, com excepção de uma ou outra visita ao México e alguma corrida no sul de França, quem quiser ver uma pega tem de vir à terra portuguesa.

 

Um estudo de opinião sobre touradas efectuado recentemente pela Eurosondagem, abrangendo todo o país, mostrou que 32,7% dos entrevistados são aficionados, gostam ou apreciam actividades com touros, 20,6% são indiferentes às touradas, 32,8% não são aficionados mas não são contra as touradas, e 11% são contra as actividades com touros. Ainda, 59,3% dos portugueses acham que as touradas contribuem para uma boa imagem do país no estrangeiro e 75% afirmam que as touradas são importantes, ou têm alguma importância, para a economia e turismo; finalmente, 65,3% acha que seria muito grave o desaparecimento da tradição taurina.

Hoje em dia, só já há touros bravos nas ganadarias de Portugal, Espanha, França e alguns países da América Latina. Outrora existente em toda a Europa, norte de África e Médio Oriente – de onde será, provavelmente, originário – a sua extinção deveu-se, em boa parte à falta de uso. ‘Ninguém está para criar um animal que dá como retorno, em carcaça, uns 200 quilos, quando pode ter outro, que custa metade do preço a criar e que no abate traz 600 ou 700 quilos de carne’, afirma Helder Milheiro, da Protoiro, uma associação consagrada a defender as práticas tauromáquicas e a preservação do touro bravo.

 

‘Sem touradas não há touros bravos’, afirma o mesmo responsável. Defensor de uma ética e de uma cultura - para além da tradição - ligada à festa brava, Hélder Milheiro sustenta ainda ‘as novas formas de comunicação que vão ser necessárias para explicar à população tudo o que está ligado ao touro, desde o seu nascimento até à lide’. Conservador e até elitista, ‘o mundo da tauromaquia esqueceu-se de comunicar’, sustenta; uma prática que terá de ser completamente invertida.

 

Por quanto tempo mais vamos poder ver, em liberdade, um animal que conta com quase 30 mil metros quadrados de espaço para viver, quando a norma europeia de criação de bovinos permite que os seus ‘primos’ tenham apenas nove metros? Que vivam quatro ou cinco anos com condições que mais nenhum animal tem, quando as vacas e bois mansos não passam, geralmente, para além dos dois? Isto, obviamente, se após saírem da praça foram para abate, o que não é nada evidente. Os ganadeiros gostam de guardar, para sementais, os animais que, na lide, demonstraram maior bravura. Ainda ontem vi um, de 14 anos, que de cobridor já nada tinha, mas que ainda gostava de ir á manjedoura que o seu tratador de sempre lhe prepara todos os dias.

 

E há uma economia culinária ‘gourmet’ que tem sido um pouco desleixada; mas isso está a mudar, e na Protoiro, como na sociedade que gere o Campo Pequeno, o assunto está bem assente. Não vai é ser barato comer um bife de touro bravo.

 

***

 

‘Ó Zé João, tu dizes toiro? É touro, pá!’. E assim ficávamos, entre o nortenho que agarrou a forma erudita do Latim, e o alentejano que se ficou pela popular. Mas é tudo a mesma coisa. Até sempre!

publicado às 21:19

Vamos pôr Portugal no sítio

Por: Rute Sousa Vasco

 

Um dos argumentos que sempre me tirou do sério naqueles tempos em discutíamos a troika e que Portugal não era a Grécia residia, precisamente, na certeza acintosa e moralista com que esta frase era dita. Portugal não era a Grécia, porque a Grécia estava (e está) cheia de gregos e os gregos são aquele povo que inventou subsídios para cabeleireiras e alojou nas suas ilhas a maior perfídia fiscal. E tudo isto sem o requinte de um Luxemburgo ou de outras criações da Europa que não são a Grécia.

 

A frase “Portugal não é a Grécia” encerrava todo um conjunto de convicções que alguns portugueses têm sobre o nosso imenso Portugal. E que vão além da convicção linear de que se os gregos pediram dinheiro emprestado e não fizeram bem as contas, só têm é que pagar o que devem. Qualquer outra derivada, nomeadamente sobre os respeitáveis políticos europeus que desenharam, em parceria com os desonestos políticos gregos, os extraordinários planos que garantiram à Grécia uma ruína social e económica, não interessava para nada. Este tipo de análise vem das mesmas cabeças bem pensantes, cordatas e sempre em linha com os poderes dominantes que durante anos também não viram qualquer sinal de alarme nos negócios do BES ou tão pouco na expansão galopante da Ongoing. Enquanto se ostenta o ceptro, tudo está bem – porque se vive bem nessa doce harmonia das certezas inabaláveis.

 

Mas o que interessa isso agora neste tempo novo em que falar de troika e da Grécia é tão 2012? Tudo isto vem de repente à memória na semana em que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) consegue “pôr o Sequeira no sítio”, em que taxistas declaram nova guerra à Uber e em que se assinalou o 42º aniversário do 25 de abril.

 

Começando pelo 25 de abril. É um facto que a data não passa bem na garganta de uma certa direita. É um facto que é celebrada em regime de monopólio por uma certa esquerda. Descontando os desagravos pessoais, que é impossível não existirem numa História ainda tão recente, a diferença em qualquer uma das alas chama-se cultura política e cívica. Não se obtém com o grau académico nem por pertencer a uma casta. Cultiva-se ouvindo os outros, criando o hábito de discutir ideias e, em virtude destas duas premissas, acaba-se por ser menos binário e mais efectivamente interessado no país. E o país precisa de ter mais destas pessoas e menos do grupo histriónico, que vive de certezas inabaláveis e que sabe sempre o que vai dizer na segunda-feira.

 

Passando para a batalha entre taxistas versus Uber (mais uma). O mérito – e o dilema – da discussão está no raio deste mundo virado do avesso em que todos vivemos e onde todos procuramos reencontrar o nosso lugar. Não é um problema de taxistas – é de taxistas, de fotógrafos, de hoteleiros, de designers, de jornalistas, como provavelmente um dia destes será de outras profissões que se têm mantido a salvo da grande onda que tudo abala. Aquilo que é um problema de taxistas é a forma como este grupo confronta Portugal com a sua aspiração e a sua realidade. Aspiramos a ser um povo de pessoas educadas, honestas, inovadoras e bem-sucedidas. Não toleramos pensar que possamos ser malcriados, desonestos, preconceituosos e sempre a contar os tostões. Não somos taxistas, como também não éramos gregos.

 

Mas, esperem lá, quem são (também) os taxistas? São reformados, são desempregados, são algumas pessoas sem outra qualificação que não seja conduzir um carro. Ganham pouco, arriscam bastante, têm muitas contrariedades e poucas expectativas. Soa-vos familiar a Portugal? Nasce daí uma raiva contra esse Portugal que não queremos ser. Um Portugal herdado, um Portugal com um passado mal resolvido e logo agora que somos modernos, estamos na crista da onda do turismo e do empreendedorismo. Somos livres, não voltaremos atrás – não era assim que trauteava a música da gaivota em pleno PREC?

 

E chegamos assim a Domingos Sequeira e à (brilhante) campanha do MNAA em parceria com o Público, a Fuel, a RTP e a Fundação Millennium BCP intitulada Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo. Uma campanha que angariou, através de um crowdfunding bem comunicado, 600 mil euros para que o museu possa adquirir o quadro A Adoração dos Magos e assim ter aquela que é tida como a obra-prima do pintor.

 

Não será injustiça dizer que a esmagadora maioria dos portugueses não fazia ideia de quem foi Domingos Sequeira e, por inerência, da importância da obra em causa. O que fez com esta iniciativa fosse interessante por várias razões. Por um lado, trata-se de uma obra do século XIX, o que já permite que se fale de património e de História, deixando a esquerda/direita orfã de uma das suas discussões favoritas (deve ou não o Estado apoiar a cultura). Por outro lado, mediante a inteligência do MNAA e dos seus parceiros, a comunicação foi de tal forma envolvente e cativante que conquistou pessoas fora da franja da elite cultural que naturalmente seria a base de apoio – ou seja, democratizou a arte que é a única forma, efectiva, de a tornar património de todos. Pode parecer um movimento óbvio – só que não é. E, muitas vezes, porque essa franja ou elite cultural quer preservar o seu status quo, tornando a arte uma espécie de santo cálice impossível de alcançar pela plebe.

 

No balanço final, de acordo com os dados comunicados, participaram 15 mil cidadãos e 172 instituições, entre as quais escolas, associações, fundações e algumas, mas não muitas, empresas. Entre as grandes instituições, destacou-se uma: a Fundação Aga Khan com uma contribuição de 200 mil euros.

 

Pessoas, juntas de freguesia, alunos de escolas. Se calhar um, dois taxistas. Este foi, em boa medida, o Portugal que se mobilizou para por o Sequeira no sítio. Pobre Sequeira, que passou uma vida à procura de reconhecimento e que encontrou, brevemente, com os liberais de 1820 algum do conforto que tantas vezes lhe escapara. Quase 200 anos depois, não é o liberalismo que o traz ao sítio, no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Esse liberalismo à americana ou inglesa em que quem mais ganha, devolve à sociedade, não está na mesma prateleira do liberalismo que conhecemos por cá.

 

Na realidade, quando se defendeu que Portugal não é a Grécia talvez se quisesse defender que Portugal não é Portugal. E isso até tem um lado bonito. É aquele lado em que não nos deixamos encaixar em generalizações, nos esquecemos de ser de esquerda ou de direita, taxista ou empreendedor Uber, e fazemos simplesmente o que achamos estar certo.

 

Isto do 25 de abril já não ser a justa medida para todas as clivagens sociais é muito aborrecido. A vida era bem mais fácil antes.

 

Tenham um bom fim de semana

 

Outras sugestões

 

Ricky Gervais em versão Netflix e com uma história mesmo à sua medida (não fosse ele autor e realizador além de protagonista). Fica uma frase para abrir o apetite: "As pessoas preferem ser famosas por serem idiotas do que não serem conhecidas de todo".

 

Os números do Facebook estão para o mercado dos media como as eleições americanas para o mundo: são bem mais que apenas os resultados de uma empresa. E o facto é que continuam a mostrar um negócio muito saudável. No primeiro trimestre de 2016, as receitas subiram 52%, para 5382 milhões de dólares.

publicado às 09:39

O fim

Por: Pedro Rolo Duarte

 

A semana não tem sido apenas de chuva - tem sido mais escura que cinzenta, mais triste do que a palavra Primavera anunciava. Parece que a jornalista Tereza Coelho tinha razão: quando mais se bate no fundo, mais ele desce.

 

Ponho ao mesmo nível os escândalos Volkswagen, BES, WikiLeaks, e agora o Panama Papers. Todos nascem do mesmo defeito de fabrico humano: a ambição desmedida. E todos resultam de um mesmo raciocínio: é só um bocadinho, sou só eu, ninguém vai dar por nada.

 

Quando se revelam, quando se abatem sobre o comum dos mortais, os casos têm um de dois efeitos: ou nos deixam a pensar que somos totós por não fazermos o mesmo; ou nos deixam de rastos por chegarmos a esta fase do desenvolvimento humano e vermos que, afinal, boa parte dos que nos rodeiam são selvagens e aldrabões sem principio nem fim.

 

Faço parte do segundo grupo, e dou comigo na absurda situação de estar a ver as notícias sobre o Panama Papers ao mesmo tempo que a operadora que me serve ameaça cortar o serviço porque me atrasei no pagamento de uns escassos euros. É a velha máxima dos bancários: quando deves cem euros ao banco, o problema é teu; quando deves um milhão, o problema é do banco. Acrescento: se não quiseres dever, aldraba, corrompe, foge, mente, e no fim, sorri.

 

Batemos no fundo da ética, da seriedade, e do crédito nos políticos, nos gestores, até mesmo nalguns dos heróis que elegemos no mundo do desporto ou da cultura. Parece que se desmorona a ideia de honestidade associada àqueles que admiramos, ou pelo menos respeitamos. Deixámos de estar apenas no domínio do financiamento partidário, ou das empresas sem escrúpulos, para descermos ao rés-do-chão da existência: ter muito e querer ter mais, a qualquer preço, sem olhar a meios; enganar o Estado e com a mesma desfaçatez enganar clientes, sócios, no limite famílias; viver como se não houvesse regras, leis, como se fosse válida a frase “sem rei nem roque”.

 

Sinceramente, não tenho grande interesse em saber como vai acabar tudo isto, se haverá processos e prisões, responsáveis e casos exemplares - porque o desânimo e o descrédito são mais fortes e mais pesados, derrotam princípios e deixam-nos com poucos argumentos para educar bem os nossos filhos.

 

Achamos que o terrorismo é condenável e julgamo-nos superiores porque dialogamos e vivemos em (suposta) democracia. Na verdade, a corrupção e os negócios sujos do mundo do dinheiro constituem a nossa forma de exercer terrorismo. São minas em terreno que dizemos limpo. Arrasam países como bombas. E também matam - quando o desespero de um desempregado chega ao suicídio, ou quando o dinheiro não chega para a renda e “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

 

Cada cêntimo opaco que esteja nos milhões de documentos do Panama Papers foi roubado a um de nós. Ter esta consciência é essencial para entender a gravidade do caso - e para perceber onde chegámos. Chegámos ao fim da linha. Já não há fundo onde bater para que ele desça ainda mais.

 

Esta semana não passo sem:

 

Sobre o mega-caso “Panama papers”, todos os jornais, e não apenas o Expresso, que integra a equipa da investigação, têm tentado traduzir em miúdos o que parece, e é, de uma complexidade que escapa à maioria. Mas nada como ir à fonte e visitar o site do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação. Não é tempo perdido…

 

Estreia hoje entre nós “Verdade”, a obra de estreia na realização do argumentista James Vanderbilt - um filme sobre jornalismo, sobre a investigação no jornalismo, sobre a verdade e a mentira, que parece feito à medida para a semana que estamos a viver. Com a garantia das prestações de Cate Blanchett, Robert Redford e Dennis Quaid, o filme tem por base o livro "Truth and Duty: The Press, the President and the Privilege of Power", de Mary Mapes, a produtora envolvida no caso que ficou conhecido como “Rathergate” (foi protagonizado pelo jornalista Dan Rather, da CBS), conta a história deste escândalo à volta de uma investigação sobre George W. Bush ocorrida em 2004.

 

Os 40 anos da Constituição da Republica Portuguesa foram assinalados por todos os media nacionais - mas esta reportagem do “Público” leva, para mim, a taça das taças… 

publicado às 09:23

Os idiotas perderam a modéstia

Por: Rute Sousa Vasco

 

Não tens opinião? Não és ferozmente contra o livro de Henrique Raposo sobre o Alentejo ou inequivocamente a favor do fim dos happy meals para o menino e para a menina? Não tens opinião? Não achas abominável o fim dos exames de aferição ou inominável o processo de reversão da privatização da TAP? Não és absolutamente a favor ou contra o aborto, a eutanásia, as despesas do veterinário para efeitos de IRS, a baixa do IVA na restauração, e, já agora, o Trump, o Lula, o Brexit, o Estado Islâmico?

 

Não tens opinião?! Que triste. Como és digno da tua existência?

 

A vida pública transforma-se assustadoramente num derby contínuo e em ambiente de rivalidade primitiva. Todo e qualquer tema é passível de se tornar numa enorme questão fracturante da nação e todos aqueles que não tomem partido por um dos extremos são vistos como xoninhas.

 

A futebolização da vida pública está a assumir traços francamente assustadores, em Portugal, como no Brasil, nos Estados Unidos ou em tantos outros sítios.

 

Há quem veja nesta radicalização da ‘conversa pública’ um efeito directo da facebookização das nossas vidas. Ou, sendo mais precisa, da permanente ‘socialização’ das nossas vidas. Estamos sempre em contacto, sentimos necessidade de ter coisas para dizer e o enorme espaço online é propício à emergência dos egos dos valentaços. Depois, é o efeito liceu. Cada valentaço ergue a sua corte e as cortes de vários valentaços confrontam-se como modo de afirmação. Da discussão de temas políticos à adopção de animais, tudo é terreno fértil para que imploda a grande cisão.

 

Na realidade, desconfio que somos todos pessoas muito mais sensatas, equilibradas e até interessantes ao vivo.

 

Há uns meses, Salvador Martinha contava em conversa com Rui Unas no podcast Maluco Beleza um episódio sintomático disto tudo. Segundo o Salvador, "uma pessoa muito conhecida, um colega nosso" recebeu, a certa altura, uma mensagem privada de alguém que lhe  dizia que devia morrer e outras coisas suaves como esta. A pessoa visada ficou incomodada com a agressividade e foi ver ao perfil da pessoa que enviou a mensagem como o podia contactar. Ligou para a empresa onde trabalhava, pediu para falar com ele e quando foi atendido explicou quem era e porque ligava. Do outro lado, já não estava um valentaço indignado. Era só um tipo normal que pedia desculpas e dizia que era tudo um mal-entendido. “Era a brincar”.

 

A intolerância perante opiniões contrárias – pior que isso, a indisponibilidade sequer para ouvir outras opiniões – está a transformar o mundo num sítio mais e mais perigoso. Como se Putins, Assads, Kim Jong-uns e, como não?, Trumps se multiplicassem no meio de nós, as pessoas comuns, os cidadãos que votam. Ou o inverso – como se eles só existissem porque, por alguma razão do foro psicológico, precisamos de líderes extremados, desequilibrados, que sejam a frente visível da humanidade mais animal e mais primitiva.

 

Há uns dias, alguém me falava do valor incrível da conversa. De como é importante conseguir conversar e não apenas discutir. Conversar é coisa humana. Conversar é cada vez mais coisa de humanos evoluídos e não trogloditas num tempo em que o recuo civilizacional é diário.

 

Os idiotas perderam a modéstia. Li esta expressão num artigo publicado pelo jornal online brasileiro de nome muito próximo a este onde escrevo, o 247. A autoria é de um jornalista, escritor e dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues. O artigo que a menciona tem um ano e meio e relata a agressão verbal e quase física a Gregório Duvivier, humorista da Porta dos Fundos, por ter declarado apoio à reeleição, à época, de Dilma Roussef.

 

Duvivier não estava num comício. Não estava em palco a fazer piadas. Não estava a discutir com ninguém. Estava num restaurante, no Rio de janeiro, simplesmente, a almoçar.

 

Tenham um bom fim de semana.

 

Outras sugestões

 

Já que falamos de Gregório Duvivier, de radicalização, de Brasil, e da opinião forte sobre tudo e nada, aqui fica uma crónica assinada pelo próprio.

 

Sobre extremismos e afins, aqui fica outra visão. A vitória de Donald Trump nas eleições americanas é tão perigosa quanto o avanço do jihadismo, considera o Economist Intelligence Unit no estudo sobre os dez maiores riscos para o mundo.

 

Versão corrigida a 21 de março às 12h15:

 

Na primeira versão deste texto, o parágrafo sobre o Salvador Martinha tinha uma redacção diferente. Mediante o alerta de um leitor, fica feita a correcção e a explicação aos leitores. O episódio em causa tinha sido relatado desta forma por alguém que conhece bem os vários interlocutores. O que não dispensa a validação dos detalhes exactos, sobretudo quando a história nos chega oralmente e lá diz o ditado que quem conta um conto, acrescenta um ponto. 

Feita a correcção à história - é o Salvador Martinha que a conta, mas não ele quem a protagoniza- mantém-se a moral que fez com que a escolhesse para ilustrar o tema da crónica: os indignados e os valentaços que todos os dias encontramos online.

 

Há uns meses, Salvador Martinha contava em conversa com Rui Unas no podcast Maluco Beleza um episódio sintomático disto tudo. O Salvador escreveu um texto e um determinado senhor que ele não conhecia não gostou. Para expressar o seu desagrado escreveu na página de Facebook do humorista que ele devia morrer e outras coisas suaves como esta. O Salvador ficou incomodado com a agressividade e foi ver ao perfil da pessoa que fez o comentário como o podia contactar. Ligou para a empresa onde trabalhava, pediu para falar com ele e quando foi atendido explicou quem era e porque ligava. Do outro lado, já não estava um valentaço indignado. Era só um tipo normal que pedia desculpas e dizia que era tudo um mal-entendido. “Nada disso, senhor Salvador, eu até gosto muito do seu trabalho”.

 

 

publicado às 10:37

Se queres conhecer realmente alguém, dá-lhe poder. Ou então tira-lho.

Por: Rute Sousa Vasco 

A seguir à comunicação ao país do Presidente da República fiz um radar rápido às opiniões verbalizadas em sites e redes sociais. Uns acharam péssimo, outros acharam extraordinário. Tudo normal, a esquerda ficou mais irritada, a direita ficou mais aliviada (e vice-versa também, por incrível que possa parecer). Política "as usual".

 

Até que os meus olhos pararam num comentário lido num mural onde um conjunto de pessoas elogiava o discurso de Cavaco Silva e sublinhava que agora, sim, Cavaco tinha voltado a ser ‘o seu presidente’. No meio dos elogios à qualidade do discurso e à forma como o presidente tinha posto António Costa na linha, deparo-me com um comentário que, concordando com a opinião expressa naquele mini-forum, fazia uma ressalva sobre Cavaco Silva: o facto de não lhe poder ser perdoada a decisão sobre a lei do aborto e o casamento homossexual. Pode parecer desajustado, mas foi exactamente aqui que eu parei.

 

Na minha perspectiva, esta é a verdadeira e porventura mais perigosa cisão do país, de qualquer país. Uma cisão pelos costumes, pelo modo de vida. É este o palco dos mais perigosos radicalismos, seja em Portugal, seja nos Estados Unidos, onde convivem as misturas mais explosivas. É também este o terreno fértil onde as religiões não muitas vezes instrumentalizadas e a crença em qualquer Deus se transforma rapidamente no direito em julgar os outros, obrigar os outros, castigar os outros. É o espaço do debate público mais importante – porque estes temas devem ser discutidos e pela discussão talvez nos salvemos desses mesmos extremismos.

 

O que também nos salva desses extremos é uma cola invisível feita por uma enorme maioria que está no meio, às vezes mais à esquerda, às vezes mais à direita, mas quase sempre a pender para o meio. É essa maioria, que tantas vezes nos aborrece na sua monotonia, que nos defende de ideias absolutistas de pessoas que acreditam que a sua visão do mundo se deve sobrepor a qualquer outra visão do mundo. Seja o tema o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o direito a possuir uma arma, assunto que inflama a política americana há décadas. Todas estas manifestações representam a mais pura matéria-prima humana. No seu dia a dia as pessoas não andam preocupadas com a história da democracia, a constitucionalidade das nomeações ou as fórmulas da governabilidade. No seu dia a dia, as pessoas andam preocupadas com a sua qualidade de vida, o seu futuro e … os valores em que acreditam. Foi pelos valores em que acreditam que muitos socialistas (e não socialistas) penalizaram António Costa. Pessoas para quem a forma como o líder do PS tomou o poder é mais grave do que discussões revivalistas sobre o PREC e a ameaça dos comunistas que comem criancinhas ao pequeno-almoço.

 

Os exemplos de proximidade entre a política e a religião, no sentido da crença fundamentalista, sucedem-se. Catarina Martins disse ontem na TVI que Cavaco Silva era ‘líder de seita’; na semana passada o MRPP, depois de ter acusado o seu líder histórico de “anticomunismo primário” (!), exigiu de Garcia Pereira uma das famosas ‘autocríticas’. Religioso, isto.

 

O Wall Street Journal publicou esta semana um artigo sobre um estudo apresentado no jornal de Social Neuroscience, da autoria de Mark Plitt do Baylor College of Medicine. O estudo demonstra que assumimos que as empresas e organizações são pessoas também. Ou seja, interpretamos as suas acções pela mesma lente com que avaliamos a acção de outro ser humano. Isto ajuda também a perceber a facilidade com que transferimos tantas vezes para os mercados, empresas, clubes de futebol, sentimentos e estados de espírito de cada um de nós – e a verdade é que encontramos um certo conforto nisso. Curiosamente, os neurocientistas sociais parecem encontrar provas de que mais facilmente nos ‘empatizamos’ com uma empresa ou instituição do que com um sem-abrigo – e nisso não há conforto algum.

 

Voltando ao discurso de Cavaco Silva, também aí regressámos aos medos sem rosto, mas ainda assim com estados de alma. São mercados, instituições europeias, investidores. Assustados, apreensivos, nervosos. Yanis Varoufakis, aquele cujo nome não se deve dizer para tantos que andam por aí, também falou disso na sua passagem por Portugal, diga-se. É, aliás, um exercício interessante comparar temas e visões de Cavaco e Varoufakis, o que pode ser feito aqui e aqui.

 

A degeneração das eleições de dia 4 de outubro numa luta de facções é um risco e um acto de irresponsabilidade para todos os que promovem esse desenrolar dos acontecimentos. Não é assim tão diferente das facções fundamentalistas que julgamos ser uma coisa do outro mundo, não do nosso, civilizado. Na génese, está uma mesma pulsão que devemos controlar, domesticar e que tem sido ao longo de séculos o legado de grandes estadistas.

 

Lembram-se da frase de de Abraham Lincoln? “Se quiser por à prova o carácter de um homem, dê-lhe poder.” Pensando na nossa situação política, também pode ser ao contrário. Se queremos conhecer realmente alguém, também podemos experimentar tirar-lhe poder. É essa a ameaça que António Costa sente e, na realidade, Cavaco Silva também.

 

Tenham um bom fim de semana.

 

Leituras sugeridas

 

Falando em fundamentalismos, há qualquer coisa nas praxes que me evoca o imaginário de comunidades religiosas, líderes espirituais e experiências libertadoras e de purificação. Exagero, eu sei. Mas há lá qualquer coisa. Seja como for, “Desobedecer à praxe” é um livro que chega agora às livrarias e que vale a pena espreitar.

 

A BBC descreve Robert Menard como alguém que foi “um jornalista, um socialista e um dos fundadores dos Repórteres Sem Fronteiras”. Há 18 meses venceu as eleições na cidade de Beziers, no sul de França, com o apoio da Frente Nacional de Marine Le Pen. E num ano e meio tornou Beziers num dos bastiões da extrema direita. Vale a pena ler esta história.

 

E depois há os milagres. Ou como seis mil mulheres indianas que todos os dias apanham chá se uniram para fazer face a uma multinacional e ganharam. Pempilai Orumai.

 

publicado às 11:09

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